“Missa da Meia-Noite” usa terror metafórico para falar de fascismo
Mike Flanagan brilha ao explorar conflitos entre religião e racionalidade
Por Pedro Novais
“A vontade de Deus, embora perfeita, muda. A vontade de Deus dita a moralidade. E à medida que a vontade de Deus muda, a moralidade também.” A distorção do que é ou não obra divina é a questão que permeia “Missa da Meia-Noite”, nova minissérie do diretor Mike Flanagan, que estreou em setembro deste ano, na Netflix. Assim como em “A Maldição da Residência Hill” e “A Maldição da Mansão Bly”, o diretor usa de elementos de terror para nos entregar um ótimo e elaborado drama.
Escrito e dirigido por Flanagan, o seriado acompanha os moradores da pacata ilha Crockett, que começam a vivenciar acontecimentos estranhos após a chegada de um novo padre à igreja local. A premissa não é algo inédito, mas com uma direção singular e um roteiro bem escrito, “Missa da Meia-Noite” foge dos clichês do gênero e brilha ao explorar os conflitos entre religião e racionalidade.
A direção da série é bem característica do cineasta. Controlada, presente e atmosférica. Para isso, o diretor usa de movimentos de câmera sofisticados, cenas inteiras em plano sequência, enquadramentos inspirados e uma ótima montagem. Tudo isso aliado ao tom melancólico e sombrio da fotografia lavada e amarelada, desenvolvida por Michael Fimognari e James Kniest, parceiros de longa data de Flanagan.
Com duas adaptações de Stephen King no currículo (Jogo Perigoso e Doutor Sono), muito da construção narrativa da nova atração de Flanagan se assemelha a obras do autor. Um exemplo disso é a ilha, que por si só é quase que um personagem. A atmosfera de cidade pequena e acolhedora contrasta com olhares de canto e o constante sentimento de desilusão que ronda os personagens. Entretanto, a mitologia central da série é inspirada no livro de mesmo nome do autor F. Paul Wilson, lançado em 1990.
É interessante como Flanagan usa da mitologia e do horror para falar de assuntos relevantes e atuais. Toda a história é repleta de metáforas e alegorias que abrem espaço para as mais diversas interpretações. Mas é inegável, dado o contexto atual, as analogias referentes ao fascismo e ao conservadorismo moral e cego — basicamente um vírus.
O fato da religião em si ser a católica romana é outro fator interessante no enredo. Traz certa familiaridade — dado que 50% da população brasileira é católica, segundo pesquisa do Datafolha, de 2020. Sendo capaz de despertar alguns gatilhos. As situações incômodas mostradas em cena são experiências vivenciadas por diversas pessoas que participam ou já participaram de alguma divisão do cristianismo.
Alguns personagens, como a megera Bev (Samantha Sloyan), são a personificação de tudo que tem de errado na religiosidade. Sempre com algo a dizer sobre o outro, cedendo do egocentrismo inato quando lhe é conveniente, para se vitimizar diante dos próprios argumentos autoritários e preconceituosos que tanto reproduz.
Tudo isso é feito por meio de um texto bem calculado e perspicaz. Talvez o ponto alto e baixo da produção. Isso porque os personagens falam, às vezes, muito. E essas falas são tão brilhantes e reflexivas que chegam a soar artificiais em alguns momentos. Os diálogos também podem suscitar certa exaustão para alguns telespectadores que esperam por uma experiência mais imediata. Mas não se engane, tudo faz parte de uma construção atmosférica e simbólica orquestrada por Flanagan. E que, sim, entrega o terror na hora certa. Mesmo que talvez por um caminho inesperado.
As atuações são outro ponto a se exaltar. Samantha Sloyan entrega uma personagem familiarmente desprezível, sem parecer escrachada. Já Zach Gilford, na pele do protagonista Riley Flynn, transmite um desconforto mental que perpassa o físico do personagem. É uma atuação contida, porém precisa, e que cresce ao decorrer dos episódios. Contudo, o coração da série está na carismática e perturbadora atuação de Hamish Linklater, como o misterioso padre Paul. É uma atuação cativante e assustadora, transitando ddo amigável e confiável ao duvidoso e instável em instântes.
Com sete episódios de cerca de uma hora, “Missa da Meia-Noite” tem uma narrativa rica e complexa que apresenta várias camadas, personagens bem construídos e desenvolvidos, e que não se resume apenas a uma série de terror — o que pode exigir certa persistência por parte do público. Porém, o saldo final é positivo, carregado de personalidade e originalidade. Sendo também um ótimo entretenimento, e uma boa pedida para o final de semana de Halloween.