
PlanoReal: a moeda da resistência em Joinville
Com músicas autorais e cheias de autenticidade, a banda vem ganhando espaço no cenário joinvilense. Um som que nasce do conflito, e floresce na liberdade de se expressar e ser ouvido.
Por Camila Schatzmann Gomes e Maria Eduarda Ribeiro
Há quem diga que punk é apenas barulho, contudo, esses cinco garotos estão em cena para provar que na realidade é muito mais que isso. É uma junção de sonhos, histórias, posicionamentos, expressões e liberdade.
Conheça a PlanoReal, banda joinvilense formada por João Italik (19), Vitor Weber (20), Caio Mafra (17), Lucas Duarte (23) e Pedro Dias (23). Juntos, eles atuam como uma força de resistência, quebrando barreiras e desafiando preconceitos na cena underground da região.
A primeira faísca
A PlanoReal não nasceu organizada, e nem precisava. A banda surgiu da vontade de João Italik, vocalista, de fazer música, lá em dezembro de 2021. No primeiro ano, o grupo ainda se apresentava com covers e sons soltos. Mas, ao perceber a necessidade de compor e criar uma identidade própria, João enfrentou receios, conversas difíceis e passou por uma reformulação completa, até encontrar quem realmente topasse caminhar com ele.
“No início, a banda seguiu nesse caminho, algo mais levado na brincadeira, durante um ano, fazendo os primeiros shows, tocando covers, sem um gênero definido, uma coisa meio bagunçada”, explica o vocalista. “E eu sempre estive numa ânsia de fazer música. Criei a banda junto com eles para isso. Algo que levo muito a sério na formação atual é o diálogo e isso era algo que faltava naquela época. A gente nunca sentou para conversar, tipo: beleza, por que a gente tem essa banda?”, continuou. “E eu queria fazer música. Depois de muito conflito, de muita coisa que não tava rolando nem fechando, porque eu estava começando a compor as primeiras músicas, tentando entregar algo para as pessoas e os outros integrantes acabavam tendo medo, precisei ter essa conversa mais dura e alguns acabaram saindo.”
Pessoas inerentes, pensamentos alinhados. Para uma banda “funcionar” é preciso ter sintonia e o vocalista compartilhou seu ponto de vista sobre o assunto. “Uma coisa que as pessoas que querem fazer banda precisam entender é que a parada é sobre concessão. Então é olhar para o cara que está na sua frente e falar que às vezes a gente não é igual, mas precisamos fazer algo que faça sentido juntos.”
Mais que uma moeda
O nome PlanoReal surgiu em um desses momentos de brainstorming em grupo, no melhor estilo, cheio de ideias aleatórias, discordâncias e, claro, algumas sugestões questionáveis. “PlanoReal é um nome interessante que eu acabei sugerindo pra eles. A gente estava naquela discussão de qual seria um nome legal, muitos nomes ruins foram citados”, brinca João.
A inspiração, curiosamente, veio de um lugar improvável: um podcast sobre economia brasileira. João conta que, muitas bandas se inspiram em nomes de músicas, seguindo o mesmo pensamento o vocalista estava navegando pelo Spotify em busca de nomes, olhando playlists e influências, quando se deparou com um podcast sobre o Plano Real, aquele que instituiu a moeda brasileira atual. “É engraçado, porque depois que sugeri o nome, percebi quantas pessoas com menos de 18 anos nem sabem o que foi o Plano Real. Usam o real no dia a dia, mas não sabem que antes disso existia cruzeiro, cruzado e isso é muito louco”, comenta.
Mais do que uma escolha estética, o nome acabou ganhando significado dentro da proposta política e crítica da banda. “A gente tem uma orientação política muito clara, definimos muito bem isso e fazemos muita crítica social em nossas músicas. E o Plano Real foi uma medida econômica que, embora vá contra o caminho que a gente acredita como ideal, especialmente esse liberalismo ferrenho que o Brasil vem seguindo desde os anos 90, também teve um impacto real na vida das pessoas. Muita gente conseguiu comprar o primeiro carro, a primeira casa, e esse plano controlou a inflação de uma maneira que antes era quase impossível. Foi uma tentativa de mudança e isso, de alguma maneira, acaba conversando com o que acreditamos. Sabemos que não vamos fazer uma revolução só com punk, mas a gente sabe que está tentando e essa tentativa pode gerar frutos bons, nem que seja para uma pessoa.”
