Guará se torna símbolo dos cuidados ambientais com aves silvestres em Joinville
Dados do site Visite Joinville indicam que o município possui 488 espécies de aves, cerca de um quarto do total nacional
Por Caroline de Apolinário
Durante décadas, a ave guará (Eudocimus ruber) esteve ausente nos manguezais de Joinville. Com declínio populacional intenso na década de 1950, a espécie desapareceu da região, ameaçada pela ocupação humana e a degradação dos manguezais. O cenário mudou apenas em 2010, quando os bandos começaram a ser vistos novamente. Desde então, essa espécie não apenas retornou, mas passou a colorir os céus e manguezais de Joinville, tornando-se um símbolo da recuperação ambiental e da resiliência da natureza.
Alexandre Venson Grose, 42, biólogo, consultor ambiental e presidente do Clube de Observadores de Aves (COA Joinville), destaca que o reaparecimento está diretamente relacionado à recuperação dos manguezais. “Se tem mangue, tem guará; se não tem, ele some. É um animal que vive exclusivamente nesse ecossistema e hoje volta a ser avistado em diferentes pontos da região”, comenta.
O manguezal é frequentemente visto de forma negativa pela população, em grande parte devido à contaminação, que intensifica seu odor característico. De forma natural, o ecossistema possui um cheiro mais forte, mas em locais sem despejo de esgoto, o cheiro é menos intenso. Em 2024, Joinville atingiu 50% de cobertura de redes coletoras de esgoto na cidade, o que ainda deixa parte do ecossistema suscetível à poluição.
Em seu doutorado, Alexandre passou quatro anos estudando a ave de plumagem vermelha, acompanhando sua reprodução e comportamento. Segundo ele, o animal é importante para a região por ter desaparecido por décadas e por evidenciar a vulnerabilidade da fauna frente à ação humana, mostrando que espécies inteiras podem desaparecer, às vezes de forma definitiva.
Hoje, a população local é estimada em cerca de 3.500 indivíduos, número que depende da preservação contínua do manguezal. O município de Joinville abriga o único local de reprodução da espécie em Santa Catarina, na Ilha do Jarivatuba, próxima à foz do Rio Cachoeira, dentro da Baía Babitonga, onde o ciclo reprodutivo ocorre regularmente desde 2011.
Além de sua importância ecológica, o animal chama atenção pela coloração intensa das penas. “É uma espécie que tem uma tonalidade viva muito forte, que se intensifica principalmente na reprodução. Ele fica ainda mais vermelho porque é uma estratégia de aproximação entre os casais”, comenta Grose. O biólogo reforça que não é raro observar grandes bandos no final do dia em locais de Joinville como Vigorelli, Morro do Amaral e Espinheiros.
Durante o acompanhamento dos ninhos, Grose percebeu um efeito inusitado da interferência humana: resíduos urbanos, como elásticos de dinheiro, eram confundidos pelas aves adultas com organismos do mangue e levados aos filhotes, comprometendo o cuidado e o desenvolvimento natural. Para ele, é “um exemplo claro do impacto que o que a gente gera todos os dias pode ter sobre um animal”.
O guará, portanto, é um símbolo da fauna local, e também um indicativo da importância de proteger os manguezais, que em Joinville ocupam cerca de 36,5 km², mais da metade da área total da Baía. Esses ecossistemas funcionam como berçários naturais para peixes, moluscos, caranguejos e aves.
Projeto Guará mobiliza comunidade e amplia práticas de conservação
O Projeto Guará nasceu de uma iniciativa da Polícia Civil em Joinville, após a observação da presença da ave no bairro Espinheiros, região de manguezais da Baía da Babitonga. O agente Rafael Amorin e a delegada Tânia Harada idealizaram a proposta com o objetivo de engajar moradores e instituições em ações de preservação ambiental.
“Quando visualizamos o guará no bairro Espinheiros, pensamos em uma forma de envolver a comunidade na proteção da espécie, que já chegou a ser considerada extinta em Santa Catarina”, esclarece Amorin. A ideia foi criar um movimento que tivesse várias frentes de atuação, desde a educação ambiental até mutirões de limpeza, passando também por atividades culturais e parcerias institucionais.
A Polícia Civil reuniu esforços de diferentes setores e instituições, transformando o Projeto Guará em uma iniciativa coletiva. Entre os parceiros envolvidos estão a Docol, Unisociesc, Univille, Prefeitura de Joinville, NDTV e o COA Joinville. O objetivo era unir forças pela conservação da espécie símbolo da região, que, além de ter relevância ecológica, representa a beleza e a sensibilidade que inspiram a preservação ambiental.
