
Jazz Crew leva música e cultura aos espaços públicos de Joinville
Iniciativa amplia o acesso à música instrumental e incentiva a formação de novos públicos, promovendo a arte como ferramenta social
Por Dyeimine Senn Schlindwein
Joinville recebe, ao longo de julho, o projeto “Jazz Crew – Música nas Ruas”, que leva apresentações gratuitas de jazz instrumental a diferentes espaços públicos da cidade. Os shows acontecem ao ar livre e têm como objetivo aproximar a população da música instrumental por meio de encontros acessíveis e abertos à comunidade.
Idealizado pelo músico, produtor e educador Rafael Vieira, o projeto é financiado pela Lei Aldir Blanc e propõe a ressignificação dos espaços urbanos como ambientes de convivência e manifestação artística. As apresentações acontecem no dia 18 de julho, às 19h30, no Museu de Arte de Joinville (MAJ); no dia 24 de julho, às 18h, na Saltare, dentro da programação do Festival de Dança de Joinville; e no dia 27 de julho, às 14h, no Museu Nacional de Imigração e Colonização (MNIC).
Aberto a todos os públicos, o projeto deve atrair desde estudantes e professores de música até famílias, jovens, adultos e idosos, além de artistas, produtores e agentes culturais. “É um convite para todos que acreditam no poder da arte como ferramenta de transformação social e fortalecimento de laços”, resume Rafael.
Jazz para todos
A proposta é clara: popularizar o jazz e aproximar o público desse gênero tão rico em história, improviso e interação. Para isso, o grupo Rafael Vieira & The Jazz Crew, formado por Fabio Oliveira (piano), Marco Antônio Iropeba (guitarra) e o argentino Marcos Archetti (contrabaixo elétrico), se apresenta em formato acústico.
Os arranjos das apresentações, assinados por Archetti, trazem uma roupagem contemporânea e sofisticada, mesclando composições autorais e releituras de clássicos do gênero.
A cada encontro, um músico convidado se junta ao grupo base, ampliando as possibilidades sonoras e tornando cada show único. Este ano, o projeto traz convidados de peso: o saxofonista cubano Elio Lorenzo, o trompetista paulista Gabriel Barbalho e o guitarrista catarinense Micael Graciki.
Conexão e troca cultural
Mais do que shows, o “Jazz Crew” é uma ação cultural que quer unir gerações, democratizar o acesso à música instrumental e estimular a convivência comunitária. A expectativa é reunir ao menos 300 pessoas nos eventos. “Queremos transformar nossas ruas em palcos abertos, convidando as pessoas a trazerem suas cadeiras de praia, suas famílias, seus amigos, para celebrar a música e a vida juntos”, destaca Vieira.
Como surgiu a ideia
A proposta surgiu da percepção de que os espaços públicos de Joinville, muitas vezes subutilizados, podem se tornar palcos vibrantes de arte e encontro. Inspirado na arte do improviso do jazz, Rafael idealizou um formato em que cada apresentação seja um convite à escuta, ao diálogo e à troca cultural. “O objetivo é criar um ambiente acolhedor, onde as pessoas se sintam à vontade para chegar, sentar, relaxar e curtir boa música em boa companhia”, explica.
Repertório destaca ritmos afro-brasileiros
O repertório do Jazz Crew – Música nas Ruas foi pensado para explorar a diversidade rítmica e harmônica do jazz contemporâneo, com destaque para artistas que ampliam as fronteiras do gênero. A curadoria musical, assinada por Rafael Vieira em parceria com Marcos Archetti, aposta em uma seleção menos centrada nos clássicos tradicionais e mais voltada a composições com identidade própria.
Entre os nomes escolhidos estão referências internacionais como Pat Metheny e Michael Brecker, ao lado de expoentes da música instrumental brasileira como Ayrton Moreira, Américo Pascual e o grupo Azymuth. A proposta, segundo Archetti, é construir uma experiência que mescle diferentes linguagens e provoque o público pela riqueza dos timbres e dos arranjos. “A gente buscou fazer uma mistura bastante interessante, com uma pegada rítmica que traz a identidade africana, a identidade brasileira, a identidade do groove”, explica o músico.
Os arranjos preparados por Archetti também se distanciam da estrutura convencional das formações jazzísticas, oferecendo espaço de destaque para todos os integrantes da banda. “Não buscamos tanto essa estrutura típica do jazz, onde apresenta a melodia, vai para solos longos e volta para a melodia. Tentamos colocar bastante convenção, viradas e sessões que valorizem a interação entre os instrumentos”, detalha.
