Mulheres trans lutam por mais espaço no mundo acadêmico
Por Taynara Reinert / Foto Capa: Tomaz Silva Agência Brasil
Jaqueline Gomes de Jesus. Esse é o nome da primeira mulher negra e transexual a receber a medalha Chiquinha Gonzaga, que destaca personalidades femininas que lutam por causas democráticas, humanitárias, artísticas e culturais. A professora de psicologia social no IFRJ (Instituto Federal do Rio de Janeiro) ganhou a honraria pela Câmara do Rio de Janeiro. Jaqueline é pesquisadora, escritora – autora do livro “Transfeminismo: Teorias e Práticas” – e compõe o grupo de transexuais doutoras no Brasil.
Quando tinha 29 anos, Jaqueline se reconheceu mulher trans, a partir de contatos com outras mulheres trans e travestis. “Eu me identifiquei e me reconheci com uma identidade que tinha mais a ver comigo, como gay na época né. Hoje sou heterossexual, me sinto atraída por homens. Então foi esse meu processo”.
A transição ocorreu durante o curso de doutorado. Ela se sentiu acolhida pelos colegas e professores. Seu nome social foi recebido e aceito na sua defesa de doutorado
Apesar do apoio recebido, Jaqueline percebe que ainda não há muita abertura para as pessoas trans nas universidades. “Eu acho que as pessoas (trans) estão ocupando seu espaço em um ambiente majoritariamente cis-heteronormativo”.
Algumas ações afirmativas estão, aos poucos, sendo desenvolvidas, como é o caso da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) que, a partir do segundo semestre de 2018, passou a oferecer cotas a homens e mulheres transgêneros em cursos de graduação. A medida disponibiliza uma vaga extra para cada turma, para que não afete o número reservado para as outras pessoas. Mariana Franco ouviu comentários de que assim, qualquer pessoa poderia se autodeclarar trans para utilizar essas cotas “Quantas dessas pessoas têm preconceito com a pessoas trans, mas querem utilizar desse direito para benefício próprio? Não adianta dizer ser contra a corrupção e fazer isso. Além do mais, você tem que apresentar laudos ou documentos oficiais assegurando a sua transexualidade.” Mariana é estudante de Serviço Social na Universidade Federal de Santa Catarina, foi candidata a Deputada Estadual em Santa Catarina e faz parte da União Nacional LGBT (UNA-LGBT) e da União Brasileira de Mulheres (UBM). Além de integrar os conselhos estaduais dos direitos da Mulher e dos da Juventude, ela também faz parte do Conselho Nacional Intersetorial da Saúde da Mulher.
A iniciativa da UFSB é inédita na história das instituições de ensino no país e é resultado de muita luta da população trans. “A presença das pessoas trans nos espaços educacionais têm sido sempre de resistência e as poucas que resistem nesses espaços – que são totalmente transfóbicos – são sobreviventes e têm lidado com isso, e cada vez mais tido apoio, mas ainda existem muitas questões a serem tratadas. Então essas pessoas têm ocupado o espaço discutindo e não mais sendo tratadas como objeto de estudo”, reitera Jaqueline. Para ela, as pessoas trans estão deixando de ser mero assunto interessante, para se tornarem protagonistas das suas histórias, ocupando espaços em todos os cantos. “Nas artes, na política, na academia, no mundo do trabalho para além do trabalho informal da prostituição. Existem avanços decorrentes da ação do movimento Trans e do apoio de parceiras e parceiros nessa luta”.
Jaqueline é negra, trans e professora em um espaço acadêmico. Para ela, isso já representa uma vitória. Entretanto, no meio acadêmico, o que ocorre muitas vezes é o apagamento da sua produção intelectual, fruto do machismo, racismo e transfobia. “Eu tenho certeza de que, a essa altura, sou menos conhecida e lida em minhas dezenas de publicações do que se eu não fosse uma mulher negra trans”, avalia.
Políticas afirmativas na prática
Em 2015, o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT), da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), estabeleceu a resolução 12/2015, que firma parâmetros para garantir o acesso e permanência de pessoas trans nas instituições de ensino. Entre elas, estão a utilização do banheiro conforme a identidade de gênero de cada pessoa. Na prática, contudo, a diretriz tem sido pouco acatada pelas instituições. Em casos de denúncias, os membros do Instituto Brasileiro de Transformação pela Educação (IBTE) contatam o autor do relato e encaminham o caso para a ouvidoria da instituição em que o aluno estuda. Os casos não previstos pela resolução são enviados para a ouvidoria do Ministério da Educação.
