Uma vida entre leques e cores
Por Raquel Ramos – jornalista graduada pela Faculdade Ielusc
Foi no festivo Dia do Centenário da cidade, em 9 de março de 1951, que Holnelia Isabel Rubin, hoje Corrêa, com apenas 15 anos, chegou a Joinville. Setenta anos depois, Dona Nelly, como é chamada na intimidade por amigos e familiares, presenteia nossos leitores com uma história de arte e graça feita pelas próprias mãos.
Dona Nelly foi uma, entre tantas mulheres, que integrou uma classe de trabalhadoras/artistas que, entre as décadas de 40 a 60, trabalhavam para a fábrica Leques Minueto, uma empresa da Cia Hansen Industrial. Seus produtos marcaram uma era, proporcionaram beleza e glamour para as mulheres da sociedade joinvilense e até além dos limites do município.
As lembranças brotam da memória de Nelly com absoluta lucidez. Ela conta que, chegando em Joinville, foi para a rua do Príncipe, onde se realizavam as festividades do Centenário. Ficou parada em frente à Farmácia Minâncora, esquina com a rua das Palmeiras. Daquele ponto, assistiu aos desfiles comemorativos do dia. Não esquece da emoção de ver passar, em um carro alegórico com a bela Rainha do Centenário, Jutta Guttschow, (que com o casamento tornou-se Wendel). Por ali passaram os desfiles de bicicletas e aquele que um dia seria seu marido, o jovem Osmar Soter Corrêa, representando a Sociedade Esportiva e Recreativa União Palmeiras.
A primeira casa em que Nelly residiu, ficava na rua Eugenio Moreira, zona sul de Joinville. A fábrica de leques ficava no mesmo endereço, porém, na esquina com a rua Bahia. Certamente essa proximidade favoreceu o desenrolar de toda a trajetória.
Por indicação de uma vizinha, a jovem Nelly teve conhecimento do trabalho na pintura de leques. Foi ela quem me deu a primeira orientação. “Procura o Senhor Julio Moeller, porque é ele quem faz as contratações”, conta Nelly. E assim, acompanhada da mãe, em vista da sua pouca idade, foram até lá. Embora o trajeto fosse pequeno, era sempre feito pelas duas, mãe e filha, por cuidado e zelo.
Isso foi o início de tudo. Por ser menor de idade, ficava separada das outras profissionais que trabalhavam na montagem dos leques. “No começo eu não recebia nada pelo meu trabalho”, diz ela. “Eu ficava dentro da fábrica, mas, como aprendiz de pintura”. A professora era Lourdes Hardt, a quem ela delega a honraria de todo o aprendizado recebido. “Ela era muito enérgica e exigente, mas devo tudo o que aprendi a ela” e, para ilustrar sua admiração, completa: “Ela tinha mãos de fada”.
Com a prática e desenvoltura adquirida, Nelly passou a levar trabalho para executar em casa. Foi a partir daí que começou a ser remunerada pelo serviço que fazia. Ia até a fábrica e recebia o talho do tecido de seda, tinta a óleo e o diluente para fazer a mistura. “A Dona Lourdes me entregava o tecido moldado, no tamanho e formato do leque, já com o motivo desenhado por ela com uma caneta de tinta branca”. Em casa, fixava a seda, com alfinetes em cima de folha de papelão sobre a mesa e fazia a pintura. Depois de prontos, devolvia para a professora e então os tecidos eram colados na paleta. “Mas isso era um serviço feito pela fábrica, eu só pintava”, acrescenta Nelly.
Na época, o leque era um objeto totalmente feminino e sofisticado. “Era um período em que as mulheres se arrumavam até para ir à missa, usando luvas e portando cada uma o seu leque”, relembra. Nelly perdeu a conta de quantos leques pitnou. Hoje, uma dessas peças, pintada em 1952, está pendurada como decoração na parede de sua casa.
Passado algum tempo, com 17 anos, Nelly começou a namorar e foi pedida em casamento por Osmar. Orgulha-se em dizer que comprou todo o enxoval com o dinheiro recebido pela pintura de leques. Ela comprava peças, como colcha, jogos de toalha, toalhas de mesa. “Eu mesma as pintava”, afirma.
Inspiração para amores e poemas
O período da produção de leques faz parte da história de uma das maiores indústrias do Brasil, a João Hansen Junior e Cia, hoje a empresa Tubos e Conexões Tigre, construída por João Hansen Junior, nos idos de 1940. Enfrentou duros períodos de guerra, racionamentos de energia elétrica e de gasolina e se consolidou no cenário empresarial nas décadas seguintes.
Hoje, essas informações estão digitalizadas no site da empresa. Porém, há uma Edição Especial impressa do Informativo Hansen, um documento histórico. A edição Festa das Medalhas – 1991 trouxe a história do fundador da empresa e o assunto da fábrica de leques divulgado de forma impressa.
O texto, baseado em pesquisa biográfica, foi escrito por Mila Ramos. Entre tantas informações pessoais, familiares e da empresa, ela cita, que o Senhor João, “perspicaz e de olho no futuro da Tigre, sentiu, logo que evoluir era diversificar”. E faz a citação, embora sucinta, de que “…depois foram os leques, também de plástico e pintados à mão”.
