The wire – O jogo das instituições
Por Eduardo Gums
Em determinado momento do terceiro episódio de The Wire, um grupo de personagens se reúne em torno de um tabuleiro de Xadrez. Na cena em questão, um personagem explica a hierarquia de uma organização criminosa usando as peças do jogo. Mesmo sendo usada em uma cena específica, a cena define bem um dos temas de The Wire: As semelhanças entre as várias instituições que compõem uma cidade norte-americana. A hierarquia estabelecida nesta cena encontra ressonância nas várias instituições abordadas na série.
Ambientada e centrada em Baltimore e trazendo em seu elenco atores majoritariamente negros, a série ficou famosa por suas discussões sociais e seu realismo. A trama de The Wire inicialmente pode parecer simples e comum, com uma equipe de policiais sendo selecionada para prender um chefão do tráfico. Mas conforme as temporadas avançam, percebemos que a série não é apenas uma série policial, mas sim algo a mais.
Criada por David Simon, um ex-jornalista e por Ed Burns, um ex-policial e professor, The Wire estreou em 2002 e ficou no ar até 2008, tendo cinco temporadas e 60 episódios. Simon, que já tinha trabalhado na televisão aberta dos Estados Unidos na série Homicide (NBC, 1993-1999). Ele conta que inicialmente tinha como objetivo criar uma série baseada nas experiências de seu colega de escrita Ed Burns. Os dois já haviam trabalhado juntos em The Corner, minissérie lançada em 2000 e que também foi exibida pela HBO.
The Wire estreou em junho de 2002, nove meses após o 11 de setembro e é profundamente influenciada por ele. Ao longo das cinco temporadas da série, o 11 de setembro e tudo o que veio depois (a guerra ao terror, atentados, hacks) são referenciados pelos personagens direta e indiretamente. Como toda obra, ela deve ser analisada como um produto de seu tempo. Ambientada no começo do século 21, a série é um trabalho que lida diretamente com as mudanças ocorridas no final do século passado. Aqui, a internet ainda não é uma realidade universal, ainda são usadas máquinas de escrever para fazer relatórios, as escutas e as câmeras ainda não são usadas com frequência em operações policiais. Ainda são utilizados pagers. A modernização da indústria ainda engatinha. O mundo de The Wire é o nosso mundo mas ao mesmo tempo não é. É o nosso mundo claro, mas é o mundo moderno começando a nascer. Um mundo de internet, de aplicativos, de ubers e de redes sociais. Em The Wire, o velho e o novo estão frequentemente em conflito.
Em termos de galeria de personagens, todos representam algum nível da sociedade estadunidense vista em Baltimore. Nós temos a polícia, os políticos, os trabalhadores, professores e estudantes, os criminosos e os jornalistas. Todos esses personagens são desenvolvidos de forma notável, tendo sempre um papel importante na história contada em cada temporada. Todos são lembrados após o fim da série.
Em termos técnicos, The Wire faz parte de uma tradição iniciada pouquíssimos anos antes de trazer um pouco de outras mídias para a televisão. Enquanto The Sopranos (HBO, 1999-2007) trouxe o conceito do anti herói para a televisão de uma forma mais completa e melhor trabalhada, The Wire trouxe um frescor e um novo formato para as séries policiais. Sem ter que se prender aos casos da semana e com mais tempo para desenvolver os personagens, The Wire tem, na forma como constrói seus diálogos e situações, uma infinidade de temas a serem abordados, seja o problema do vício, seja em drogas ou em outra coisa, como em bebida, ou a corrupção política e policial, além do sucateamento do ensino público e dos preconceitos contra a comunidade LGBTQ+. O legal de The Wire está na forma como seu roteiro trabalha tudo isso no andamento de sua trama, criando uma trama envolvente, com personagens carismáticos.
A forma como a série aborda seus temas é um dos pontos altos da série. O personagem Omar Little, interpretado por Michael K Williams, é um personagem LGBTQ+, mas acertadamente ele não tem o comportamento estereotipado de personagens do gênero. Não é usado para cenas de sexo forçadas ou para criar polêmica. A forma como The Wire aborda certas questões é feita com extremo cuidado e isso é um dos pontos altos da série.
Mesmo com todas as qualidades, seja de roteiro ou de direção, a série criada por Simon nunca fez ou teve sucesso na época de sua exibição original mas acabou adquirindo o status de cult após sua finalização em 2008. Se tornou a favorita, inclusive, do ex-presidente estadunidense Barack Obama, que entrevistou Simon na Casa Branca, alguns anos após a finalização da série.
Mesmo passados 14 anos após sua finalização e quase vinte desde sua estreia, The Wire tem o luxo, graças aos temas relevantes de seu roteiro, de ser uma das séries mais aclamadas da história recente, podendo ser colocada ao lado de séries como Breaking Bad, Mad Men e The Sopranos. Simon, após a conclusão da série, se manteve ocupado. Entre 2008 e 2020 ele produziu 3 minisséries e duas séries. Seu trabalho é algo diferenciado na televisão. Relevante social e politicamente. E que continue assim.
Ficha técnica:
The Wire (EUA, 2 de junho de 2002-9 de março de 2008)
Criação: David Simon
Temporadas e episódios; 5 temporadas e 60 episódios (entre 10 a 13 episódios por temporada)
Duração: Entre 50 a 60 minutos.
Exibição original: HBO
Atualmente disponível em:HBOMax