Música que inspira – sonhos que florescem
Não há como falar de música sem falar de inspirações. Cada batida tocada, cada melodia criada e cada letra desenvolvida derivam de uma sucessão de ideias inspiradas por algo ou alguém. Para a PlanoReal não é diferente.
A banda consolida seu estilo musical com foco no presente, mas considerando todo o seu passado e história como banda. “A música que a gente faz ela acabou sendo colocada meio que por conta do passado da banda. Por causa das nossas antigas escolhas”, explica João. “É porque em algum momento a gente decidiu que gostava de música e as músicas que a gente ouvia nessa época fazem muita diferença para o que a gente faz hoje.”
Na produção de músicas o impacto de cada integrante e sua individualidade é notável. Embora sigam o mesmo estilo, a mistura de percepções transforma a criação das ideias em uma grande mistura, e o que era comum se torna algo mais complexo e autêntico. “Acho que essa é a parada mais legal que tem, acho que é por isso que o nosso som vai pra um lugar tão único. Não que a gente seja a banda mais original que existe, mas isso é muito legal”, cita Pedro. “Podemos chamar de uma grande salada de fruta.”
De forma fragmentada, cada detalhe gera algo novo e a construção de conhecimento torna cada integrante singular e pronto para explorar sua singularidade nas performances da banda. Quando Vitor iniciou na PlanoReal, ainda não sabia tocar guitarra. Ele havia começado as aulas há pouco mais de duas semanas, mas se sentiu motivado a fazer parte daquilo. “Em outubro de 2022 eu comecei a conversar com o Vitor de volta porque ele é um amigo de infância. Um dia ele foi em um show da banda, se inspirou e comprou uma guitarra” contou João. “Mesmo que ele não soubesse tocar, eu já tinha visto uma parada nele que eu sabia que era esse cara que eu precisava do meu lado.”
Segundo João, vocalista, as principais bandas que influenciam no estilo musical da PlanoReal são referências como: Charlie Brown, Dead Fish, Sugar Kane, Noção de Nada, Taking Back Sunday e bandas de hardcore japonês, valorizando principalmente a proposta única que a música japonesa desenvolve.
“Eu sou fã das bandas por causa do caminho que elas trilharam. Eu me conecto com elas, porque eu vejo que é possível vislumbrar uma carreira de banda sem gerar grana. Porque a gente sabe que faz um som diferente, mas também que a gente consegue ser feliz de alguma maneira” comenta João.
Cinco identidades um mesmo propósito
A PlanoReal é definida por seus integrantes como uma banda de hardcore melódico, ainda que o rótulo não seja uma preocupação para eles. “Se alguém ouvir e quiser chamar de punk, tudo bem. Para mim, o que importa mesmo é que a música cause algo nas pessoas, mesmo que seja ódio. Porque a música vai estar causando algo, gerando algo em quem a escuta”, comenta João, vocalista. E essa visão coletiva se manifesta de forma singular em cada membro da banda.
A base é a mesma: fazer barulho com propósito. Mas cada um contribui a partir de vivências e referências próprias, formando um som carregado de identidade.
João, além de vocalista, é a alma lírica da banda. Suas composições refletem o peso das escolhas e a busca por autenticidade.
Pedro, guitarrista, traz ao som da PlanoReal o peso emocional de quem aprendeu a amar a música dentro de casa. “Meu pai talvez seja meu músico favorito”, diz. Mas também há um toque mais técnico e teatral, vindo de ídolos como Synyster Gates, do Avenged Sevenfold. “Quis tocar guitarra por causa dele, ele é uma grande referência”.
