Longe de casa encontrei um lar – Capítulo 1
Somayhe mora no Brasil com sua família há 18 anos e busca manter viva as raízes de seu país natal
Por Raquel Ramos
O país que hoje é a República Islâmica do Irã data de 550 A.C. Se localiza no Oriente Médio, faz fronteira com o Iraque, Turquia, Azerbaijão, Turcomenistão, Afeganistão e Paquistão. Tem a economia baseada no petróleo e é um dos únicos países não-árabes da região.
O distanciamento e divergências entre os países vizinhos começa pelo idioma, que no Irã é o persa. O governo é conservador e a religião muçulmana, mais ainda. As regras e estilo de vida dos cidadãos são rigorosas. Pela complexidade, o assunto será abordado, sem questionamento. Trata-se de um relato de experiências pessoais e familiares.
Capítulo 1
Apresentação…
Somayeh Safarigavandoghdei Nikdelamnab, 38 anos, é iraniana e mora em Joinville há 18 anos. Ela fala português, persa e turco. A última vez que esteve no Irã, com toda a família, foi em 2017. Depois disso, já viajou duas vezes sozinha, a trabalho, para trazer tapetes, fios e produtos usados na restauração de tapetes persa.
O primeiro contato que tive com Somayeh foi pelo Facebook. Recebi um convite de amizade e aceitei. O que mais chamou minha atenção foi a informação dela ser de Teerã. A atividade com os tapetes persa, também. O meu lado mulher, apaixonada por essa arte milenar, falou alto. Tive o ímpeto de conversar inbox por absoluta curiosidade. Mas confesso que tive receio. A ideia que temos dos muçulmanos é a de que vivem reclusos e de pouca conversa.
Para minha surpresa, esta foi só a primeira barreira quebrada por ela. Logo no início se mostrou disponível para conversarmos pessoalmente. A ideia da austeridade foi dissolvida pela hospitalidade persa de toda a família. Fui presenteada com o chá e a xícara de vidro – própria para bebê-lo. Pão iraniano, lenço trazido da viagem e comida caseira feita pela mãe de Somayhe.
A vinda para o Brasil e os procedimentos burocráticos
O pai, Said Safarigavamdoghdei, sempre trabalhou no comércio de tapetes persa. Ele levava contêineres cheios para a Europa e comercializava na França, na Alemanha e na Suíça. Motivo que o obrigava a ficar fora do seu país por até mais de um ano.
Através de pessoas conhecidas, Said veio para o Brasil. Ficou em São Paulo até descobrir que no sul não havia artesãos de tapetes. Foi quando veio para Joinville.
Depois de 4 anos, decidiu fixar residência e foi em busca dos trâmites possíveis para trazer a esposa e os seis filhos para o Brasil. Com a comprovação da empresa que tinha no Brasil, Said enviou uma carta para a Embaixada do Brasil em Teerã convidando a família para vir conhecer este país. Uma exigência do governo brasileiro.
A “carta convite” é obrigatória para obter o visto de turista ao sair do Irã e entrar no Brasil. “Alguém tem que te convidar para vir. Tem que ter a garantia de que vai voltar para o Irã, esta é uma exigência do governo iraniano” diz ela. “Porque eles não querem que o seu cidadão saia e não volte para o seu país.”
Quando chegaram aqui em 2002, Saíd já possuía visto permanente. Com isso ele conseguiu pela “reunião familiar” autorização do governo brasileiro para a permanência da família no Brasil. Porém, a situação deles perante o governo iraniano estava irregular.
Visando resolver esta questão voltaram ao Irã em 2007. Para regularizar tiveram que pagar todos os impostos devidos dos cinco anos que ficaram ausentes, como se tivessem permanecido no país. E pagam até hoje, porque eles mantêm uma casa e uma loja de tapetes, embora esteja fechada.