Foi nos manuscritos desse trabalho, rascunhados por Mila, escritora e poeta, que encontrei declarado o sentimento de amor de quem viveu a era dos leques. Ela escreve:
Mila usa a caneta; Nelly, os pincéis. A mesma poesia em linguagens diferentes, vividos em dias de glória. A arte dessas pintoras realizavam os sonhos das damas da sociedade. As mulheres usavam seus leques decorados, um complemento indispensável do vestuário, e, por trás desse adereço trocavam olhares furtivos como forma de sedução. Atualmente, os leques continuam sendo objetos de luxo, embora com outro sentido: tornaram-se objetos raros, porém sem perder a majestade.
Com o casamento, Nelly parou de pintar. “Naquele tempo”, comenta ela, não com rancor, e sim como mero relato, “o meu marido não permitia que eu trabalhasse fora”. Além disso, os três filhos a absorviam completamente. Bem mais tarde, com a mudança dos tempos e filhos crescidos, voltou à atividade, mas escolheu frequentar aulas de pintura em porcelana. Isso foi na década de 70, na Casa da Cultura, com as professoras Rita Kaesemodel e Edith Wetzel.
O crescimento pessoal na arte dos pincéis continuou. Incentivada pela professora Emília Merklen, passou a se dedicar à pintura em tela. “Bem diferente dos leves tecidos dos leques, a tela tem textura firme”, comenta. Com orgulho, conta que já expôs quadros no Bar e Restaurante Parapluie, que funcionava na rua Visconde de Taunay, nos anos 90. A partir daí se viu reconhecida pela família e lembra as palavras ditas por Dona Líbia, sua mãe: “Agora minha filha está fazendo o que realmente gosta”.
Durante toda a tarde em que conversamos, a frase “Eu adoro pintar” foi a mais repetida. Ela ainda possui as caixas com tintas importadas, tanto para pintura em porcelana quanto para tela. Mostra o último quadro feito em janeiro/2020. Assim como todos, neste ano de pandemia, precisou se adaptar e muitas mudanças aconteceram, inclusive de residência. Agora, de casa nova, pretende voltar a pintar.
Joinville, cidade de muitos artistas
O assunto trouxe à tona o nome de outras pintoras de leques. Sandra Regina Schatzmann revela que sua mãe, Norma Schatzmann, falecida em 2010, também era pintora de leques. Segundo Sandra, os leques eram ofertados para uma companhia aérea ou marítima. “Posso estar enganada, mas lembro que ela pintava leques com motivos de navios”. Da mesma forma, Gert Fischer recorda dos leques pintados por sua irmã Ragnit Eugênia Fischer quando tinha 14 anos. Ele possui dois exemplares guardados como relíquias em sua residência.
A historiadora Raquel S. Thiago relembra que a sala da casa de sua mãe, Elin Veras de S. Thiago, vivia com panos e tintas espalhados sobre a mesa. “Isso foi na década de 1950, lembro bem”, comenta Raquel enquanto lamenta a morte precoce da mãe com apenas 38 anos. Loepper Vernon, morou quando criança, por volta de 1956, numa casa da rua Rio Grande do Sul, perto da Hansen. “Lá, o trabalho tinha características de serviço autônomo in home”. Isso mostra que o home office, do novo normal em tempo de pandemia, não tem nada de novo.
O processo de apanha-entrega, continua Loepper, era de bicicleta (Göricke). “Além dos leques, lembro dos bordados feitos nesse regime e comercializados pelo artista plástico Eugenio Colin (1916-2005)”. Seu Eugênio mantinha um ateliê na própria residência, mas também comercializava os produtos de porta em porta.
Tem-se conhecimento de que as civilizações, desde a Antiguidade, fizeram uso dos leques como símbolo de poder. Em épocas e estilos diferentes, as mulheres foram retratadas, por Renoir, Gauguin, entre outros, segurando leques. Porém, a citação atribuída à Madame de Staël (1766-1817), romancista e ensaísta francesa, de que “uma dama sem leque é como um nobre sem espada” é a mais pura representação da elite europeia e do real significado do valor atribuído aos leques.
Para Joinville, é uma honra ter na pessoa da Dona Nelly uma representante de todas as pintoras de leques da história da cidade.
6 Comments
Excelente matéria e artigo, trazendo um pouco da história da nossa cidade. Parabéns Raquel!
Adorei viajar no tempo com dona Nelly e através de sua escrita Raquel.
Um período rico e calmo da nossa cidade, ordeira e trabalhadora.
Grande abraço e parabéns às duas.
Adorei ver o seu trabalho maravilhoso sempre soube que a tia Nelly dra prendada .Parabėbs pelo comentário Um grande abraço……
Ainda não conhecia essa história dos leques pintados aqui em Jlle. Achei muito linda!! Vou repassar pra minha mãe que conheceu a Dna Nely e seu marido. Parabéns Raquel pela matéria.
Excelente matéria . Muito bom conhecer essas histórias de amor por Joinville
Excelente