Egito: impressões de uma turista-repórter
Por Raquel Ramos
O Cairo é uma cidade de contrastes. É linda. É poluída. É encantadoramente congestionada, não só pelo trânsito. É preciso compreendê-la antes de julgá-la. Ela tem o barulho ensurdecedor do idioma árabe. Forte, alto e masculino contrabalançado pelo silêncio das vozes femininas abafadas sob o Niqab, véu de cor preta que cobrem os seus rostos.
Desprenda-se do conceito de cidades europeias ou americanas e embrenhe-se num mundo cultural fascinante. Só assim será possível entender a cidade. A cultura é alicerçada na religião muçulmana e por isso mesmo complexa. O tempo está sempre submetido ao horário das orações. É estranho até que se compreenda a dinâmica, porque ao final tudo funciona.
A chegada
Após 36 horas de viagem entre aeroportos e voos, finalmente o avião iniciou as manobras de aterrissagem. Era madrugada, pouco se via lá de cima, apenas luzes. Muitas luzes que anunciavam a chegada ao Cairo, capital do Egito, dando a dimensão da megalópole que encontraria.
Comumente, antes de uma viagem, costumo ler e estudar sobre o país e cidade de destino. Se, com essa prática, as surpresas acontecem, no caso do Cairo, a falta dela poderia ser desastrosa. Lidas e relidas as instruções, ainda assim estava ansiosa diante do desconhecido país. A tensão para obter o visto de entrada, ali mesmo no aeroporto, era só uma das minhas preocupações. Embora Shaimaa Hassan, agente de viagem da Menphis Tour, tenha garantido que aquele era um procedimento normal, sabemos que esta é uma burocracia que se obtém antes de sair do seu país.
Por entre os corredores do aeroporto, já olhando os indecifráveis letreiros escritos em árabe, avistei um homem com a famosa plaquinha com o meu nome. Alguém me esperava e falava espanhol. Um alívio. Foi a primeira vez que vi funcionários de agência de turismo esperando o passageiro na parte interna, antes da imigração e esteira de retirada das malas.
Foi então que entendi: era ele quem iria fazer o encaminhamento do visto. Como previamente avisada, já tinha à mão o meu documento e 25 dólares para pagamento da taxa. O homem se dirigiu a um guichê e voltou com o passaporte carimbado, sem nenhum problema, como Shaimaa havia dito várias vezes. Partimos então para o serviço de imigração, já na companhia de mais dois casais brasileiros, que se juntaram para o mesmo fim.
Tudo resolvido, malas na mão, o que é sempre um alívio, ainda no aeroporto, fomos para o primeiro câmbio para a moeda daquele país. A nota de Libra Egípcia estampada com a Esfinge de Gize, pelo Central Bank of Egipty, deu-me a certeza de estar em solo egípcio. Outra providência tomada ali mesmo foi a compra de um chip de celular local, para uso de internet fora dos ambientes de wi-fi.
No hotel
Dentro da van com destino ao hotel, o trajeto foi feito por uma avenida contornada de tamareiras. Pela primeira vez eu via a árvore que produz a tâmara. Um fruto conhecido por nós somente embalado em caixas de papelão na época de Natal. Uma mistura de sentimentos tomou conta de mim, diante de tanta beleza, ainda assim o novo, o inusitado, o desconhecido me causava insegurança. Essa sensação se acentuou na chegada ao hotel, com a passagem por barreiras de segurança e detectores de metal.
Curiosamente, Shaimaa, uma egípcia que estudou e fala fluentemente o português, comentou, alguns dias depois, que tudo aquilo era para a nossa segurança. Acrescentou que, após colocarem policiais armados, seu povo se sentia livre para caminhar pelas ruas. Passei a olhar aquilo de maneira diferente. Não sei como, mas o calor humano daqueles homens barulhentos e seus sons em erres emitidos da garganta conseguem, como que por mágica, parecer realmente nos proteger. Tudo o que se fala sobre o assédio masculino, não vi.