O completo desconhecimento que as pessoas têm da realidade do Irã causa um certo desconforto para Somayhe. Revela que quando chegaram, todos perguntavam se o motivo da vinda para o Brasil era a guerra. Uma pergunta que se repete com frequência ainda hoje. “Infelizmente as pessoas não conhecem nada do Irã. Da nossa cultura e riqueza. Falam de uma guerra que aconteceu há 40 anos, quando eu nem era nascida” e continua: “Já chegaram a me perguntar se no Irã tem asfalto nas estradas. Para o meu filho, de 13 anos, que já viajou para lá 5 vezes, os amigos da escola perguntam se ele encontra homem bomba nas ruas.”
Aprendizado do idioma português
Entre tantas dificuldades de integração, aprender o idioma foi a primeira a ser enfrentada. E quando pergunto como aprendeu a falar português?, com uma risada ela responde: “Com o Jornal Nacional. Assistia e prestava muito a atenção porque achava que o vocabulário correto estava ali no jornal”. Mas foi com a ajuda de uma vizinha que, junto com os irmãos e mãe, aprendeu as primeiras palavras. “Ela fazia questão de nos ensinar porque assim também assimilava algumas palavras em persa”, relembra com carinho.
No Irã, Somayhe já tinha o nível de escolaridade suficiente para cursar a faculdade, como era o seu desejo. Aqui, precisou ingressar no 2º ano do ensino médio para fazer uma adaptação curricular. Cursou Ciências Contábeis e revela que o idioma foi a maior dificuldade que encontrou no relacionamento com os colegas e professores.
Somayhe diz que precisava aprender especialmente a escrita para frequentar o curso superior. “Eu não conseguia escrever em português. No Irã a gente escreve da direita para a esquerda e o nosso alfabeto é o ALEFBA” e completa: “Ainda hoje, para mim, é bem mais fácil escrever e falar em persa.”
Mesmo fazendo essa observação pode-se dizer que ela domina muito bem a nossa língua. Nota-se que o marido tem mais sotaque, assim como seus pais. Na família eles falam, entre si, o persa e o turco. Uma forma dos filhos se comunicarem com os avós, tios, primos e amigos que moram no Irã. “É também uma forma de mantermos nossa cultura ativa dentro de casa”, diz ela.
Em uma viagem feita ao país de origem, em 2011, foram obrigados a permaneceram lá, durante um ano e meio, por motivo de doença do marido. Por isso o filho mais velho, então com quatro anos, teve que frequentar a escola, uma exigência do governo iraniano. Essa vivência foi importante para ele aprender a falar o idioma persa. Com relação à escrita, os dois filhos, Amir Hossein de 13 anos e Erfan de 8 anos, vão estudar aqui no Brasil com suporte da Embaixada do Irã. “Porém, isso só será possível depois que eles completarem 15 anos”, explica.
Trabalho
“Trabalho com meu pai desde os 8 anos de idade no ramo de tapetes persa. Ele sempre me levava no Bazar, atividade que naquela época nunca era permitido às mulheres”, inicia lembrando que isso começou há 30 anos no Irã.
Desde cedo ela observava o modo como o pai falava com empresários, com os funcionários e como se dirigia aos clientes. Assim aprendeu e se profissionalizou. Naquela época ela já lidava com dinheiro e pagava os funcionários. Uma função normalmente atribuída ao filho homem.
Como ela era filha mais velha, o pai a orientou no trabalho. Se diz apaixonada pelo assunto e que dentre os irmãos só ela segue nesse ramo de negócio. “Meus irmãos amam tapete persa, mas só para colocar na casa”, comenta rindo. E dentre seus filhos, Somayhe acha que é o filho pequeno quem demonstra interesse. “Ele já ajuda o pai na lavação, questiona sobre os produtos de limpeza que são usados”, registra.
Aqui em Joinville, continuamos nesse ramo de comércio trazido do Irã. Vendemos, lavamos, restauramos e tecemos tapetes persa. Este último, uma especialidade feita pelo pai e por sua mãe que são “artesãos como seus ancestrais”, diz com orgulho.
