Entre o real e o virtual: a consolidação das streams como forma de entretenimento
Por Heloisa Krzeminski e Jéssica Horr
Sentar em uma cadeira confortável, ligar o computador e esperar alguns instantes até que a máquina esteja pronta para usar. A plataforma de transmissões ao vivo já está na barra de favoritos do navegador, esperando para ser clicada. Nela, que predomina em roxo e colorido, dependendo de qual criador de conteúdo estiver ao vivo no momento, é possível ocupar os dois lados da moeda – ou da “tela”, quer dizer, o de streamer, que se coloca à disposição por duas, três, quatro, cinco, dez horas com o objetivo de entreter quem passa pela live. Ou o de telespectador, que pode escolher tal qual como em uma zappeada de canais qual transmissão vai assistir naquele dia.
Agora faltam poucos instantes para a stream começar. Hora de colocar o fone de ouvido, testar o microfone e configurar o programa que vai fazer a ponte entre a câmera e o computador ou celular do visualizador. Depois de uma respiração profunda, uma ida ao banheiro e um cafezinho, é o momento de apertar o botão que dá início à live.
Cada streamer tem um jeito próprio de abrir a transmissão, com bordões, piadas internas e trejeitos característicos. Os detalhes vão se criando conforme o público desenvolve mais intimidade com o criador de conteúdo. Público que, aliás, só cresce a cada ano. Dados do ESCharts mostram que, apenas entre janeiro e maio de 2021, foram mais de 10 bilhões de horas assistidas na plataforma Twitch, a mais famosa do ramo, quase o dobro do que no mesmo período no ano passado.
As visualizações de lives dentro da Twitch cresceram também de 2019 para 2020, foram mais de 143 mil visualizações a mais para ser exato, assim como o número de streamers. Embora a pandemia do coronavírus tenha um provável papel importante nesse aumento, o estilo de fazer transmissões ao vivo para jogar ou somente conversar com o público não é nada novo. Vários criadores de conteúdo migraram para a plataforma roxa vindos do Youtube, outro site famoso de compartilhamento de vídeos, depois de algum tempo cultivando uma audiência por lá.
Esse é o caso de Daniel Heldt Urban. O escritor enxergou na Twitch uma alternativa para continuar produzindo conteúdo na internet depois que seu canal do Youtube sofreu uma queda no engajamento ao começar a falar exclusivamente sobre literatura. No início, as lives eram focadas em RPG, jogos que os participantes interpretam personagens e criam narrativas que giram em torno de um enredo, são geralmente ambientadas em mundos fantásticos repletos de magia e aventura. Com o tempo, os seres místicos e as campanhas de RPG deram espaço aos livros, e foi aí que as lives de Daniel se moldaram para um nicho que até então não existia na plataforma.
Sem atraso, a live de Nifrido, apelido que Daniel utiliza na Twitch, acontece diariamente. Em média são nove horas de transmissão diretamente de seu quarto, com sua estante repleta de livros de terror como cenário e batidas de Lo-fi como trilha sonora. Mas pera aí, livros em uma plataforma de jogos?!?!
Daniel se considera pioneiro no ramo. — Até onde sei, fui eu quem trouxe as lives de leitura pra Twitch, sendo assim, o primeiro streamer literário na plataforma. O nome BookTwitch é de minha autoria, inclusive.
A BookTwitch é uma comunidade dentro da plataforma que reúne grande parte dos streamers que falam sobre livros, desde os que alcançam uma audiência de mais de mil pessoas simultaneamente até criadores de conteúdo menores. Conforme a equipe da BookTwitch a ideia é criar uma comunidade ampla e acolhedora de escrita, leitura, estudo e debates.
Navegar pela página inicial da Twitch é uma viagem entre as mais variadas categorias de streams. O espectador encontra-se de frente para um cardápio recheado de opções para todos os gostos. Se ele gosta de jogar, vai procurar o game preferido na barra de pesquisa e escolher alguma live para assistir e aprender mais sobre. Isso se o algoritmo já não entender que esse é o tipo de conteúdo que o visualizador gosta de consumir e prontamente recomendar para ele. Se, por outro lado, ele estiver no clima para uma algo mais calmo e relaxante, pode procurar uma live de concentração – os chamados sprints -, por exemplo.
Os sprints consistem em momentos que o streamer e seu chat se concentram em uma atividade por 30, 40 ou 50 minutos. Seja lendo um livro ou estudando, os sprints dão foco na produtividade. Com o fim de um ciclo, é hora de conversar e se distrair por 10 ou 20 minutos, para então focar em uma atividade mais uma vez. São nesses momentos de intervalo que o streamer se conecta com seus seguidores. “Eu tento desenvolver uma relação de amizade com meu chat, vocês são meus amigos”, disse Daniel em sua live no dia sete de julho.