Além da improvisação, a proposta valoriza a escuta coletiva e a construção compartilhada entre os músicos. Para quem vai ter contato com o jazz pela primeira vez, Archetti destaca que o público pode esperar uma experiência dinâmica, com espaço para o improviso e o protagonismo de cada instrumento, mas também com forte apelo rítmico. “A ideia é que eles vejam uma mistura entre muita liberdade individual e muita conexão entre os instrumentos, e que possam se envolver nessa parte dançante, da alegria que traz o ritmo e a troca entre os músicos.”
Foto: Divulgação
Projeto traz jazz e improviso para as ruas
O projeto “Jazz Crew” vai além de uma série de shows gratuitos ao ar livre em Joinville. Para os músicos convidados, participar significa integrar uma rede de amizade, compromisso e paixão pela música instrumental brasileira, um movimento que busca não apenas apresentar o jazz, mas também manter viva sua tradição e ampliar seu alcance.
O guitarrista Micael Graciki ressalta que a motivação principal vem da relação com o idealizador Rafael Vieira e a possibilidade de criar e tocar com amigos e parceiros musicais. Já para o saxofonista Gabriel Barbalho, o convite representa uma oportunidade de dar continuidade a um trabalho que acompanha desde o início da carreira, focado em improvisação e no fortalecimento da música instrumental: “Sempre que recebo um convite desses, para mim é mais uma oportunidade de fazer com que essa música continue viva, continue chegando nos ouvidos dos diversos públicos.”
Tocar jazz em espaços públicos, para esses músicos, é também uma forma de democratizar a arte. Gabriel destaca que levar música instrumental para as ruas ajuda a formar novos públicos, incluindo crianças, que têm pouco contato com esse tipo de apresentação. “Para mim, tocar em espaços públicos ao ar livre, com acesso gratuito, é justamente pensar na continuidade e na expansão dessa arte, desse estilo musical para o público geral.”
O saxofonista cubano Elio Lorenzo reforça essa ideia, lembrando que o jazz, embora tenha raízes profundas e uma história marcada pela resistência, ainda é pouco acessado por grande parte da população mundial. “Milhares de pessoas não têm acesso. Apenas um pequeno grupo da população mundial consome esse tipo de música. Então é bem importante para mim e para o projeto.”
A importância social do jazz é outro ponto comum nas falas. Para Graciki, o jazz reflete uma herança de luta e expressão da música negra, que permanece relevante no combate ao racismo, preconceito e à exclusão social. Barbalho aponta que o jazz é um estilo democrático, onde cada músico contribui para um resultado coletivo, e que sua história está marcada por tentativas de elitização: “É um símbolo realmente de resistência, onde a música resiste, ela continua crescendo, ela continua tendo metamorfoses.”
Para o público que acompanhará os encontros, os músicos prometem uma experiência rica e diversa. Gabriel anuncia um show animado, com repertório desafiador, enquanto Elio destaca a mistura cultural presente na formação do grupo, que une influências brasileiras, argentinas e cubanas, formando uma “explosão multicultural”. Micael complementa, descrevendo o espetáculo como dinâmico, interativo e cheio de improvisação, com músicas de grandes compositores interpretadas por uma banda reconhecida localmente.
O jazz como resistência e ponto de encontro
Para os músicos convidados, o jazz carrega em sua história um legado de luta e expressão coletiva. Nascido em meio ao contexto da escravidão nos Estados Unidos, o gênero se espalhou pelo mundo mantendo viva sua força política, social e cultural. Graciki aponta que o jazz nasceu como uma forma de resistência negra e, ainda hoje, carrega esse papel: “Ele era uma forma de expressão de revolta contra as amarras da sociedade, contra a escravidão e preconceito.”
Para Gabriel, a prática instrumental oferece uma oportunidade de liberdade criativa e formação de pensamento crítico. “Você não pensa individualmente, você pensa coletivamente, para que ele soe como deve soar.”
Nesse contexto, projetos como o Jazz Crew são compreendidos pelos músicos como espaços fundamentais de acesso e transformação. Lorenzo observa que o jazz ainda ocupa um lugar marginal no mercado da música e que ações como essa ajudam a construir relevância e visibilidade para o gênero. “A gente não tem muita relevância também por conta do mercado em geral. Muitas vezes as pessoas não consomem não só porque não conhecem, mas também porque não têm acesso a esse tipo de música.”
Micael reforça que levar o jazz para as ruas contribui para quebrar barreiras sociais, inclusive as que afastam pessoas de camadas populares de espaços culturais tradicionais. “Quando ela [o jazz] fica apenas no teatro, apenas na casa de show, a gente acaba afastando as pessoas desse tipo de música, não só pela questão financeira, mas também por uma questão social de às vezes se acharem não pertencerem àquele lugar.”
A relação entre arte e cidade também aparece com força nos relatos. Para Barbalho, a presença da música em espaços públicos ativa a sensibilidade coletiva e amplia o olhar sobre o espaço urbano: “Ela faz com que a gente desenvolva uma maior sensibilidade sobre o todo, sobre as pessoas, sobre o mundo.”
