
Raízes nikkei em Joinville: gerações que florescem como o sakura
De hábitos domésticos a trajetórias no Japão, descendentes japoneses em Joinville recriam tradições e mantêm viva a identidade nikkei.
Por Priscila Pereira
Joinville, conhecida por sua forte herança alemã e italiana, também abriga uma comunidade menos numerosa, mas profundamente ligada às suas raízes: os descendentes de japoneses, conhecidos como nikkei. Diferente de cidades como São Paulo ou Curitiba, aqui não se formaram colônias inteiras, mas histórias que se desenrolam no cotidiano, no sabor do missoshiro, na disciplina das artes marciais e nas palavras em japonês ditas em casa. As trajetórias de Erica Miura e Kendi Sato, ambos Sansei, netos de imigrantes, revelam como a tradição e a adaptação se encontram na vida da maior cidade de Santa Catarina.

O legado familiar de Erica Miura
“Sou neta de japoneses. Os meus avós vieram de Hokkaido e Kagoshima de navio. A gente tem os passaportes e até fomos ao Museu da Imigração de São Paulo para confirmar os registros.” Assim começa a história de Erica Miura, 46, fisioterapeuta osteopata que mora em Joinville desde 2007.
Ela lembra que, na chegada, sentiu a diferença cultural: “Quando chegamos, não havia produtos japoneses aqui, Curitiba era a saída. Hoje existem restaurantes e lojas, mas antes dependíamos da capital paranaense”.
Em sua família, o idioma sempre foi preservado. Erica frequentou tanto a escola comum quanto a japonesa. Dentro de casa, falava japonês. Pequenos gestos reforçaram a tradição, tirar os sapatos antes de entrar, preparar pratos típicos, manter o respeito às hierarquias familiares.
A ligação cultural também se fortaleceu pelo bujutsu, arte marcial praticada por ela e seu irmão. “O dojo é um lugar onde a disciplina, o respeito ao mestre e a filosofia japonesa são vividos a cada treino. Para nós, é manter o elo com nossos antepassados”. Erica ainda passou sete anos no Japão como dekassegui no início dos anos 2000. Lá, trabalhou, estudou e consolidou o caminho que a levaria à fisioterapia. “A língua não foi obstáculo, meus pais sempre falaram japonês comigo. Isso me ajudou a me adaptar rápido e até a conseguir empregos melhores como tradutora”.

A memória de Kendi Sato
Kendi Sato, 47, professor de educação física e artes marciais, nasceu em Joinville em 1977, mas sua história começa em 1939, quando seus avós deixaram Hokkaido. Eles desembarcaram em Santos, trabalharam em fazendas de café no interior paulista, mudaram-se para o Paraná e, após dificuldades, fixaram-se em Joinville.
Na infância, Kendi viveu um contraste: “Na escola eu era sempre o “japa”. Não havia outros japoneses por perto. Em casa, as refeições e os costumes eram diferentes. Isso me marcou muito”.
O movimento dekassegui também atravessou sua vida. Kendi passou três anos no Japão e seu pai quase 15, tornando-se tradutor em uma empresa. “Hoje ensino algumas palavras em japonês para minha filha, que é Yonsei. Ela sonha em conhecer o Japão”.
As tradições culinárias continuam sendo ponte com a memória familiar: “Missoshiro e tempurá sempre aparecem nos encontros. Não todo dia, mas em momentos especiais. Isso nos conecta”.
Gerações nikkei: identidade em camadas
Os termos usados para nomear as gerações revelam diferentes experiências:
- Issei: imigrantes nascidos no Japão;
- Nissei: filhos já nascidos no Brasil;
- Sansei: netos, caso de Erica e Kendi;
- Yonsei: bisnetos, como a filha de Kendi.
Cada camada traz novos sentidos. Os Issei lutaram com a língua e com a adaptação; os Nissei equilibraram dois mundos; os Sansei cresceram em meio a contrastes; e os Yonsei hoje buscam reconectar-se de forma afetiva, seja pelo idioma, pela culinária ou pelo desejo de visitar o Japão.
O médico aposentado Mário Sato, 77, tesoureiro da Aliança Cultural Brasil Japão de Joinville, lembra que a entidade, fundada em 1993, reúne hoje cerca de 40 famílias associadas. “Hoje a maioria dos nossos associados vem com amor à cultura japonesa e não são descendentes”, afirma. Apesar da menor procura formal pela associação, a tradição segue preservada em diferentes frentes, como nas práticas marciais de descendentes como Erica Miura e Kendi Sato, que mantêm viva a ligação com os valores e expressões culturais japonesas em Joinville.
Sakura Joinville 2025 celebra segunda edição com mais público e novas atrações
A 2ª edição do Sakura Joinville mostrou que a cultura japonesa conquistou espaço definitivo no calendário da cidade. Realizado na Expoville, o festival reuniu milhares de visitantes ao longo do fim de semana, com oficinas, apresentações e atividades voltadas tanto para descendentes quanto para o público em geral (O Município Joinville).
A programação foi marcada pela diversidade: além das tradicionais apresentações de taikô e exposição de bonsais, o evento trouxe oficinas de origami, demonstrações de artes marciais e espaços dedicados à culinária japonesa, onde pratos como yakissoba, tempurá e doces wagashi atraíram longas filas (Visite Joinville). O público também acompanhou novidades, como concursos de cosplay e batalhas de K-pop, além da seletiva oficial catarinense do Miss Nikkey 2025, que movimentou jovens participantes e ampliou o alcance do festival entre diferentes gerações (Folha da Serra 2).

Outro ponto alto foi a apresentação do projeto do futuro Parque Sakura Joinville, que prevê um espaço permanente de convivência e contemplação inspirado na cultura nipônica. A proposta foi bem recebida pelo público, assim como a presença de mascotes e atividades interativas que aproximaram ainda mais crianças e famílias (Jornal O Correios SC). Consolidando-se como um dos maiores eventos da cultura japonesa de Santa Catarina, o Sakura Joinville é mais do que um evento cultural: é um espaço de integração, onde a simbologia da flor de cerejeira se traduz em pertencimento, renovação e celebração coletiva. A programação completa segue disponível no site oficial do festival.

Mais do que uma árvore, a cerejeira japonesa é metáfora de vida. No Japão, sua floração marca festivais e rituais coletivos de contemplação, o hanami. No Brasil, e especialmente em Joinville, ela se tornou símbolo afetivo para descendentes que associam sua brevidade à própria condição de imigrantes e seus herdeiros.
Além da beleza, o sakura carrega ensinamentos de resiliência e renovação: a árvore permanece meses sem flores, até que na primavera ela se enche novamente de cor. Para as famílias nikkei, isso reflete o próprio ciclo da imigração, períodos de dificuldade e silêncio seguidos de novos começos.As histórias de Erica e Kendi mostram que ser nikkei em Joinville é viver em constante movimento. Não se trata apenas de guardar memórias, mas de ressignificá-las: falar japonês em casa, cozinhar receitas tradicionais, praticar artes marciais, ensinar aos filhos valores de respeito e disciplina. E, para Kendi, nenhuma imagem traduz melhor essa identidade do que a flor de cerejeira: “O sakura floresce só por algumas semanas, representa a vida: intensa e passageira. A gente tem que aproveitar o máximo”.