Mas o espectador pode ir ainda mais além dentro da plataforma. Pode até se perder dentro de tantas opções para assistir. Filmes e séries, discussões sobre cultura pop, bate-papos diversos, o acompanhamento do dia-a-dia de um streamer qualquer ou… Até mesmo algo mais… Picante. Internautas que acompanham a Twitch perceberam que a plataforma adicionou este ano uma nova categoria de lives chamada “piscinas, banheiras quentes e praias”. Se o nome já é sugestivo, o conteúdo é mais ainda. Desafiando completamente os termos e condições da plataforma, streamers – geralmente mulheres mais jovens – fazem lives em banheiras quentes, muitas vezes seminuas. O que revoltou os usuários foi o fato de que as transmissões dessa categoria não são banidas por nudez ou conteúdo impróprio, enquanto outros criadores de conteúdo levam punições no canal por ações menores.
Enquanto alguns não veem problema em se expor no mundo das lives, existem aqueles que optam por conservar sua imagem e não utilizam câmera durante suas transmissões. Esse é o caso dos V-Tubers, avatares virtuais animados que ocupam o lugar que deveria ser do streamer para interagir com o chat. Grandes olhos, bochechas vermelhas e roupas em tons pastéis, dignas de um anime. É assim que Ripnicolle, ou melhor dizendo, Nicolle criou o modelo virtual que a representa durante as lives. “Sinto que tenho mais liberdade porque não tenho a necessidade de me preocupar o tempo todo com minha aparência física e nem como os outros me julgam”, revelou.
Os assuntos de sua live? São os mais variados, desde jogos até trabalho. Ripnicolle é artista freelancer e animadora 2D, então parte de suas lives mostram o processo de seus projetos profissionais enquanto conversa com o chat. Apesar de ainda ter uma audiência pequena na Twitch, a artista já pode perceber que produzir conteúdo é mais que apenas a transmissão. Sua rotina consiste em acordar, preparar a modelo e o OBS, divulgar o canal nas redes sociais, o que vou fazer na live de hoje?! prepara a agenda da semana, um game aqui, uma ilustração ali, noite do cinema, e por aí vai…
Embora seja um lugar de controvérsias, a Twitch também é um ótimo espaço para construir relevância. Isso porque a audiência costuma ser fiel a quem assiste todos os dias. Gustavo Gallas entrou no mundo das streams em 2011, quando começou a consumir conteúdos na plataforma. Por muitos anos, o estudante de engenharia se afastou das lives por causa do Youtube, até que retornou no final de 2020 e segue acompanhando streamers, principalmente aqueles que falam sobre o jogo League of Legends, quase todos os dias. Exclusivamente na Twitch, Gustavo acredita que uma live de qualidade é aquela que oferece entretenimento para seu público, “que te prende, como qualquer programa de televisão”. Além disso, para ele, independente da proposta da live, é indispensável que o streamer interaja com os espectadores.
Além da Twitch
E a Twitch não é a única plataforma que conquista as visualizações de quem gosta de acompanhar transmissões ao vivo. Em 2018, a rede social de Mark Zuckerberg lançou o Facebook Gaming para concorrer diretamente com os grandes players da área. Com promessas de contratos anuais, remuneração de encher os olhos e um pedido de exclusividade, a nova ferramenta da rede social atraiu novos streamers e visualizadores.
O Facebook pediu que os novos criadores de conteúdo fechassem um contrato de exclusividade e não transmitissem em nenhuma outra plataforma que não o Gaming. E muitos acabaram migrando para lá. É o caso de Carlos Eduardo, que escolheu a plataforma depois que encontrou nela outros streamers que produzem conteúdos semelhantes ao dele. Caduxcx, como Carlos é conhecido online, sempre gostou de assistir lives, até que decidiu criar a sua própria. São em média cinco a seis horas dedicadas para jogar League of Legends ao vivo e os desafios não param por aí. “É um trabalho muito árduo, você precisa fazer as pessoas gostarem, ter uma rotina muito séria de lives”, disse o streamer. Para ele, a parte mais difícil é construir uma audiência constante dentro da plataforma.
Embora plataformas como a Twitch e o Facebook Gaming não sejam concorrentes diretos de streamings de filmes e séries como a Netflix e a Disney+, por exemplo, é impossível não fazer a reflexão de que os serviços que oferecem estão, sim, em certo conflito. A pandemia do coronavírus trouxe uma nova forma de consumir conteúdo e uma nova urgência por distrações. Para quem trabalha de casa, por exemplo, pode ser mais fácil acompanhar uma transmissão ao vivo para usar como “som de fundo” enquanto trabalha do que “perder” duas horas vendo um filme. É o que usuários como Gustavo Gallas fazem. O que se pode constatar pelos números é que a relevância das streams só cresce. E, consequentemente, se consolida uma nova forma de interagir com outras pessoas pela internet.