Micael complementa lembrando que a música atrai outras expressões culturais e ajuda a ocupar a cidade de forma criativa e acessível: “As artes populares andam em conjunto. O importante é que ela aconteça e que aproxime as pessoas das fazendas culturais da sua localidade, da sua cidade.”
Foto: Arquivo pessoal
Rafael Vieira e o projeto Jazz Crew
De fala serena, olhar atento e gestos contidos, Rafael Vieira carrega na postura calma a mesma precisão com que conduz baquetas sobre a bateria. Nascido em Joinville, o músico, produtor e educador é reconhecido por unir técnica, escuta e comprometimento com a formação artística. Começou na música aos 10 anos, tocando com o pai, e aos 15 já integrava sua primeira banda profissional, a Green Belly Express.
Formado pelo Conservatório de Música Popular de Itajaí e bacharel em Bateria pela Univali, Rafael consolidou uma trajetória versátil que transita entre palcos, estúdios e projetos educacionais. Tocou com artistas como Celso Blues Boy, integrou grupos como Camerata Dona Francisca, Joinville Jazz Big Band e Banda TerrAvista, e participou de turnês internacionais por países da América do Sul.
Também se destacou como produtor musical em estúdios de Santa Catarina, Paraná e São Paulo, além de ter atuado em projetos como o programa Fashion House, exibido na Fashion TV. Desde 2009, leciona na Escola de Música Villa-Lobos e coordena iniciativas de formação musical como o Sarau#, que já levou o espetáculo “Sarauzinho – A História do Chorinho para Crianças” a dezenas de cidades catarinenses.
Disciplinado e curioso, Rafael é movido pela escuta e pela coletividade. À frente do projeto Jazz Crew, busca criar conexões entre artistas, comunidade e espaço urbano por meio da música instrumental.
Foto: Arquivo pessoal
Os caminhos de Marcos Archetti
Nascido em Buenos Aires, o músico argentino Marcos Archetti cresceu em La Plata na infância. Passou pelo estudo do piano e da bateria antes de escolher o contrabaixo como seu instrumento principal. Durante sua formação, transitou por diversos estilos musicais, tendo iniciado pelos estudos de música erudita, mas sempre mantendo uma forte conexão com a música popular. Ao longo do tempo, desenvolveu a habilidade de tocar de ouvido e buscou uma liberdade maior para se expressar de forma espontânea.
A descoberta do jazz representou para Archetti uma oportunidade de ampliar essa liberdade expressiva em diferentes contextos musicais. Para ele, o jazz funciona como uma porta para explorar a espontaneidade, a interação e a improvisação, sem excluir outras vertentes musicais. O músico destaca que tenta incorporar a improvisação em variados estilos, como a música brasileira, a argentina e outras de diferentes origens, usando o jazz como uma forma de compreender a música que valoriza a liberdade individual e coletiva.
Como contrabaixista, compositor, arranjador e produtor, Archetti desenvolveu uma carreira que inclui turnês por vários países da América do Sul, entre eles Brasil, Uruguai, Chile e Colômbia. Em mais de vinte anos como arranjador profissional, trabalhou com conjuntos de câmara, big bands e orquestras, além de atuar na produção de discos, EPs, singles e projetos audiovisuais.
No campo acadêmico, Marcos foi professor e coordenador em disciplinas ligadas à linguagem musical na Universidade Nacional de La Plata, e no Conservatório de Belas Artes de Joinville. Seu trabalho pedagógico tem foco em um ensino que valoriza tanto aspectos humanos quanto cognitivos, buscando envolver diferentes correntes musicais com ênfase na expressão.
Publicou o livro “Improvisação – Um método para a construção da liberdade”, editado em português e espanhol pela Melos. Também colaborou na edição e desenvolvimento de obras didáticas, entre elas “Ritmática – Descobrindo e habitando nosso território rítmico”, de Mariano “Tiki” Cantero, e “Alma de Guitarra – Volume 1”, de Jorge Palacios.
Apesar de possuir uma formação musical em grande parte autodidata, estudou com músicos como Javier Malosetti, Alejandro Herrera, Omar Gómez, Christian Gálvez, Néstor Gómez, Pino Marrone, Itiberê Zwarg e Guillermo Klein. Também cursou Filosofia na Faculdade de Humanidades da UNLP, complementando sua atuação artística com uma base teórica multidisciplinar.
Foto: Arquivo pessoal
Elio Lorenzo e a descoberta do jazz
A relação de Elio Lorenzo com a música começou cedo, motivada por uma herança familiar. Ainda criança, em Cuba, ele foi impactado pela história de seu avô trompetista. Aos nove anos, já experimentava sons e ritmos. Poucos anos depois, por volta dos 13, teve o primeiro contato com o jazz. “O jazz mudou totalmente a minha percepção musical de vida. E eu falei desde aquela idade que isso era o que eu queria fazer.”