O tapete é uma das manifestações mais características da cultura e da arte persa e remonta à antiga Pérsia. É feito de forma artesanal e dependendo do tamanho pode levar até um ano para ficar pronto. No retorno das viagens, as malas voltam carregadas de produtos. “Se for necessário, deixamos as nossas roupas lá para encher com material dos tapetes, porque aqui não tem. Tudo é autenticamente iraniano”, assegura.
Nessa bagagem trazem lã para a reforma dos tapetes, a tinta usada no tingimento, além do chá usado para pigmentação. Para obter a cor marrom, usam também o pó de café, enquanto o chá é para obter a cor bordô. Com a pandemia esses produtos são enviados por correio ou são trazidos por algum conhecido que venha de viagem. Nesse caso, explica, “pagamos pelo excesso de bagagem.”
Com segurança ela diz que a pigmentação é perfeita. “Trouxemos esse aprendizado do tingimento do fio lá do Irã, como fazem os nossos artesãos”. Informa que seu pai faz reformas de tapetes enviados de São Paulo, Curitiba, porque os clientes sabem que ele faz um ótimo trabalho e sabe tingir com perfeição.
Quando morava no Irã, o marido tinha uma atividade totalmente diferente. Trabalhava com o pai dele no ramo de comércio de compra e venda de caixas de papelão reciclados. Por coincidência, há cerca de cinco anos, antes deles se conhecerem, ele foi trabalhar com um primo da família em um bazar de tapetes. “Mas foi aqui no Brasil que ele aprendeu com o meu pai, se especializou e se profissionalizou”, revela.
Adaptação e miscigenação da cultura e dos costumes
Mesmo morando há 18 anos no Brasil, Somayeh afirma: “continuo sendo iraniana”. Entre os costumes brasileiros, ainda há alguns não absorvidos. Por exemplo, ir à praia. “Ir à praia é uma dificuldade”, afirma. “Colocar traje de banho ‘não rola’, nem mesmo na piscina de casa em frente dos filhos”. As suas irmãs usam roupa de praia. “Elas, sim, já são mais brasileiras do que eu”, afirma.
No Irã não existe o hábito de ir à praia, mas há piscinas nas residências, para a família se divertir. Inclusive, as piscinas são aquecidas para atender nos 6 meses de inverno com temperaturas de até 20º abaixo de zero. As estações do ano são bem divididas entre 6 meses de frio e 6 meses de calor. Durante 3 meses há calor intenso com sensação térmica de 75º graus.
Ao mesmo tempo em que não se habitua a alguns dos nossos costumes, já estranha alguns da sua própria terra. Lá as refeições são feitas sentados no chão. Não há mesas e enquanto todos não param de comer ninguém levanta. Ela lembra que quando morava em Teerã, eles já tinham mesa em casa, mais um dos hábitos ocidentais levado pelo pai das viagens ao exterior. “Diferente da casa da família do meu marido, onde só há a sala de estar” e descreve, “o prato é colocado no chão, para comer usam garfo e colher, não é garfo e faca”. Desacostumada, ela assume que quando ia comer na casa de alguém levava uma faca na bolsa porque já não sabe mais comer com a colher.
Sempre que viajam para o Irã também levam um pouco da cultura, dos hábitos e da comida brasileira. Lá não existe leite condensado, doce de leite, café. “Nas primeiras vezes logo fizemos brigadeiro porque eles nem sabiam o que era isso”, diz ela e já demonstrando a preferência continua, “café tem, mas é da Turquia e não é tão gostoso quanto o do Brasil”.
Se educar um filho em uma cultura é difícil em duas é muito mais. O casal tem a preocupação de mostrar para os filhos os dois lados: a cultura iraniana e a brasileira. A segunda eles absorvem naturalmente, na escola, com os amigos, na internet e televisão. Mas, a essência da educação é na cultura iraniana.
Somayeh pensa que eles têm a liberdade de escolha, “algo que nós não tínhamos. Minha mãe nunca chamou a nossa atenção pela voz, ela só olhava e nós obedecíamos”, e explica que em busca de orientação na educação dos filhos compra livros de autores brasileiros e de autores iranianos. Estes ela adquire pela internet e baixa no celular.
