Produções cinematográficas crescem fora do eixo Rio-SP
Devido a empresas de produção e pós-produção, longas metragens produzidos fora destes estados são pouco vistos no país
Por João Gabriel Silva
As produções cinematográficas brasileiras vêm crescendo gradativamente. Mesmo estando com rendimentos mais baixos que mercados do exterior mais maduros (Europa, Coréia do Sul, Índia), a participação dos lucros obtidos pelas produções do país se mantém similar à de anos anteriores, sendo responsáveis pela renda de mais de R$ 328 milhões (2019). Desde seu crescimento na década de 60, o cinema nacional está se tornando mais aceito, tanto em mercado exterior, quanto em seu próprio território. Regiões que não possuíam reconhecimento em produção estão cada vez mais visíveis, contando com apoios e incentivos na área. Porém, a centralização nas criações ainda são perceptíveis.
Em 2016, 77% dos filmes produzidos no país foram elaborados dentro do eixo Rio-São Paulo. De acordo com Franthiesco Ballerini, jornalista com especialização em audiovisual e jornalismo cultural, fundador da Ethos Comunicação e antigo coordenador geral da Academia Internacional de Cinema, as legislações e fomentos nos outros estados já são boas para o apoio desses filmes. Apesar disso, o crítico acredita que as criações estão mais concentradas nessa região por conta das empresas de produção e pós-produção, já que as maiores se encontram dentro dela.
No país, diversas distribuidoras são responsáveis por colocar os filmes nas salas de cinemas. Em 2019, as distribuidoras internacionais responderam por mais de 80% do público e da renda dos filmes exibidos. Dentre os destaques, encontram-se os filmes distribuídos pela Disney e pela Warner, onde juntas, correspondem a mais de 56% do público total nas salas de cinema.
Neste mesmo período, o consumo de filmes nacionais se manteve estável, apresentando uma queda baixa de 0,7%. Segundo a Ancine (Segundo a Agência Nacional de Cinema), 167 filmes brasileiros foram lançados. Porém, dos filmes nacionais que mais tiveram público nas sessões de cinema, todos foram realizados dentro do eixo de produção.
A Vitrine Filmes, maior distribuidora de filmes independentes do país, encarregada pela disseminação de Bacurau, é responsável por apenas 5,7% dos longas nacionais. Quando posta em comparação com a Downtown ( encarregada pelo filme nacional com maior público no cinema (período de 2009-2019)), a diferença de filmes lançados é gritante, onde esta é responsável pela distribuição de mais de 83 longas brasileiros.
Mesmo com um crescimento quantitativo nas salas de cinema no país, São Paulo é o estado que apresenta o maior número de exibidoras. Ao total, são 3.507 salas distribuídas em todo o Brasil. Mais de mil delas estão dentro deste estado. Embora o número ainda seja bem concentrado dentro do eixo Rio-São Paulo , o nordeste lidera o crescimento do parque em 2019, conseguindo dobrar o número de aposentos, em um período de dez anos.
Regiões | Quantidade de salas (2019) | Evolução (%) em dez anos |
Centro-Oeste | 286 | 44,4% |
Nordeste | 586 | 117,0% |
Norte | 235 | 139,8% |
Sudeste | 1846 | 45,4% |
Sul | 554 | 49,7% |
Segundo Fábio Cabral, cineasta catarinense, diretor do filme: Uma carta para Ferdinand, um longa geralmente se inicia com um vislumbre de uma história a ser contada. A partir disso, se dá início aos processos de produção. Na pré-produção, as ideias começam a ser colocadas em prática. A escolha do local, assim como a maneira que irá trabalhar no longa, devem ser pensados antes que se comece a produzir. Depois da elaboração do roteiro, se faz todas as visualizações necessárias sobre o que será preciso para a realização do material.
“A partir daí, filma-se, monta-se e finaliza-se tecnicamente o material, originando o produto a ser distribuído e transmitido nos diversos meios de exibição de produtos audiovisuais“, conta Cabral sobre os processos de produção. Com o material pronto, inicia-se a pós-produção, que retrata as correções dos erros, assim como o envio (para as salas de cinema, plataformas de streaming) do material finalizado.
Quando os irmãos Lumière criaram o primeiro filme ( que constava com a saída de seus funcionários de sua fábrica, em 1895), já se tinha um vislumbre do que seria o processo de produção cinematográfica. Sendo uma das artes que melhor se desenvolveu com o passar do tempo, até meados de 1914, quase todas as técnicas de elaboração de um longa já tinham sido inventadas, com exceção do som (que surge no cinema pela primeira vez em 1927 com o filme: O cantor de Jazz), da cor (filme Kodak, de 1922, foi o primeiro a exibir práticas coloridas) e do 3D (considera-se o longa O poder do amor como o primeiro filme, nesta técnica, a ser exibido).