Amorin lembra que o processo de organização exigiu articulação e tempo. “O projeto foi criado em janeiro, aprovado em maio pelo Instituto Ingo Doubrawa da Docol e teve início em julho. Até reunir todos os parceiros e garantir a verba, foi um período de preparação. Agora seguimos com as próximas etapas, que envolvem crianças e moradores do bairro”, explica.
Uma das primeiras atividades do projeto foi o mutirão de limpeza dos manguezais, realizado em julho deste ano. A ação contou com a participação de mais de 40 voluntários, que atuaram por cerca de quatro horas e recolheram aproximadamente 280 kg de resíduos. “Recolhemos muito mais material do que imaginávamos. As caçambas ficaram cheias e tivemos que encerrar o trabalho porque não havia mais como comportar o lixo retirado. Chegamos a uma saturação”, conta Amorin.
Apesar de ser uma ação pontual, o objetivo é despertar a consciência ambiental. Para o presidente do COA Joinville, Alexandre Grose, que participou da mobilização, o efeito do mutirão também é educativo, “a limpeza mostra para as pessoas que o manguezal é uma área importante. Se a gente protege o manguezal, estamos protegendo o guará e outras espécies que dependem desse ecossistema”.
O biólogo concorda que a iniciativa pode ir além da proteção da ave em si. “Quando usamos o guará como espécie bandeira, estamos chamando atenção para a conservação de todo o manguezal e de outros animais que dependem dele. O lixo é um problema sério, que afeta várias espécies com relatos de ingestão, morte e contaminação. Por isso, ações como essa precisam se repetir e ganhar força”, conclui.
Além do mutirão, o projeto prevê ações educativas em escolas do bairro Espinheiros, como um concurso cultural em que crianças receberão representações da ave. Também estão previstas iniciativas para aproximar a ave da comunidade, envolvendo comerciantes locais que pretendem criar pratos, bebidas e até artesanatos inspirados na espécie.
Observação de aves une preservação e lazer
A observação de aves, ou birdwatching, é uma prática que consiste em observar atentamente diferentes espécies de aves em seus ambientes naturais, com o objetivo de conhecer seus comportamentos, padrões de voo, cantos, cores e hábitos alimentares. Para realizar essa atividade, os observadores costumam utilizar equipamentos como binóculos e câmeras fotográficas, que permitem enxergar e registrar detalhes que seriam difíceis de perceber a olho nu.
No total, Joinville conta com mais de 488 espécies de aves registradas, resultado da Mata Atlântica que ainda cobre grande parte do município e oferece refúgio para essa diversidade. Segundo o site “Aqui tem Mata?”, a cidade preserva 61.276 hectares de Mata Atlântica, área equivalente a quase 80 mil campos de futebol e correspondente a 54,33% da vegetação original.
Rosilene Rocha, 45, formada em Gestão Comercial, mora em uma chácara na Serra Dona Francisca, região do Quiriri (SC), onde se dedica aos cuidados com animais resgatados. Apaixonada pela natureza, começou há cerca de 13 ou 14 anos a observar aves, transformando o que era um hobby em parte da sua rotina. “Eu moro isolada, no meio da natureza. Quando me mudei para a área rural, é outro mundo. Há muito mais árvores, então começo a colocar bananas, mangas, fazer um comedouro, colocar grãos… e, aos poucos, elas vão aparecendo, e a gente se encanta”, recorda.
Ao longo dos anos, ela passou a registrar o que via em fotografias, aprendendo sozinha a manusear a câmera, fazendo cursos para aprimorar a técnica e se aprofundando cada vez mais na prática. Praticamente todas as imagens publicadas no perfil Quintal de Casa Fotos, no Instagram, foram feitas dentro de sua própria propriedade, sendo raras as que mostram locais fora do quintal da casa.
Há cerca de dois meses, Rosi conseguiu se aproximar pela primeira vez do guará, uma espécie que admira. A fotógrafa lembra que estava bastante ansiosa e acompanhada do grupo de observadores no Parque Caieira, em Joinville. Apesar das dificuldades, mesmo com o tempo ruim, conseguiram registrar a foto desejada da ave.
O início da jornada de observação foi também um passaporte para conhecer outras pessoas. A partir de grupos de WhatsApp e das redes de observadores de aves, Rosi mergulhou em novas descobertas. “Tem aves que a gente não conhece, coloca no grupo, diz o local e já te ajudam a identificar a ave, e o grupo vai crescendo, e sua paixão vai aumentando”, esclarece.
A admiração e a prática de observação também são compartilhadas dentro de casa. O marido de Rosi, Fábio Ricardo Botelho, 47, técnico de programação, participa das descobertas, mesmo sem se dedicar à fotografia. “Às vezes eu tô fazendo as coisas de casa, ele vem rapidinho falar que tem uma ave diferente ali, aí eu já pego a câmera. Então, ele acaba convivendo comigo e acaba observando também”, conta.