A escolha por se hospedar no Grand Nile Tower, no centro do Cairo, diferente da oferta inicial de ir para Gizé, com vista para as pirâmides, foi acertada. Deparar-se com o Nilo refletido pelas luzes a sua volta foi fundamental para aceitar a triste realidade de um rio poluído quando encontrado à luz do dia. Ainda assim, mesmo que não o vejamos como gostaríamos, ele é grandioso.
O Grand Nilo Tower tem uma imponente entrada. Mais suntuosa do que muitos dos hotéis em que já me hospedei e com o valor da diária menor do que muitas pousadas que estamos acostumados a pagar no Brasil. O café da manhã é impecável. O grandioso saguão e seus imensos lustres repleto de escrivaninhas, móveis e sofás espalhados decorativamente.
Incomodativo e desagradável é o cheiro de cigarro impregnado em ambientes internos, inclusive dentro dos quartos dos hotéis, de uma forma geral. O fumo é uma prática habitual entre os homens egípcios e não há restrição de local para fumar, exceção feita aos ambientes de refeições. Nos lounges, os narguiles estão disponíveis para todos. Há que se adaptar.
A opção da viajar durante o inverno egípcio foi oportuna. Era janeiro, quando a temperatura média varia entre 15 e 20 graus. Sol, vento e friozinho à noite. Não faltou disposição para as longas caminhadas muito bem alertada que fui pelo ortopedista, referindo-se aos meus joelhos já desgastados. Sem dor e sem cansaço, além do normal, o que havia mesmo era muita expectativa e ansiedade pelos passeios aos monumentos seculares que estavam por vir. Porém a história deixo para os especialistas, arqueólogos, historiadores e tantos materiais disponíveis para consulta. Tudo o que relato foi o que vi e o que senti.
A cidade do Cairo
Essa bela e tumultuada capital tem uma desorganização organizada, própria dela. Ela tem a cor nude da areia do deserto. A discrição das mulheres que só expõem os olhos e escondem o corpo sob vestes compridas, mas não as subestimem por esta aparência. É cultural e uma opção delas. Nas vitrines de roupas femininas, o que se vê são trajes sensuais e muito brilho. Da mesma forma, mostram ao mundo ocidental que o uso das vestes compridas não são apenas panos pretos jogados sobre seus corpos. Eles merecem cuidado, atenção, detalhes e há lojas especializadas nestes trajes.
O Cairo carrega a dureza da vida de seu povo estampada em faces sem muitos sorrisos. Ela tem sol e o clima do deserto marcados como vincos rasgados na pele do rosto das pessoas. Para amenizar tudo isso ela tem a marca da passagem do menino Jesus com Maria e José, fugidos do rei Herodes. Simplesmente emocionante.
A Cidade tem o ouro das tumbas em exposição no Museu do Cairo. Em cada galeria ou sala é possível estar por entre os tesouros desenterrados das areias e a história da humanidade. Ela tem incontáveis mesquitas com torres do tipo Minarete, por isso é chamada de “Cidade dos Minaretes”. É o local de onde o almuadém, homem encarregado de convocar em voz alta os mulçumanos para as cinco orações diárias, o faz com pontualidade britânica.
Trânsito e comércio
Há algo que ninguém que vá à cidade do Cairo, deixa de comentar, de se assustar e, mesmo sem compreender, passa a aceitar. É o trânsito e o comércio no mercado Khan El Khalili. Nem o mais fiel vídeo do YouTube é capaz de mostrar o que é essa realidade. Nem pedestres nem carros obedecem à faixa ou placa de trânsito. Atravessam as ruas por entre os carros, ninguém respeita semáforo, mas também ninguém atropela ninguém e, acredite, é sem estresse. As buzinas soam estridentes como alertas e não como ofensas. Estranhamente não há ônibus de transporte urbano. Em contrapartida, as vans estão lá aos milhares.
A experiência no mercado é sem descrição. No Egito, pechinchar o valor na hora da compra funciona como uma tradição. Essa é uma prática enraizada no sangue do homem egípcio e a negociação parece não terminar nunca. Por maior que seja o desconto obtido você tem a sensação de que foi explorado. E tenha certeza de que foi, porque eles nunca saem perdendo. Qualquer mercadoria você consegue adquirir pela metade do preço, às vezes muito menos.
