Mitos fundadores de Joinville: questões omitidas pela história regional
Por Luiz Gustavo dos Anjos Gallas
Foto de capa: Henrique Duarte
No dia 9 de março, para a historiografia oficial, comemora-se em Joinville o aniversário de fundação da cidade – a data remete à chegada dos imigrantes europeus pela barca Colon, em 1851. Monumentos, nomes de ruas, arquiteturas de prédios e desfiles cívicos, desde então, reforçam a narrativa de que a origem do município é europeia e, principalmente, alemã. Isso, de acordo com estudiosos, é um discurso fabricado.
A barca Colon, reverenciada em monumento localizado em frente à prefeitura, onde seria o chamado marco zero da cidade, manifesta a memória da chegada dos imigrantes à beira do Rio Cachoeira. Porém, isso seria impossível, segundo a socióloga Valdete Daufemback e Dilney Cunha, historiador e coordenador do Arquivo Histórico de Joinville. Uma embarcação tão grande não viria até aquele local. O pouco volume de água não a suportaria. A teoria mais provável é de que os europeus vieram por meio de canoas pelos estreitos canais do rio, com negros, escravos e livres, na condução.
Mesmo assim, conforme Diego Finder Machado, doutor em História e professor na Universidade da Região de Joinville (Univille), a cidade se constrói sob vários mitos românticos que fortalecem a “colonialidade da memória”. Ele explica que o Monumento ao Imigrante feito por Fritz Alt, por exemplo, evoca duas figuras: de um lado, o imigrante, com corpo atlético e mangas arregaçadas para o trabalho; do outro, o nativo, representado por um luso-brasileiro portando sua espingarda. O segundo lembra mais os bugreiros, caçadores de indígenas, presentes na região antes dos imigrantes.
“A forma como enxergamos o tempo e os períodos históricos em Joinville não inclui a narrativa indígena”, afirma Bárbara Elice da Silva de Jesus, mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Não houve o menor esforço para compreender a cultura indígena como parte da origem do município.” Ela observa, ainda, que a linguagem dos índios é a oral e, portanto, fica oculta na narrativa dos historiadores, que se ativeram somente aos documentos.
“Até a divisão regional de Santa Catarina, para os guaranis, é diferente da que nos é dada”, diz Bárbara, que há cerca de cinco anos atua junto à Aldeia Piraí, em Araquari. “Para eles, o território se divide entre os Kaingangs, Xoklengs e Guaranis.”
Uma história encomendada
Com a Campanha de Nacionalização, na Era Vargas, que buscava enfraquecer as influências culturais de imigrantes no Brasil, a memória alemã foi ofuscada em Joinville. Diante disso, segundo Valdete Daufemback, autodidatas se esforçaram para recuperar as lembranças germânicas.
“O Arquivo Histórico de Joinville não existiria se não fosse pelo financiamento da própria Alemanha”, acrescenta Cunha. Adolf Schneider organizou a fundação da instituição e obteve os subsídios do país europeu para a construção. Ele foi motivado por certa competição com Carlos Ficker, que passou a coordenar o Museu Nacional de Colonização e Imigração na Rua das Palmeiras depois dele.
Com exceção de Carlos Ficker, que teve seu trabalho de pesquisa financiado pela Tupy S.A. após vencer um concurso em 1962, todos os estudiosos da história regional usufruíram de posição social e econômica privilegiada. Elly e Rose Herkenhoff, Maria Thereza Böbel, Edith Wetzel e Adolf Bernard Schneider, incumbidos de recontar os primeiros passos de Joinville, eram integrantes da burguesia local e descendentes de europeus. “Inúmeras gerações foram alfabetizadas a partir da memória construída por essas figuras”, afirma Valdete Daufemback.
“Não foi sempre assim”, esclarece Cunha. “Os imigrantes e, principalmente, os alemães, passaram por diversas dificuldades, superadas ao longo de décadas.” A forma como isso é contado, porém, de acordo com o historiador, induz as pessoas a pensarem que a superação só foi conquistada por conta da “superioridade da raça alemã”.
Exatos 179 imigrantes europeus vieram para a Colônia Dona Francisca com a Sociedade Colonizadora de Hamburgo, após um acordo entre o senador germânico Mathias Schroeder e François Ferdinand Phillippe Louis Marie, conhecido como o Príncipe de Joinville. Muitos deles, conforme Valdete Daufemback e Dilney Cunha, foram convencidos por uma propaganda publicada em 3 de maio de 1851 no Leipziger Illustrirte Zeitung (Jornal Ilustrado de Leipzig), na atual Alemanha.
Diversidade na fundação da cidade
Além dos Kaingangs, Xoklengs e Guaranis, já presentes na região antes dos portugueses, a história de Joinville inclui várias etnias diferentes da alemã. “Tal como os europeus eram imigrantes, os africanos, embora forçados por uma diáspora, também o eram”, afirma Diego Finder Machado. “Por isso que, nas semanas da Consciência Negra, grupos religiosos de matriz africana fazem a lavagem do Monumento ao Imigrante.”
O professor ainda aponta para o Cemitério do Imigrante. Lá foram enterradas 14 pessoas negras, descobertas pelas pesquisas de Dilney Cunha em arquivos da Comunidade Evangélica Luterana e na Catedral do Bispado.
A melhor forma de enxergarmos essa diversidade oculta, segundo Bárbara Elice, é entender todas as visões com o mesmo valor. “Para isso, precisamos sair de nós mesmos”, afirma ela. Sobre isso, Cunha comenta: “não há uma maior que outra; esta cidade é a soma de múltiplos esforços de diferentes etnias.”