Do jeito que somos
Por Fagner de Souza Ramos e Dyeimine Senn Schlindwein
Em Joinville, no distrito de Pirabeiraba, localizado a 15 km do centro, está a Comunidade Quilombola Beco do Caminho Curto. O local faz parte da zona rural do município, distante do centro da cidade, do poder público, do saber e do olhar de boa parte da população joinvilense.
O acesso se dá pela BR-101, sentido Curitiba, em um trajeto de 8 km até a saída pela direita, no km 31, seguido por ruas cheias de buracos, disputadas por caminhões que entregam mercadorias nas empresas próximas.
Da saída da BR, são mais 7 quilômetros entre pedaços de terra, fazendas, algumas casas e pouco comércio. Durante o caminho, em alguns pontos da estrada, nota-se construções antigas, de mais de um século, que fizeram parte de uma antiga usina de açúcar. Tudo leva a crer que pertenciam a engenhos, cuja existência é historicamente comprovada na região. Mas isso é um assunto que fica para mais adiante.
Chegando próximo à comunidade, avista-se, do lado direito, um muro extenso onde, dentro, há um condomínio de luxo denominado Duque de Aumale — este nome voltará a aparecer por aqui. O condomínio possui poucas casas ocupadas, incluindo a residência de um renomado fotógrafo, Kacioslira, que mantém ali seu home studio. Do lado esquerdo, encontra-se um cenário típico de locais periféricos no Brasil: uma “vila” com um amontoado de casas, roupas estendidas no varal, cachorros junto com crianças brincando, pessoas conversando. Pode-se dizer que, a estrada que separa esses dois mundos é um reflexo do que realmente se vê no Brasil.
O local fica à beira da Estrada da Fazenda, um lugar com pouco fluxo de carros, mas onde quase sempre trafegam em alta velocidade. Quanto aos ônibus públicos, há apenas um pela manhã, outro à tarde e o último, que circula até as 19h. Os moradores da comunidade pedem, há anos, a instalação de uma lombada nas imediações, que ajudaria a evitar acidentes que, segundo eles, já ocorreram. Contudo, afirmam que o pedido não foi atendido, pois os ciclistas que costumam pedalar no local teriam o trajeto e a mobilidade prejudicados, especialmente nos finais de semana.
Do outro lado da estrada, há um ponto de ônibus com uma cobertura pequena e um muro de aproximadamente 1 km de extensão e 4 metros de altura, pertencente a um condomínio de luxo. Para os moradores, a cobertura do ponto é pequena demais para proteger as pessoas, principalmente as crianças, nos dias de chuva. Já o muro reflete, para eles, a síntese e o sentimento de exclusão da população de Joinville em relação àquela comunidade quilombola: quem não é visto não é lembrado.
“A cidade não sabe que existimos. São poucos. Nosso bairro, Pirabeiraba, até nosso bairro não sabe que existe aqui um quilombo. Somos um povo esquecido do mapa. Todo movimento quilombola é esquecido no Brasil. Eles acham que temos direito disso e daquilo, mas não temos direito a nada. Acham que somos apenas imigrantes que estamos povoando o Brasil, para dizer que ainda existimos aqui”, diz Osmari de Oliveira, 37 anos, morador da comunidade.
A invisibilidade da comunidade é um reflexo da história de Joinville, que se consolidou como uma cidade de imigrantes europeus. O estereótipo do “joinvilense loiro” é reforçado em diversas publicações e material publicitário da cidade, conforme aponta o artigo Um Patrimônio Esmaecido, de Andrew Bernardo Corrêa e Roberta Barros Meira. A história de resistência do Beco do Caminho Curto, ligada à formação do quilombo e ao trabalho escravo nas plantações de açúcar de Joinville, continua sendo ignorada, apesar da relevância histórica.
Diversas pesquisas realizadas ao longo do tempo mostram que, na região rural de Pirabeiraba, onde está situado o Beco do Caminho Curto, havia engenhos de açúcar. O mais relevante pertencia ao Duque d’Aumale — aquele que dá nome ao condomínio de luxo — localizado às margens do rio Cubatão. Essas pesquisas constataram que a produção de açúcar em Joinville era baseada no trabalho escravo de pessoas negras e que a formação da comunidade remanescente de quilombos no Caminho Curto é fruto desse período histórico.