Lucas, baterista, tem o olhar visual e energético do palco. Começou na guitarra aos seis anos, mas se encontrou de vez quando viu Dave Grohl atrás da bateria. “Tem um bagulho muito visual com ele, parece muito legal tocando”, explica. O gosto musical é diverso, com raízes no Nirvana, banda que marcou sua adolescência.
Caio, baixista, é quem traz uma densidade mais experimental para a banda. Suas referências vão do underground brasileiro à música instrumental. “É tipo uma escadinha que vai evoluindo”, comenta, ao citar nomes como Ana Mazzotti, Fusion Maru Band, Chão de Taco e Chococorn and the Sugarcanes. O som que ele consome reflete também o que cria e carrega uma proposta sensorial: “Parece que você está sendo elevado. Tu pode escutar tanto de forma passiva quanto ativa que tu vai ficar impressionado de qualquer jeito.”
Vitor, guitarrista, vê a música como um espelho da identidade humana. Influenciado por nomes como Charlie Brown Jr., Angra e também pelo universo do jazz fusion, ele se reconectou com a música depois de um tempo afastado. “Com o passar do tempo eu fui esquecendo um pouco o lance da música e fui indo por um outro caminho. Mas em algum momento da minha vida foi muito importante voltar”, comenta. “Charlie Brown é uma referência minha não tanto por causa da música em si, mas pela personalidade de todos da banda e como eles colocavam aquilo na música de certa forma.”
“A ideia da música Lixo ou luxo, do Brown, de que uma pessoa nunca é uma coisa só a todo momento e sim uma mistura de várias coisas fluindo ao mesmo tempo. me guia. A gente nunca é uma coisa só. Eu acho que essa noção não só guia minha vida, mas também guia na minha música. Tudo o que eu toco na música é a partir dessa noção, do lixo e luxo. Tudo que eu puder fazer que soe ambíguo, soe difícil de distinguir a característica principal eu gosto mais”, resume.
Cinco trajetórias diferentes, mas uma mesma verdade: fazer música que reflita o que eles são, mesmo quando é difícil definir.
A gente toca, mas vocês escutam?
Fazer música em Joinville também é atravessar outros caminhos, nem sempre tão inspiradores. Para a PlanoReal, estar inserida na cena underground da cidade significou, desde o início, encarar de frente a realidade velada de um cenário fragmentado, onde cada grupo parece viver em sua bolha. “Joinville tem toda uma cultura de segregação, de panela, uma coisa que não é falada, é tudo velado”, comenta João. Ainda assim, a banda encontrou na contramão disso uma motivação: se aproximar das pessoas, criar conexões reais e se manter acessível. “Parte do que a gente gosta de fazer é estar junto das pessoas”, completa.
Mesmo diante de desafios estruturais, como a pouca valorização da música autoral e a dificuldade em formar público, a banda acredita na força da comunidade. “Tem que ter senso de comunidade. Não porque a gente é bonzinho, mas porque a gente não tem opção. Isso de estrelinha não existe, porque a gente não sobrevive sozinho”, diz João. Lucas reforça: “Ainda mais em Joinville”.
Nesse contexto, parcerias como a com a banda Scumbags mostram que é possível sim haver troca verdadeira, onde uma fortalece a outra. Mas o cenário ainda é duro, especialmente quando o espaço do artista precisa disputar atenção com a sociabilidade desinteressada de quem vai ao show. Pedro conta que já esteve em eventos lotados, mas em que o público pedia para a banda abaixar o volume porque o som atrapalhava a conversa. “Isso acontece com muita frequência”, comenta Vitor. “E para quem tá tocando, é muito frustrante. Porque o som numa determinada altura anima de um jeito muito louco.”
Eles também apontam para um elitismo velado dentro da própria cena underground. “A gente sempre tentou fazer um som acessível para todas as pessoas. E isso, pelo menos no underground, nunca soou bem”, observa Vitor. A crítica é clara: há uma romantização do som pesado como algo mais legítimo ou conceituado, quando na verdade, muitas vezes, tudo o que alguém precisa é de uma música que abrace, que chegue primeiro e depois, talvez, venha o peso. Os integrantes reforçam suas vontades de serem essa “porta de entrada” para as pessoas.
