Violência patrimonial também é crime
A violência patrimonial muitas vezes passa despercebida, mas tem impactos profundos na vida das mulheres. Trata-se, segundo a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), de qualquer conduta que subtraia ou destrua bens, instrumentos de trabalho, documentos pessoais ou recursos econômicos da vítima.
Segundo Camilla Vizoto, advogada dos direitos das mulheres e professora da Faculdade Guilherme Guimbala – ACE, a violência patrimonial advém da histórica relação de desvantagem econômica da mulher em relação ao homem. A banalização deste crime é nítida na sociedade, pois, inicialmente, as violências físicas e psicológicas costumavam ocupar o centro das atenções, enquanto os demais tipos eram ignorados. “Nem sempre as vítimas conseguem identificar essas condutas no instante em que são praticadas. Primeiro porque, não raro, elas já se encontram fragilizadas por outras formas de agressão, como a psicológica e a moral, o que acaba deixando menos aparente a questão patrimonial”, afirma.
A diferença salarial entre homens e mulheres, no Brasil, acentua a dependência financeira. Conforme o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística), o rendimento médio mensal recebido no trabalho principal no Brasil alcançou um recorde de R$3.032,00 em 2023. As mulheres trabalhadoras, porém, permanecem recebendo um valor menor do que o do salário médio dos homens, de acordo com a PNAD-C (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua).
A desigualdade salarial é um problema estrutural do mercado de trabalho e reflete não só o machismo da sociedade, como a ausência de mais políticas que garantam o ingresso das mulheres em funções de maior remuneração. De acordo com um levantamento feito pelo Governo Federal, com base em informações de quase 50 mil estabelecimentos comerciais, as mulheres recebem 19,4% a menos que homens. É como se, a cada ano, a mulher trabalhasse 74 dias de graça.Em cargos de dirigentes e gerentes, a diferença de remuneração chega a 25,2%.
Como evitar o “estelionato amoroso”
Para identificar a violência patrimonial, a advogada Camila Visoto ressalta alguns sinais de alerta, como a necessidade de pedir permissão ao companheiro para gastar dinheiro pessoal, falta de controle sobre suas economias e a manipulação sentimental, que ocorre quando o agressor cria uma falsa relação de amor para obter vantagens financeiras. A denúncia de um crime de violência patrimonial, assim como todos os outros motivados por gênero, deve ser feita em uma delegacia, preferencialmente na Delegacia da Mulher, pois tende a ser mais preparada para lidar com as especificidades desse tipo de situação.
Maria Flores (nome fictício para preservar a identidade da entrevistada) só percebeu que era vítima de violência patrimonial no divórcio, quando não podia arcar com os custos sozinha, pois seu então marido era quem cuidava da administração dos bens. Antes do casamento, ela trabalhava para ter sua independência financeira e pagar a faculdade que não veio a concluir. Durante o namoro, já ouvia frases como: “você não precisa trabalhar, eu pago” Ou então: “fique em casa, dedique-se à família”. Na época, Maria achava que aquilo tudo era uma forma de proteção. Puro engano.
Quando o divórcio saiu, os bens que ambos possuíam foram divididos igualmente, pois a maioria estava no nome do ex-marido. “Ele usava isso para me ameaçar e tentar impedir a separação. Falava que eu não seria ninguém sem ele, que iria morar embaixo da ponte e teria que me prostituir se quisesse ter alguma renda”, conta Maria. “Me sentia completamente impotente e dependente, afinal eu não tinha formação acadêmica, porque ele me convenceu a parar minha vida, só não imaginava que teria que viver a dele, ou melhor, para ele.”
Casos como o de Maria estão longe de ser exceções. De acordo com a advogada Camila Vizoto, existe uma certa banalização da violência contra as mulheres no país. “Nosso machismo cultural e estrutural nos violenta todos os dias e, infelizmente, a sociedade trata a violência contra a mulher como algo comum do cotidiano, o que não pode jamais ser aceito.”
Também enquadram-se como violência patrimonial a retenção de documentos individuais, fiscalização do celular da parceira e apoderamento do dinheiro que a companheira recebe em seu trabalho, por exemplo. Após a denúncia, são aplicadas medidas de urgência para proteção da vítima, como a restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor e a proibição temporária de contratos de compra e venda.