Antes disso, Elio estudava música erudita. Ele relata que a estrutura rígida da música clássica o levou a buscar novas possibilidades de expressão. Foi no jazz que encontrou liberdade. “A música erudita meio que te aprisiona a um instante, a uma partitura, a uma interpretação musical. O jazz não. O jazz, ele te liberta disso, te faz voar, improvisar, buscar outros caminhos, outras cores.”
Essa descoberta não só definiu o estilo com que Elio trabalha, mas também sua abordagem como músico: aberta à improvisação, ao encontro entre culturas e à transformação constante por meio da linguagem musical.
Foto: Arquivo pessoal
Gabriel Barbalho e sua trajetória no jazz
Gabriel Barbalho nasceu em São Paulo e iniciou seus estudos no trompete aos sete anos de idade, influenciado pelos irmãos que já tocavam na igreja. Começou a tocar em uma banda marcial e, anos depois, passou a ter aulas no projeto Guri Santa Marcelina. Foi nesse período que teve o primeiro contato estruturado com o instrumento.
Embora o termo “jazz” tenha surgido mais tarde em sua trajetória, a relação com a improvisação e a criação musical veio desde cedo. Gabriel conta que, mesmo com dificuldades técnicas nos primeiros anos, criar melodias e tocar de ouvido sempre foram práticas naturais para ele, antes mesmo de entender conceitos como improvisação.
Durante a adolescência, ingressou em um projeto social na capital paulista, onde um professor percebeu sua inclinação para o estilo e lhe entregou uma lista manuscrita com nomes de trompetistas considerados essenciais para quem queria aprender jazz. Entre os artistas indicados estavam Dizzy Gillespie, Freddie Hubbard, Wynton Marsalis, Nicholas Payton, Miles Davis, Clifford Brown e Lee Morgan. A partir desse contato, passou a escutar esses músicos aos poucos, até perceber que era por esse caminho que desejava seguir profissionalmente.
Formado em Trompete Popular pela EMESP – Tom Jobim, aprofundou seus estudos no estilo durante o curso, com ênfase em improvisação. Estudou com Daniel D’Alcântara, considerado seu principal professor dentro da linguagem jazzística, e teve contato com músicos como Nenê, Vitor Alcântara, Paulo Malheiros, Nelson Ayres e Thiago Costa.
Nesse período, também participou de apresentações ao lado de nomes como Nailor Proveta, Jorginho Neto, Ted Nash (Jazz at Lincoln Center Orchestra), Bruce Williams e o maestro Roberto Sion. Em 2017, participou de um intercâmbio com a Juilliard School, em Nova York, por meio de uma parceria com a EMESP. Durante nove dias, teve aulas, tocou com músicos da instituição e acompanhou apresentações na cidade, que considera um marco em sua relação com o jazz.
O trompetista segue desenvolvendo seu trabalho autoral, com influências de diferentes culturas e estilos musicais, além de integrar o grupo Manana Latin Jazz, onde atua como músico e produtor.
Foto: Arquivo pessoal
Do rock ao jazz: a jornada musical de Micael Graciki
A relação de Micael Graciki com o jazz não começou cedo, nem foi facilitada pelas circunstâncias. Criado no interior de Nova Trento, ele conta que teve pouco acesso à música instrumental nos primeiros anos da vida artística. Sem referências locais, iniciou sua trajetória tocando rock. Foi só aos 17 anos, ainda no ensino médio, que começou a pesquisar por conta própria sobre jazz e música instrumental, tentando entender por que tantos músicos consagrados valorizavam esse universo. “Comecei a procurar sobre música instrumental, sobre jazz, por conta própria, para encontrar o porquê de tantos músicos admirarem o ensino de música.”
A busca o levou ao Conservatório de Música de Itajaí, onde iniciou os estudos e conheceu Rafael Vieira. “O jazz entrou comigo na minha vida pelo Conservatório de Música, onde eu aprendi que esse tipo de música é muito importante para o desenvolvimento musical de uma pessoa e de um artista.”
Ao longo dos anos, o interesse virou ofício. Micael formou-se, seguiu compondo, tocando e ensinando. Hoje é professor de guitarra popular e guitarra jazz no próprio Conservatório que transformou sua trajetória. O estilo, segundo ele, moldou sua maneira de tocar e pensar a música: “Depois disso foi paixão à primeira vista e hoje faz parte da minha vida todos os dias.” Para ele, o jazz é uma linguagem viva, feita com entrega e afeto: “É uma música muito rica, os músicos fazem com muito esmo e fazem com muito amor e carinho.”