Se você se nega a comprar eles o seguem pelos corredores do mercado a insistir e fazem uma contraproposta. Ainda assim, é possível dizer não para que eles abram a possibilidade de você fazer a oferta. Este vai e vem pode levar horas até que a compra se concretize. É muito cansativo e, em muitas situações, preferi não demonstrar interesse por alguma mercadoria a enfrentar toda essa mediação. O trabalho é essencialmente feito por homens. Não há mulheres trabalhando nas lojas do mercado.
Comida e suco
Também não tive problema com alimentação ou a tão profanada água. Num passeio a pé pelo centro da cidade, não resisti à cor vermelho-rosada do suco de romã, um dos frutos mais conhecidos do Egito. Bebi sem me dar conta se era ou não feito com água mineral. E, certamente, não era. Atraída pelo homem vestido em traje típico, provei o sabor do suco de amora. Sobre frutas, o morango tem uma consistência e doçura que nunca senti nada igual em outro lugar.
Durante outro passeio pela rua, fui abordada por um casal que, ao me ouvir falar português, parou para conversar. Tratava-se de uma brasileira casada com um funcionário do corpo diplomático egípcio no Brasil. Eles comiam e também não resisti ao aroma da comida vendida no carrinho de rua. Provei. Tratava-se de um delicioso preparo líquido, como um caldo, feito de grão de bico e aveia.
Se você for ao Cairo, não pode deixar de comer Koshary no Abou Tarek, um restaurante no centro da cidade. É bem popular, lotado de pessoas. Havendo disponibilidade, é possível sentar em qualquer mesa, mesmo que já tenha outras pessoas. Ninguém ocupa lugar para ficar conversando. Lá os clientes comem exageradamente rápido e a rotatividade é assustadora.
Koshary é uma comida típica do Egito, feita com macarrão, arroz, lentilha, grão de bico, molho de tomate e cebola frita. À parte são servidos molho de tomate, muito bom e bem temperado, molho de vinagre e alho, além da pimenta. Cada ítem é oferecido para realçar o sabor do prato. Feita basicamente de carboidrato é uma refeição popular e barata.
Enfim, as pirâmides
Passada a primeira semana no Egito, depois de ir até Abul Simbel, no extremo sul, voltamos ao Cairo. Deixar para conhecer as pirâmides por último foi uma escolha. Mais do que uma decisão de logística, foi de estratégia e não poderia ter sido mais acertada. Nada melhor do que retornar com esta última imagem na memória.
Poucos sabem, mas a Grande Esfinge e as Grandes Pirâmides estão localizadas em Gizé, a terceira maior cidade do país, na margem ocidental do rio Nilo. A proximidade de 20 km e o tráfego feito sem sair da região metropolitana dá a impressão de estar em território da capital Cairo
Finalmente elas. Seculares, misteriosas e onipresentes na história do Egito. São só três montes de pedra sobre a terra árida, mas que fazem você se calar diante de tanta magnitude. Há que se reverenciar os egípcios diante delas. Estão lá e um pensamento é inevitável. Revivo os tempos de escola e das aulas de História Antiga do professor Carlos Humberto Perdeneira Correa, na Faculdade de História. Só resta uma conclusão: elas têm um poder de sedução que leitura nenhuma, estudo ou fotografia são capazes de transmitir tamanha a grandeza.
Construídas pela civilização do Antigo Egito, as pirâmides eram mausoléus que serviam para assegurar a existência do faraó após a morte. Preparados com antecedência, lá eles depositavam tudo o que pudessem precisar, desde ouro, alimentos a outros objetos. Impressionaram-me as milhares de estatuetas de homem feitas em ouro, no tamanho próximo de 30 centímetros, encontradas nas tumbas e expostas no Museu do Cairo. Elas representavam os escravos que acompanhariam os faraós para servi-los na próxima vida. Não sei se é correto afirmar que davam mais importância à morte do que à vida, mas certamente acreditavam em uma nova existência.
A história do Egito é instigante e mutante. Ainda exaustivamente estudada, por lá nada é definitivo. A cada descoberta, a cada escavação, importantes informações são acrescentadas a essa antiga civilização de mais de 4000 anos.