Mulheres ainda enfrentam preconceito no mercado de trabalho
Por Júlia Venturi *
No Brasil, 1.314 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2019, média de uma morte a cada sete horas. Morreram porque eram mulheres. No país em que um jogador manda matar a mãe do filho e dá o corpo para cachorros comerem e ainda assim tem fãs; onde outro jogador estupra uma mulher completamente alcoolizada em outro país e, mesmo assim, tem vários defensores; onde um cantor que agrediu a namorada entra em um reality show e ganha uma torcida gigante; onde um deputado diz a uma colega de parlamento que ela “não merece ser estuprada” porque é muito feia, e depois é eleito presidente, é fácil perceber o quanto o machismo está enraizado.
Segundo o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), em 2019 os homens tiveram média salarial 22% superior às mulheres. Para a jornalista e mestra em antropologia social Lorena Trindade, as estruturas patriarcais e sexistas foram mobilizadas para deixar as mulheres em espaços delimitados, como forma de controle.
Para Lorena, mesmo após as mulheres terem conseguido ocupar lugares que até então não eram designados a elas, ainda enfrentam muitas barreiras. “Convencionou-se a acreditar como algo ‘natural’ que as mulheres sejam mais habilidosas para profissões do cuidado: pedagogia, enfermagem, psicologia”, observa. Esse estigma leva ao senso comum que enxerga as mulheres como incapazes de realizar algo fora dos padrões para os quais não foram “naturalmente” destinadas.
Apesar de muitas mulheres já terem ouvido que seu lugar “é na cozinha”, quando se trata de cozinha profissional o discurso é diferente. A gastróloga e cozinheira Bianca Kruger conta que, quando começou na profissão, trabalhava com cinco homens, quatro eram auxiliares, como ela, mais o chef. Desde o início, ela percebia a diferença de tratamento entre eles. Depois de um tempo conseguiu mostrar que era ágil e habilidosa e com isso o chef contou que ele e os outros funcionários tinham feito uma aposta de quanto tempo ela duraria no emprego, porque não tinha “cara” e aparência de cozinheira. O chef ainda lhe disse que ela era uma exceção, pois ele não gostava de contratar mulheres, porque cozinha é lugar de homem.
“Anos depois, todos os cinco saíram do estabelecimento, inclusive o chef e eu me tornei a cozinheira responsável pela equipe. Quando surgiam novas contratações e eram homens dava pra sentir no olhar o julgamento, por eu ser mulher e por eu ser tão jovem”, recorda.
Hoje, Bianca é chef em outro restaurante. Sempre que algum cliente quer elogiar o responsável pela comida, chamam um dos auxiliares que trabalha com ela – um homem alto e forte -, pois acreditam que é ele quem manda na cozinha. “Mas isso sempre me deu força pra seguir em frente e mostrar pra todo mundo e pra eu mesma que eu sou capaz de qualquer coisa e posso chegar aonde eu quiser, independentemente do machismo que existe”.
Múltiplas agressões
Segundo levantamento feito pelo Ministério da Saúde, a cada quatro minutos o Brasil registra um caso de agressão a mulheres e a cada 11 uma mulher é estuprada. Mas existem muitas outras formas de agressão. A Lei Maria da Penha classifica os tipos de abuso contra a mulher nas categorias violência patrimonial, sexual, física, moral e psicológica.
Há agressões consideradas violência doméstica que muita gente desconhece, como, por exemplo, humilhar, xingar e diminuir a autoestima, tirar a liberdade de crença, fazer a mulher achar que está ficando louca, expor a vida íntima, impedir a mulher de prevenir a gravidez ou obrigá-la a abortar, controlar o dinheiro ou reter documentos, além de quebrar objetos da mulher. Muitas dessas coisas não acontecem apenas no ambiente doméstico, mas também nas redes sociais, templos religiosos e na área profissional.
“Vai lavar uma louça que lá é o seu lugar.” Esse comentário foi postado por um homem em uma das redes sociais da jornalista esportiva Rafaela Oliveira, após post em que ela opinava sobre a Fórmula 1. “No primeiro momento eu fiquei sem reação, depois veio a raiva, a descrença, o choro e por último a vontade de ser ouvida e de dar voz para outras como eu.” Dois anos depois ela criou o blog “Garota da F1” onde fala sobre automobilismo e sobre os desafios das mulheres que participam desse meio.
Rafaela relata que, apesar de ser apaixonada pelo esporte desde os 12 anos, seu conhecimento é sempre colocado em dúvida. Muitas vezes já sofreu assédio e importunação enquanto estava assistindo a corridas e quando escreve expondo essas situações recebe diversos comentários de homens que duvidam e falam que ela está mentindo. Mas nada disso fez com que ela desistisse ou se calasse. A jornalista entende que, para que o cenário machista no automobilismo mude, é preciso diálogo, educação e incentivo para que mais mulheres possam participar sem medo de sofrerem preconceito.
Participação na política ainda é tímida
Graças ao movimento feminista, as mulheres conquistaram direitos que, até algum tempo atrás, seriam inimagináveis. No Brasil do ano 1500 a 1827, a educação era direito apenas dos homens e o voto feminino só foi possível em 1934. Apesar da importância desse movimento para a conquista de uma vida digna para todas as mulheres, o feminismo ainda é mal visto e mal interpretado por grande parcela da sociedade. Algumas das lutas atuais incluem a maior inserção das mulheres no meio político, não só como eleitoras, mas também como governantes. Segundo o IBGE, as mulheres representam 51,9% da população, porém a representatividade feminina na Câmara de Deputados, em 2018, era de apenas 15%. O Código Eleitoral prevê que, no mínimo, 30% das candidaturas sejam femininas.