Dificuldades de produção
Em 5 de novembro de 1896, mais ou menos um ano depois da invenção do cinema pelos irmãos franceses, acontecia a primeira exibição pública de cinema no Brasil. Com uma primeira reprodução já realizada no Rio de Janeiro, não demorou muito para que o estado lançasse seu primeiro registro audiovisual. Em 1898, Afonso Segreto gravava o que conhecemos como o primeiro filme brasileiro, reproduzindo a sua chegada à Baía de Guanabara (neste dia, 19 de julho, se comemora o dia do cinema nacional).
O cinema facilmente se tornou popular no país. Já em 1897, dois anos após sua invenção, transmissões eram realizadas na Paraíba (Parahyba como se chamava na época). Na Festa das Neves, se transmitiu o mesmo filme visto no Grand Café de Paris,o histórico longa que deu início aos desenvolvimentos da sétima arte. Porém, apesar de possuir um curto período de tempo entre os dois estados nas transmissões cinematográficas, as diferenças no sistema de produção e distribuição dos longas, são muito perceptíveis na atualidade.
De acordo com Bertrand Lira, cineasta paraibano, graduado em comunicação social, mestre em sociologia e doutor em ciências sociais, não existem muitos editais voltados para o audiovisual no estado: “Temos poucos editais por aqui. Existem o estadual e o municipal. O municipal funciona melhor, mas não são tantos recursos. Não se tem tanto recurso. O estado está capengando a muito tempo, e nos deve muito um edital decente que se pague em dia, e tudo mais”.
O diretor do filme: O seu amor de volta (mesmo que ele não queira) acredita que as dificuldades para produções estão presentes em todo lugar, não só nos estados fora do eixo de produção. Bertrand crê que esses eixos produzem longas em maiores quantidades por uma questão histórica. Localizada no Rio de Janeiro, a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes SA), empresa de economia mista estatal produtora e distribuidora de filmes, contribuiu muito no auxílio e nas disseminações dos longas produzidos na região. Com um estímulo maior dado após a posse de Roberto Farias (cineasta e produtor), os filmes passaram a ter mais incentivos e valorizações, durante o período militar, o que contribuiu para a ascensão do estado na área.
Lira conta que a dificuldade está realmente nas distribuições dos longas. “Os governos anteriores tentaram controlar um pouco com alguns editais, o que fazia com que os filmes alternativos chegassem às salas. O contexto atual, falando do governo e não da pandemia, dificultou muito, e para todo mundo”. O diretor ainda critica as ações do atual governo, retratando que os apoios destinados à cultura estão sendo impedidos: “A gente tinha um edital de distribuição e eu estava pronto para concorrer. O distribuidor que queria disseminar meu filme estava esperando um edital de R$ 100 mil para propagar o meu longa em algumas salas mais alternativas. E aí entrou esse governo que não gosta da arte, da Cultura, e atrapalhou tudo. Acabou tudo isso. Estamos à deriva agora.”
Segundo o cineasta, a preferência dos brasileiros se dá muito para filmes estadunidenses. Bertrand diz que, no Brasil, são poucos filmes que conseguem um impacto junto ao público. Para ele, as pessoas gostam de consumir filmes com narrativas tradicionais, mais próximas de um relato universal. “A produção brasileira é muito grande, mas tem uma produção mais autoral, que não vai atingir o grande público, vai só para os iniciados. Acho que tem esse problema também, de todo mundo querer fazer filmes mais herméticos, mais intelectuais”.
“A gente torce para que dê para conviver essas duas vertentes: do sistema mais fechado, com propostas de estáticas mais experimentais; mas também precisamos ter uma indústria que o filme chegue ao público. De filmes que apresentem também um certo apelo que não seja só focado na mão de uma produtora, e que tenha todo um mecanismo de distribuição que é importante. Senão o filme morre na praia.”, brinca Bertrand.
Cultura como identidade cinematográfica
Já não é de hoje a preferência dos brasileiros para filmes estrangeiros. O diretor argentino (naturalizado brasileiro), Hector Babenco, responsável por Carandiru, já relatou que o cinema brasileiro estava acabado, devido a falta de apoio e originalidade apresentada pelas produções. Segundo a Ancine, em 2019 (último balanço completo feito pela empresa), houve um aumento na procura de 9,4% para filmes produzidos fora do solo nacional. O número de títulos brasileiros lançados também se apresenta em queda quando comparado a anos anteriores.
Conforme Franthiesco Ballerini,representar a cultura nacional é o que dá mais reconhecimento e visibilidade para os filmes em festivais internacionais. “Os filmes tem que saber falar do país, e também fazer um bom trabalho nas partes técnicas. O ritmo de roteiro, a montagem do filme e todos os outros elementos ajudam a dar essa melhor visibilidade.” Citando como exemplo, o jornalista trás os filmes do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, que tem seus filmes elaborados no eixo Nordeste/Europa.
Bacurau (2019), o filme mais recente do diretor, consegue retratar a cultura de um povo, sem deixar de apresentar os detalhes e visões próprias do autor. Não só aclamado em solo nacional ao receber seis prêmios, em categorias principais, no Grande Prêmio de Cinema Brasileiro (melhor direção, melhor ator, melhor roteiro original, melhor longa metragem-ficção, melhor montagem-ficção e melhor efeito visual), o filme também conquistou o Prêmio do Júri, no Festival de Cannes.