Este ano, Rosi também se juntou a um movimento crescente de mulheres na observação de aves. Ela participou da primeira edição da Passarinhada Feminina do COA Joinville, clube do qual é membro. “Foi bem bacana, tem tantas mulheres. A gente, quando vai passarinhar, geralmente é duas ou três mulheres, o resto são homens. Então, eu achei legal isso. Ver que está crescendo, é bem bacana.”
Para Rosi, o clique nem sempre é o mais importante. Mesmo quando a luz ou o clima trazem dificuldades, ela acredita que o verdadeiro valor está na experiência e na troca de ideias entre os participantes nas saídas fotográficas. Ainda assim, faz questão de se preparar para não perder o momento certo. Com animação, ela lembra dos últimos encontros e conta que sempre leva a câmera e o binóculo. Nessas ocasiões, também escolhe roupas específicas, já que peças chamativas podem espantar as aves; é preciso estar o mais camuflado possível. Tudo precisa estar em ordem, porque quando o pássaro pousa, o instante é muito rápido.
O WikiAves, plataforma brasileira colaborativa e interativa dedicada à observação de aves no Brasil, tornou-se um aliado para pesquisa e compartilhamento entre os observadores. “Eu comecei a usar mostrando as minhas fotos, porque até onde é a região que eu moro, tem muita ave que não tem em outros locais. Quando eu não sei, eu vou lá e procuro. Então é uma forma de compartilhar”, comenta a fotógrafa.
Proteção de aves e animais silvestres ganha atenção crescente
Se para observadores de aves como Rosilene Rocha, o fascínio está em registrar espécies em liberdade, a Polícia Civil de Joinville encara um cenário oposto. A captura e o cativeiro ilegal de aves silvestres. O agente Rafael Amorin, que atua diretamente nessa área, explica que o município é um dos que mais registra apreensões desse tipo em Santa Catarina.
Segundo ele, há uma forte tradição cultural ligada à captura de pássaros, especialmente os canoros, que são utilizados em torneios de canto e até em apostas. Entre as espécies mais comuns estão o trinca-ferro, curió, coleirinho e pintassilgo. Também há registros frequentes de papagaios, mantidos ilegalmente como animais de estimação. “Não é apenas pela posse. Muitas vezes, essas aves têm alto valor no comércio ilegal e acabam sendo exploradas para competições clandestinas”, destaca.
No Brasil, a criação de aves silvestres em cativeiro é ilegal e punida pela Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998), especificamente no Artigo 29, que proíbe a aquisição e guarda de espécimes silvestres sem a devida autorização. Para ter aves silvestres legalmente, é preciso obter licença do IBAMA, adquirir o animal de criadores autorizados com certificado de origem e nota fiscal, e garantir que seja anilhado para comprovar que não foi retirado da natureza.
A atuação da Polícia Civil nas apreensões de aves silvestres acontece a partir de denúncias. Diferentemente da Polícia Militar Ambiental, que atua de forma preventiva, a Polícia Civil trabalha no pós-crime, investigando os casos já configurados. “Nós só podemos agir com elementos mínimos, provas que sustentem uma investigação. Isso pode ser uma foto, um vídeo, até a gravação da ave no ambiente, mas precisa haver materialidade para o pedido de busca e apreensão ser autorizado pela Justiça”, explica o agente Amorin.
Os números evidenciam a dimensão do problema. De acordo com dados da própria Polícia Civil, em 2024 a Delegacia de Proteção Animal resgatou cerca de 320 animais, entre domésticos e silvestres. Em 2025, apenas até setembro, o total já ultrapassava 590 registros, praticamente dobrando as ocorrências em menos de um ano. Após o resgate, os animais passam por triagem veterinária. Com autorização do Instituto de Meio Ambiente (IMA), podem ser reabilitados e devolvidos à natureza, ou encaminhados a zoológicos e centros de conservação.
Além das aves, a polícia também já se deparou com outros animais mantidos em situação irregular, como jiboias e até um macaco-prego, o que mostra a variedade de espécies envolvidas no tráfico e na posse ilegal. Casos envolvendo espécies ameaçadas também já ocorreram. O agente citou a apreensão de papagaios-de-peito-roxo, uma espécie que não é típica da região, mas que mesmo assim foi encontrada em residências da cidade. “Isso mostra como o problema é mais amplo e não se restringe apenas às aves locais”, ressalta.
Amorin reforça que o papel da sociedade é importante para combater esses crimes. As denúncias podem ser feitas de forma anônima pela Delegacia Virtual da Polícia Civil, pelo telefone 181 ou ainda pelo WhatsApp disponível no site da corporação.