“A gente não é reconhecido em nada. Joinville tinha que mudar. Quem chegou primeiro? Quem chegou primeiro fomos nós! Então Joinville tinha que falar sobre nós também. Não somos só descendentes de escravos, somos descendentes de africanos”, reforça Gorete Aparecida de Oliveira, 48 anos, também moradora e a principal líder e porta-voz da comunidade.
Assista o documentário “Do jeito que somos” no Youtube:
Segundo o último censo realizado para quantificar a população quilombola no país, Santa Catarina possui 4.447 comunidades descendentes de quilombos, um número proporcionalmente maior que o de São Paulo, por exemplo. Em Joinville, estima-se a presença de cerca de 317 pessoas. No Beco do Caminho Curto, há 41 casas e aproximadamente 181 moradores. Com o apoio de Alessandra Bernardino, assistente técnica pedagógica da CRE (Coordenadoria Regional da Educação), a comunidade recebeu o certificado de remanescentes de quilombo da Fundação Cultural Palmares, o que trouxe maior segurança aos moradores ao garantir a posse da terra e proporcionar um acesso ampliado a direitos. Antes disso, houve também o reconhecimento da comunidade Ribeirão do Cubatão.
O reconhecimento como quilombo pela Fundação Cultural Palmares foi uma grande conquista, mas a falta de apoio do poder público continua sendo uma realidade desafiadora. A comunidade ainda enfrenta a ausência de saneamento básico e conta com uma oferta limitada de opções de lazer ou atividades culturais. A promoção de debates sobre racismo e a realização de atividades para crianças ajudam a comunidade a perceber que, apesar das conquistas, ainda há muito a ser feito.
A Comunidade Quilombola Beco do Caminho Curto, uma das remanescentes de quilombos no Brasil, carrega a herança de resistência de seus antepassados. Formadas por descendentes de africanos escravizados, as comunidades quilombolas surgiram como refúgios de resistência à opressão colonial, defendendo a liberdade e preservando suas tradições. Hoje, essas comunidades são reconhecidas pela Constituição Brasileira de 1988, que garante seus direitos culturais, sociais e territoriais.
No Beco do Caminho Curto, estruturalmente, as casas não foram construídas de maneira que privilegie o acesso e o deslocamento dos moradores. Parte das residências é de alvenaria, muitas ainda em construção e inacabadas, enquanto a outra parte é feita de madeira. Os espaços nas ruas e becos estreitos são disputados por carros, motos, crianças pequenas brincando e animais domésticos.
Caminhando pelas pequenas ruas que cortam as casas, que ainda são de terra e se transformam em lama com as constantes chuvas, nota-se muitas fezes de cachorro. Manter as residências limpas deve ser um ato quase de resistência, já que, em dias secos, a lama se transforma em pó — e muito pó.
A água encanada foi conquistada após anos de luta. Já a luz elétrica, que durante muito tempo funcionou com pontos esporádicos, passou a ser distribuída de forma regular somente no fim de 2023. Após pressão da Defensoria Pública, a Celesc instalou postes e relógios, garantindo energia elétrica para todas as residências, o que se tornou motivo de orgulho pela obstinada conquista dos moradores.
O descarte de lixo ainda é uma questão precária. O caminhão de coleta, quando vem, não recolhe todo o material descartado pela população. O lixo acumulado é frequentemente depositado nos fundos da comunidade, em uma espécie de aterro sanitário improvisado, compartilhado com animais dos pastos vizinhos que circulam ao redor. Quando a quantidade aumenta, o material é queimado de forma irregular, gerando riscos de acidentes e poluindo o meio ambiente.
O acesso a estabelecimentos comerciais, postos de saúde e escolas dificilmente é feito por transporte público. Ou o percurso é feito de bicicleta, de carona com automóveis de alguns moradores, ou geralmente a pé. Para trabalhar fora, além dos contratempos de locomoção, existe o preconceito ao se dizer que mora na comunidade quilombola.