O último longa de Kleber Mendonça, apesar de todos os ganhos, só foi a nona criação nacional mais vista no ano de lançamento.
A tentativa de se construir uma identidade própria para o cinema nacional já é antiga no país. Olhando para o passado, antes de uma consolidação do cinema brasileiro, os longas locais eram fundamentados e influenciados pelas produções hollywoodianas. Cansados de consumir e produzir filmes ‘prostituídos’, um grupo de jovens cineastas deu início a um movimento.Com o lema: uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, o Cinema Novo foi um dos mais importantes movimentos cinematográficos do mundo.
Baseando-se no cinema italiano e francês, buscaram obter uma identidade própria nos longas e produções brasileiras. O neorrealismo italiano se caracterizava pelas histórias sobre a classe trabalhadora, filmadas com poucos recursos. Grande parte das produções tratavam das dificuldades sociais e econômicas do país, após os acontecimentos da segunda guerra. Nas nouvelles francesas, buscava-se utilizar uma técnica como uma forma de estilo. Para eles, os cineastas eram um autor, que deveria desafiar e desconstruir as bases do cinema, contrariando a lógica das narrativas tradicionais.
Com origem em 1960, os principais longas lançados durante o movimento pertenciam ao eixo Rio-São Paulo, mobilizando um desenvolvimento maior dos estados nas produções do país. Um dos destaques dessa revolução é o cineasta Glauber Rocha, responsável por elaborar um dos filmes brasileiros indicados ao principal prêmio do Festival de Cannes: a Palma de Ouro. ‘Deus e o Diabo na terra do sol’(1964) representava a cultura nacional, mas com identidade própria, conseguindo, simultaneamente, representar e universalizar o sofrimento de um povo.
O cinema Catarinense
O jornal Ô Catarina, já em 2007, demonstrava o crescimento nas produções audiovisuais no estado. Criada na década de 90, o impresso possui o intuito de difundir a cultura do local, servindo como espaço para mostrar o que fazem e pensam os segmentos de costumes, na região. Voltando a circular em 2007, Felipe Lenhart e Jade Martins Lenhart dedicaram na edição número 64, um especial sobre o cinema catarinense.
Segundo os autores, produções catarinenses já apresentavam um aspecto mínimo de profissionalização, porém, existia a dificuldade de se consumir a obra que se era produzida. O cineasta Fábio Cabral, de Florianópolis, conta que a maior dificuldade de se produzir um filme fora do eixo é na montagem de uma equipe que seja profissional em cinema, e que tenha um conhecimento técnico de toda a operação. “ A escassez de equipamentos técnicos disponíveis também dificulta na produção, mas acredito que isso não prejudique na hora de disseminar os filmes”.
Apesar de desconhecer apoios próprios do estado no incentivo de produção, Fábio retrata que todas as possibilidades de fomentos federais são destinados para todos os estados brasileiros, através das inscrições realizadas no sistema da Ancine.”O importante para a conclusão de uma obra audiovisual é nunca desistir, caso você queira que ela se concretize. Todas as jornadas são longas e bem difíceis de se realizar, e requer muita dedicação, estudo, paixão, conhecimento técnico, experiência e, principalmente, muita vontade e persistência”.
Com o passar do tempo, o cinema da região vem se estruturando como um dos mais organizados do país. Já são dois sindicatos criados para orientar as produções cinematográficas no estado. O Santacine (Sindicato da Indústria Audiovisual de Santa Catarina) exerce a representação legal das empresas que atuam no setor audiovisual, tendo como finalidade, representar e defender as produções no estado. A Sintracine (Sindicato dos Trabalhadores do Cinema e Audiovisual de Santa Catarina) é responsável por assegurar os direitos trabalhistas dos cineastas catarinenses.
Assim como o aumento no reconhecimento e em instituições que respondem pelo audiovisual na região, diversas organizações de ensino estão sendo montadas com o intuito de formar profissionais qualificados e experientes. Em Joinville, já são duas faculdades que auxiliam na formação destes estudantes: a UniSociesc e, recentemente, a Univille. A acadêmica de cinema e audiovisual, Anna Júlia Viliczinski, acredita que o incentivo é a melhor maneira de preparar os estudantes para o futuro. “É difícil ser artista independente, ainda mais fora do eixo, por isso incentivar e abrir os olhos para onde se tem algum tipo de resultado, é uma ótima opção”.
Recentemente, Santa Catarina apresentou o primeiro filme no catálogo da Netflix. Quando o Sol se Põe, do diretor joinvilense Fábio Faria, também é o primeiro filme cristão a estar presente na plataforma de streaming. O estado, em 2017, demonstrou uma taxa de crescimento de 8,8% no setor, assim como contribuiu na formação de empregos, abrindo mais de 330 mil vagas em diversos setores da economia. Premiações também estão sendo destinadas a filmes catarinenses, que ganham cada vez mais reconhecimento e visibilidade.