Esse desejo de aproximação também se manifesta no modo como eles enxergam o próprio papel: tornar o que fazem acessível para os mais jovens, criar identificação além da música. “A gente quer trazer a juventude para voltar a dominar o espaço de sair de casa, se reunir, conversar, trocar ideias”, diz João. Mas isso não virá de cobranças. “Essa coisa de ‘apoia a cena senão a cena morre’ soa como esmola. O público precisa querer estar ali”, refletem. O caminho, segundo eles, está na comunicação direta com as pessoas e na construção de uma presença que ultrapasse os palcos.
“Quando eu era adolescente, tudo o que eu queria era descobrir algo assim. Mas eu não fazia ideia se existia na cidade”, conta Lucas. A sensação é de que ainda há muita gente em Joinville que pensa da mesma forma, acreditando que nada acontece, que não existem bandas, que não há cena. “Se a gente não chegou nessas pessoas, temos que trabalhar mais para dar um jeito de chegar”, diz João. “Tornar o negócio mais acessível para o máximo de pessoas. É assim que isso tem que crescer”, reforça Lucas.
Vitor conclui com um olhar mais estrutural sobre a cidade: “Joinville é gigante, poderia parecer uma capital, mas tem aura de interior”. E talvez esteja aí o grande paradoxo: um espaço cheio de potencial, mas que ainda não aprendeu a se reconhecer como vivo, musical e criativo. A PlanoReal tenta, dia após dia, mudar isso.
Parado no mesmo lugar
Lançada no dia 27 de junho, “Inércia” é a nova faixa da PlanoReal, e talvez também o sentimento de muita gente. A letra, composta por Pedro e João, fala sobre estar parado num lugar que já não faz sentido, vivendo uma rotina que não empolga, esperando por algo que nem se sabe bem o que é.
Sem romantizar o caos, a música é quase como um empurrão. Ela traduz com sinceridade aquela fase em que tudo parece igual demais, em que o mundo gira e a gente fica. Inércia combina melodia marcante com versos que soam como um desabafo coletivo, sobre o cansaço de viver no piloto automático e o desejo urgente de romper com o que já não faz sentido.
A faixa surgiu de forma natural, num momento comum entre ensaios. “A gente estava ensaiando para o show ao vivo do nosso primeiro disco e, em algum momento, eu peguei a guitarra e toquei o que hoje é o refrão e a intro da música”, lembra Pedro. A ideia foi guardada, mas voltou à tona durante a construção do novo EP da banda, ainda em produção. Foi ali que “Inércia” ganhou forma, com espaço para que cada integrante contribuísse com o que tem de mais pessoal.
É a primeira música escrita de forma coletiva desde a chegada de Pedro e Caio, marcando um momento importante na trajetória da banda. Antes deles, a PlanoReal já tinha um disco lançado, mas “Inércia” representa uma nova fase, em que todos constroem juntos. O processo partiu da estrutura inicial criada por Pedro e, aos poucos, a música foi ganhando corpo: Caio trouxe uma linha de baixo sobre a guitarra, Vitor compôs o solo e Lucas trouxe ideias marcantes na bateria. “Essa música não é uma regra, mas ela resume bastante como é o nosso processo de criação”, explica Pedro.
Mesmo sendo uma criação conjunta, quem escuta com atenção consegue identificar a digital de cada um nos timbres, nas escolhas e nas intenções. “As referências de cada um aparece. Dá para perceber de onde veio cada parte”, comenta a banda. E essa é uma das forças da PlanoReal: fazer música como grupo, mas sem apagar a individualidade de quem a compõe.
O lançamento marca um novo momento da banda, que segue fiel ao seu hardcore melódico, mas aposta em um lirismo cada vez mais visceral e honesto. Em breve, “Inércia” estará acompanhada de outras faixas que continuam explorando essa mesma inquietação: de existir, de resistir e, acima de tudo, de seguir criando.
Assista ao vídeo oficial da música no canal da banda no youtube (planoreal) ou escute “Inércia” no spotify através do link: SPOTIFY – PLANOREAL