O MEC também autorizou, em janeiro deste ano, que alunos e alunas trans usem o nome social nos registros escolares em todas as unidades de ensino básico do país e, em 1º de março, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou que pessoas transgênero alterem seu registro civil em cartórios sem a necessidade de cirurgia de redesignação genital ou de laudo psicológico. Bruna Benevides, mulher trans, percebe que, apesar de positivas, essas políticas afirmativas chegam tardiamente. “É um direito ainda muito primário então, ainda estamos lutando por direitos básicos”.
Bruna é Segunda-Sargento da Marinha do Brasil, ingressou na carreira militar há 21 anos. Ela também recebeu o prêmio Inês Etienne Romeu, concedido pela Prefeitura de Niterói (RJ). Etienne foi a única sobrevivente da Casa da Morte – o centro clandestino de tortura e assassinatos criado pelos órgãos de repressão da ditadura militar brasileira – e integrante da luta armada contra a ditadura. A medalha é entregue às mulheres da cidade que se destacam na luta por direitos humanos. Bruna também é presidenta do Conselho Municipal pelos Direitos LGBT e integra a Associação Nacional de Travestis e Transexuais como secretária de articulação política. A ANTRA é uma das instituições que segue na defesa dessa população, com 25 anos de atuação e organização política institucional na luta pelos direitos das pessoas trans, pelo reconhecimento de resgate da cidadania e autonomia dos indivíduos. Entre suas principais lutas estão o acesso à permanência na escola, ao mercado formal de trabalho e à possibilidade de qualificação para esse mercado, a garantia do acesso à saúde de qualidade e a regulamentação da prostituição. “Cerca de 90% da população trans ainda tem como única fonte de renda a prostituição, então é muito importante a regulamentação para que possamos garantir o direito a essas profissionais”, afirma Bruna.
A Constituição brasileira é objetiva no artigo 205, capítulo III, seção I, que diz: todos têm direito à educação, à saúde e ao trabalho, permitindo que as pessoas vivam de forma digna, com direitos iguais. Na prática, entretanto, é um pouco diferente. Em 2016 a Secretaria de Educação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (ABLGBT) divulgou estudo apontando que 73% dos estudantes entrevistados que se declaram não-heterossexuais, no Brasil, já sofreram agressão verbal na escola, e um a cada quatro já foi agredido fisicamente; 55% ouviram comentários negativos a respeito de pessoas trans no espaço escolar e 45% já se sentiram inseguros por conta de sua identidade de gênero.
Bruna também destaca a preocupação da ANTRA com a saúde mental das pessoas trans e o apoio financeiro para que consigam continuar estudando para garantir sua formação. “Nossas contribuições refletem e representam a dissidência e a quebra do sistema cis-heteronormativo. Estamos a todo instante questionando esse padrão, que é violento e adoecedor, inclusive para as pessoas que são cis-hétero”, explica Bruna. Para a militante, o fato de as pessoas trans se inserirem nesses espaços já é uma forma de resistência.
Evasão escolar e discriminação levam à prostituição
Leona Wolf, ativista negra, lésbica, cientista social e membro do Coletivo LGBT Prisma – Dandara dos Santos, que atua também no meio acadêmico, ressalta que a maior parte das pessoas trans começa sua transição já durante a adolescência e não consegue concluir o ensino médio. “A evasão escolar de pessoas trans é muito grande no ensino médio e chega a 70% o índice de estudantes trans com o ensino médio incompleto”.
De acordo com a pesquisa conduzida pelo defensor público João Paulo Carvalho Dias, presidente da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), há no país 82% de evasão escolar de travestis e transexuais, um resultado que aumenta a vulnerabilidade dessas pessoas, ampliando também a violência sofrida por elas. Isso também se agrava, segundo Leona, por conta da expulsão de casa, que ocorre em muitos casos. “Com essa alienação parental, a gente vai encontrar pessoas trans que se formam depois da idade escolar, em cursinhos de Educação de Jovens e Adultos, e daí por diante. Temos cerca de 0,02% da população trans no Ensino Universitário no Brasil, o que é uma taxa extremamente baixa”, reforça.