Enquanto em Hamidreza Nikdelamnab, marido de Somayhe, a preocupação está refletida na expressão do rosto. Quando se refere a educação dos filhos ele se preocupa sobre o rumo que essa nova geração está tomando. Percebe a diferença da educação que recebeu dos pais e da dificuldade em transmitir esses ensinamentos aos filhos com tantas influências que eles recebem dos amigos, televisão e redes sociais. Ele se angustia que isso “acabe refletindo na educação, no comportamento e principalmente na fé religiosa deles.”
Os filhos se sentem mais brasileiros do que iranianos, o que Somayhe não considera um problema, já que eles gostam do Irã, se relacionam muito bem com os tios, avós e primos e principalmente respeitam os costumes. Por outro lado, os meninos também vivem contradições. Quando vão para o Irã são vistos como brasileiros e aqui são vistos como iranianos.
Ao filho mais velho é ensinado que se for namorar deve “noivar”. Conhecer bem a moça, pode passear, ir ao cinema, tomar sorvete, mas sem relacionamento físico. “Nós damos a orientação, mas não obrigamos o comportamento. É ele quem decide”, afirma. Da mesma forma sobre o consumo de álcool. Proibido pela religião muçulmana, ela já foi questionada por Amir para saber com que idade poderá beber um chopp. Ao mesmo tempo, ele afirma que não sabe se vai fazer disso um hábito porque nunca provou para saber se é bom.
Em família, sobre o idioma, brincam que um não pode corrigir o outro, pois os pais falam o português com tanto sotaque quanto os filhos o persa e o turco. Mesmo assim ela diz que é muito corrigida pelos filhos, principalmente por Erfan, o mais moço.
Mesmo que de forma indireta, a integração das culturas é feita de ambos os lados. Durante a Copa do Mundo, na Escola Gustavo Augusto Gonzaga, onde os meninos estudam, aconteceu uma atividade cultural sobre todos os países participantes. A professora de Amir interviu, junto a direção, para que fizessem sobre o Irã, já que havia entre eles um aluno persa. Com entusiasmo, Somayhe conta que telefonou para a Embaixada do seu país e eles enviaram panfletos, livros e bandeiras. “Eu levei tapetes persa e todas as meninas da sala desfilaram com os meus lenços”, descreve.
Ainda sobre a escola, relembra que procurou a professora para falar sobre o ensino religioso quando viu o filho mais velho decorando a oração da Ave Maria. Foi uma conversa que resultou em troca de informações. “Hoje os professores quando leem algo sobre o islamismo ou quando querem se aprofundar em algum assunto procuram por nós ou pelos meninos para esclarecimento”, explica.
Amir é um rapaz de pouca fala, timbre de voz baixo e conta que “nunca me senti discriminado em nenhum dos dois países. Mas, no início, eles, os iranianos, me olhavam meio estranho.” Conta que em uma das viagens levou uma chuteira para futebol de grama, e outra de futebol de salão, eles achavam que era tênis. Justifica que isto se dá porque o futebol no Irã não é como o do Brasil. Eles gostam, mas não há diversificação de produtos como aqui.
Além disso, ele intervém citando outras diferenças: “Não podemos andar de bermuda, nem de camiseta regata ou de calça rasgada na rua.” E acrescenta que os meninos usam calça de moletom mas o casaco tem que ser blazer. Rindo diz: “quando chego lá sou obrigado a me vestir como eles.” A mãe fala que Amir quando entra no avião “ativa o modo iraniano ou o modo brasileiro” com uma incrível facilidade.
Tantas idas e vindas não impediu um incidente por desconhecer alguns fatos do cotidiano em Teerã. Fazer sinais com as mãos, por exemplo, foi um problema que Amir vivenciou. O sinal usado como “ok”, no ocidente, com o dedo polegar para cima, no Irã, tem o mesmo significado obsceno de quando apontamos o dedo médio em riste. E Amir fez esse sinal para um policial. Depois de muita explicação sobre ser iraniano, falar persa com forte sotaque, e ser nascido no Brasil, conseguiu se explicar e foi desculpado.