Em Joinville, a vereadora Tânia Larson (PSL) ressalta a importância da representatividade feminina no meio político. Ela frisa que, apesar das mulheres serem a maioria do eleitorado no Brasil, ainda são poucas as que estão de fato nos governos municipais, estaduais e federal. Isso gera consequências que se refletem nos ideais defendidos e na construção e execução de políticas públicas ligadas ao público feminino.
Tânia conta que precisou aprender a se impor e exigir respeito dentro da política, porque, mesmo depois de eleita, sofreu com o preconceito e, muitas vezes, duvidaram da sua capacidade apenas por ser mulher. “A falta de mulheres na política causa um debate inadequado de temas relacionados ao público feminino, por isso há necessidade de representantes, para proporcionar maior diálogo e um pensamento mais abrangente das pautas femininas”, destaca a vereadora.
Segundo a doutora em Antropologia Social Maria Elisa Máximo, é preciso que haja políticas públicas que promovam debates sobre questões de gênero nos mais diferentes espaços e proporcionem a representatividade feminina no alto escalão da organização social para que as mulheres se enxerguem nesses espaços. Ela acredita que uma sociedade igualitária em termos de gênero só será possível quando as mulheres tiverem igual acesso aos direitos fundamentais e deixarem de ser oprimidas. Para a antropóloga, mesmo que as mulheres estejam ocupando mais espaços e conquistando direitos que deveriam ser concedidos de forma espontânea, é preciso entender que a forma como são enxergadas nesses postos ainda precisa evoluir muito.
Machismo no esporte
Paloma Pereira é atleta de basquete desde os oito anos e hoje joga como armadora da Sociedade Ginástica de Joinville. Ela já foi vítima do machismo diversas vezes, seja por jogar um esporte considerado “masculino”, seja por usar roupas largas e esportivas. “O investimento no esporte feminino corresponde, em geral, à metade do que é investido no masculino. É aí que começa a desvalorização e a diminuição do esporte feminino, pois acabam diminuindo as oportunidades”, conta. A atleta ressalta que é preciso mais investimento, divulgação e qualificação profissional para que haja igualdade para ambos os sexos.
No início de outubro de 2020, a Revista Forbes divulgou quais eram os atores e atrizes mais bem pagos de Hollywood e o que chamou mais atenção foi a diferença salarial de cada gênero. O ator mais bem pago era o estadunidense Dwayne Johnson, com US$ 87,5 milhões, enquanto a atriz mais bem paga era a colombiana Sofía Vergara, com o valor de US$ 43 milhões. Johnson recebeu mais que o dobro de Vergara.
Stephanie Santos é atleta de e-sport, mais especificamente de Fifa (jogo eletrônico de futebol). Ela diz que algumas meninas deixam de jogar por receio de sofrerem preconceito. “Infelizmente nós mulheres sempre temos que provar que somos boas, pois a nossa sociedade é machista. Nos deparamos com coisas como: menina não pode jogar futebol, pois é um esporte de homem”, conta Stephanie. Ela mesma teve que deixar muitos comentários de lado para alcançar seus objetivos.
Como mudar o cenário
Quando se busca por mudanças é necessário luta e representatividade. As mulheres precisam estar representadas, ocupando espaços que até então apenas homens ocupavam.
“Ainda somos muito objetificadas”, analisa a jornalista Lorena Trindade. Apesar dos avanços nas representações da publicidade, ainda há um longo caminho para que as mulheres sejam tratadas de forma respeitosa.
Um exemplo é o caso da meninda de 10 anos que, em agosto deste ano, foi violentada por um tio, conseguiu judicialmente uma autorização para realizar um aborto, direito previsto por lei. Lorena observa falhas na forma como alguns canais midiáticos abordaram o assunto. “Me incomodava ouvir, ver ou ler: ‘Menina de 10 anos engravida após ser estuprada”. Como se ela fosse agente desta violação. Portanto, acho que precisamos caminhar e repensar como estamos colaborando para o fortalecimento da ‘cultura do estupro’ a partir de ‘detalhes’ como este.”
A antropóloga Maria Elisa Máximo acredita que é preciso analisar a presença das mulheres em dois aspectos: a quantidade e a qualidade. A parcela de mulheres que ocupam espaços na mídia tem sido expressiva em quase todas as áreas. Porém, quando se observa como elas estão presentes e o que estão fazendo é possível perceber um desequilíbrio em relação aos homens, com poucos lugares nos cargos de chefia e na mídia esportiva, por exemplo.
Maria Elisa entende que, no sentido da representatividade, já houve bastante progresso, mas o problema reside quando essa representação das mulheres na mídia ainda se dá de uma maneira muito estereotipada. “O problema da representatividade das mulheres na mídia passa muito por uma hipersexualização ou pela reprodução de padrões de beleza e pela questão racial”, ressalta.
Lorena Trindade acrescenta que a mudança depende de ação coletiva e conjunta. “Os homens precisam compreender o seu lugar de privilégio e refletir sobre as opressões das mulheres”, explica. Ela também defende que a transformação venha da base, da educação dada às crianças e que as instituições reconheçam seu sexismo para depois trabalhar nas mudanças. “A prática precisa superar a teoria. Não adianta homenagear no 8 de março, de forma a promover o empoderamento, e não oportunizar às mulheres lugares de poder”, expõe.
* Reportagem produzida para a disciplina de Jornalismo Impresso III, sob orientação do professor João Kamradt