A dificuldade que a população trans encontra para se qualificar continua grande e o principal recurso para subsistência é a prostituição. “As políticas afirmativas para população de travestis e transexuais são de suma importância. Principalmente porque elas reconhecem as vulnerabilidades que são impostas a nossa população que, por conta disso, não consegue se qualificar para acessar o mercado formal de trabalho, visto que hoje 90% da população trans ainda sobrevive unicamente da prostituição”, aponta Bruna.
Para Leona, o fato de a pessoa estar aprisionada em outra realidade espaço-temporal gera uma segregação social. “Elas dormem durante o dia para se prostituírem à noite, ficando presas nas áreas relacionadas à prática. Não estão presente diariamente na vida das pessoas comuns.” Resultado disso é o reforço de estereótipos que geram a fobia a pessoas trans.
A integrante do Coletivo Prisma também destaca que há os estigmas da própria prostituição. “As pessoas trans são vistas socialmente como prostitutas e carregam em si todos os estigmas da prostituição. Neste quadro, entra a questão do que é considerado bom socialmente e o do que é considerado ruim ou sujo.” Leona também aponta que as pessoas trans sofrem uma desumanização, por conta de classe social e raça. São diversos fatores que reforçam o preconceito: identidade de gênero, classe, raça e estigmas atribuídos à prostituição, que reverberam em um quadro que torna a vida dessas pessoas muito menos valiosa para as demais. “Esse quadro de sub-humanização faz com que a vida das pessoas trans seja muito barata. Então se mata muito mais fácil”.
Bruna considera como medida mais urgente a criminalização da LGBTfobia e a possibilidade de qualificadores de feminicídio no assassinatos de pessoas trans, visto que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. “Somente este ano foram 146 travestis e transexuais assassinadas. No ano passado, foram 179, então ficamos muito assustadas e o movimento continua lutando contra a violência e pelo direito à vida”, afirma Bruna. Números como esses são frutos de uma sociedade que busca estabelecer a homogeneidade ainda que isso signifique causar danos a quem não se encaixe nos padrões. “Estamos sob uma ótica extremamente conservadora e normativa, que tende a querer fazer com que as pessoas tenham suas vidas planificadas, que todo mundo viva igual, vestido igual, regendo sua vida de uma maneira igual”.
Leona vai além na reflexão, questionando a lógica da planificação, que determina um padrão a seguir. “Logo, tudo aquilo que é diferente deve ser eliminado. Só que você elimina quem? Quem está numa posição mais frágil. E quem está em uma posição mais frágil socialmente? A travesti, que está na esquina à noite se prostituindo”, resume. “Se nós formos olhar uma pessoa trans negra, trans negra do gênero feminino, trans negra do gênero feminino e periférica… Então, isso se intensifica, com esse acúmulo de opressões que estão na estrutura social. Hierarquizando as opressões, por assim dizer”, completa Bruna.
Apesar de não ser algo fácil, para lutar contra a estigmatização é importante que as pessoas trans busquem o apoio de coletivos, dentro e fora das universidades.“É preciso que haja essa solidariedade, um entendimento das pessoas cis sobre a realidade da população trans e os desafios de inclusão sejam encarados. Bruna reforça a própria qualificação das pessoas trans, enquanto produtoras de saber, como a maior forma de resistência.
Quantas pessoas trans você encontra com um trabalho formal, diariamente? Quantas pessoas trans você observa frequentando espaços como escolas e universidades? Essas são algumas das perguntas que fazem qualquer pessoa refletir e que Mariana destaca como básicas. “Devemos ter a consciência de que as pessoas trans são pessoas normais na sociedade, mas que a própria sociedade exclui nossa população, principalmente no mercado de trabalho e na educação”.
Primeiro relato de uma mulher trans na história
A história começa em 1930, na França. Lilly Elbe, uma pintora de sucesso, foi a primeira mulher trans a ser reconhecida e que passou por redesignação – procedimento cirúrgico pelo qual as características genitais de nascença de uma pessoa são mudadas para aquelas socialmente associadas ao gênero ao qual ela se reconhece. Lilly conseguiu retificar seus documentos na Dinamarca e, assim, inspirou o livro “A Garota Dinamarquesa”, que foi adaptado para o cinema e ganhou o Oscar.