Gorete relata que muitas pessoas, ao informar em entrevistas de emprego que moram ali, são automaticamente eliminadas do processo seletivo. “Ou você omite e informa outro endereço de residência, ou sua chance é quase zero”, afirma.
Lidar com preconceito é algo que está no DNA dos mais novos e se tornou questão de sobrevivência para os mais velhos e experientes. Os moradores afirmam que já foram alvos de ações dos proprietários das casas dos condomínios de luxo em frente, que mobilizaram influenciadores políticos para tentar retirar a comunidade daquele local.
Na época das eleições presidenciais, durante o auge da polarização política e das manifestações bolsonaristas nas estradas de Santa Catarina e Joinville, a comunidade sofreu ameaças constantes de grupos apoiadores de Jair Bolsonaro. Há relatos de diversos homens chegando com carros e motos no local, armados com pedaços de pau, ameaçando parte da comunidade.
Quando estão em estabelecimentos comerciais próximos e as pessoas já sabem que são moradores quilombolas, passam a ser vigiados constantemente. Em uma visita a um shopping da cidade, Gorete relata que, quando chegaram na porta do local com cerca de 30 crianças, clientes “assustados” chamaram os seguranças e pediram para acompanhar a visita do grupo ao shopping.
Nas escolas, as crianças dizem que precisam lidar diariamente com o bullying. Apesar de os professores explicarem sobre assuntos ligados ao racismo, e o que é ser quilombola, atitudes racistas e preconceituosas ocorrem rotineiramente.
“Na escola, alguns não sabem que existe a comunidade. Alguns sim, outros não. Alguns respeitam a gente, outros não. Eles já falaram para mim que eu sou quilombola e que lá não é lugar de preto. Eu me senti ofendido. Cheguei a brigar. Ele veio para cima de mim e eu dei um soco nele. Ele não me pediu desculpa. Falei para o professor e fizeram boletim de ocorrência”, conta Brian.
Apesar da invisibilidade constante da população de Joinville e do poder público, moradores demonstram cansaço até com parte da imprensa. Eles afirmam que só são lembrados em datas comemorativas, como a Consciência Negra, ou quando algo muito ruim acontece. Reforçam que não querem ser vistos apenas como quilombolas — o que os orgulha — mas sim como cidadãos, sendo atendidos e respeitados como tal.
Morar na comunidade reforça o espírito familiar, social e de acolhimento, algo com o qual todos os entrevistados e até pessoas que preferiram não ser citadas, mas que falaram em off, concordam.
“Aqui todo mundo é família, não tem ninguém diferente. É um abraço paternal. Nascemos aqui, moramos aqui e vamos morrer aqui. Eu chamaria as pessoas para conhecerem a comunidade. É um lugar que acolhe todo mundo. Algumas pessoas vêm realizar doações, e nós as abraçamos”, conta Osmari.
“Aquela pessoa que não conhece a comunidade, que julga, que olha as pessoas aqui na comunidade, saiba que aqui não é uma invasão. Eu peço que venham conhecer, conversar, para ver que a gente é uma comunidade unida. A gente também quer ser reconhecido e ter dignidade, e não ser humilhado pelo que não conhece, ficando falando mal da nossa comunidade. A gente é ser humano e tem o direito de ser respeitado”, reforça Gorete.
A carência pública que a comunidade do Beco do Caminho Curto enfrenta é amplificada pela carência humana — de serem vistos, ouvidos, respeitados e lembrados. Mas, ao mesmo tempo, demonstram orgulho de onde vieram, do que são e onde querem chegar.
“A minha descendência, o meu caráter, não diz que você é quilombola, você é negro, você é escravo, não. Eu tenho orgulho de ser lembrado como negro, descendente de escravo, porque é um orgulho. Esta é uma comunidade que veio da descendência dos africanos. Agradecemos por ser descendentes de escravos que conseguiram construir um Brasil. Se não fosse a gente, ninguém estaria aqui, ninguém veria que somos quilombolas. Iam ver apenas um beco, uma favela, mas não, somos quilombolas, e agradeço por ser”, conclui Osmari.