Judith Butler, filósofa pós-estruturalista estadunidense, uma das principais teóricas da questão contemporânea do feminismo, da teoria queer, filosofia política e ética, também é uma das mulheres mais conhecidas por expandir o assunto a respeito da transexualidade. Para Butler, a sociedade tenta enquadrar a todos em uma “ordem compulsória”, que exige total coerência entre sexo, gênero e práticas, que são obrigatoriamente heterossexuais. Ou seja, apesar de ser natural, o processo da transexualidade é estigmatizado por ser diferente do que é normatizado.
Bateu a confusão? Então imagine: uma criança está para nascer. Se tiver pênis, é automaticamente classificada como um menino e será condicionada a sentir atração por meninas e vice-versa. O que Butler propõe é acabar com esta lógica que tende à reprodução, subvertendo a ordem compulsória e desconstruindo essa obrigatoriedade entre sexo, gênero e desejo.
E isso é exatamente o que Mariana Franco vivenciou e vivencia diariamente em sua luta enquanto mulher trans. Para ela, a imposição dessas questões tiram o entendimento das pessoas trans como persona e, consequentemente, nega a pluralidade de pessoas que compõem a sociedade. É por essas questões e muitas outras que pessoas LGBTQIA+ se mantêm na invisibilidade ou no “armário”, como se costuma dizer. O filósofo Michel Foucault cunhou a expressão “tecnologia sexual”, que diz respeito a um conjunto de técnicas discursivas, controladoras e classificatórias, construídas pela burguesia no final do século XIX para, por meio de aparatos institucionais, autoridades religiosas e científicas, estabelecer o controle sobre os comportamentos sexuais e as normas. Assim, é possível perceber que há muito tempo pessoas que não se enquadram no padrão cis/hétero são marginalizadas ao longo da história refletindo na vida da população trans até hoje.
Para pensar mais
“Nós temos diversas dificuldades e, principalmente, um processo histórico de vulnerabilização, mas nós não podemos de forma alguma retroceder ou deixar de lutar. Para nós, enquanto travestis, mulheres transexuais e homens trans, lutar não é uma opção, é uma necessidade de vida e nós contamos também com as pessoas cis aliadas, para que possamos estar juntos lutando contra toda forma de opressão. A mudança está acontecendo e as pessoas precisam cada vez mais se aproximar dos movimentos sociais, dos movimentos de resistência, para que a mudança não seja individualizada, mas que ela aconteça como a ruptura do sistema e a possibilidade da construção de um novo conhecimento para toda a sociedade, porque está comprovado que a diversidade é saudável e deve ser incentivada em todos os espaços.” (Bruna Benevides)
“A luta pelos direitos da população trans, é uma luta por Direitos Humanos fundamentais. Ela é importante para a humanização de todas as pessoas, no reconhecimento de que todos são cidadãos e cidadãs. Essa é uma luta para que a gente construa uma democracia de fato neste país. Então minha mensagem é para que as pessoas cis entendam que a luta das pessoas trans por ocupação de espaço, por valorização do seu corpo, da sua cultura, da sua forma de ser, do reconhecimento da beleza trans, do direito das pessoas trans é um tema político fundamental para que a gente transforme a sociedade.” (Jaqueline Gomes de Jesus)
“Pessoas cis, caso tenham alguma pessoa trans conhecida, incentivem-nas a frequentarem a universidade. E as que já estão na Universidade, acolham-nas. Vocês, após formados, se puderem, coloquem em suas empresas e escritórios pessoas trans trabalhando. Deem uma chance, ajudem a tirar o preconceito e a estigmatização por que passam pessoas trans hoje no Brasil.” (Mariana Franco)
“Há médicos que ainda colocam as pessoas trans em um quadro patologizador. Então eu acho que é de suma importância a aplicação de políticas afirmativas em relação à educação, mas também em relação à saúde. Temos até hoje uma discussão por conta das burocracias do protocolo transexualizador do SUS e os riscos que o próprio protocolo transexualizador possui. São questões que a gente tem que parar para pensar mais para frente também.” (Leona Wolf)
Separamos alguns links sobre o tema. Confira abaixo:
Canais no youtube:
Canal das Bee
Casas de acolhimento:
Coletivos e organizações:
Associação Arco-Íris Joinvill
Grupo Gay da Bahia
Relatórios:
Nascidos Livres e Iguais – Orientação Sexual e Identidade de Gênero no Regime Internacional de Direitos Humanos:
Multimídia:
Depois do Fervo – Documentário LGBT