PL 2630 acende debates sobre direitos digitais
Big Techs tem se esforçado para a não aprovação da regulação das plataformas digitais, atitude escancara a problemática dos monopólios digitais
Por: Bárbara Siementkowski e Malu da Silva
“Uma luta de Golias contra Davi”, foi assim que Gyssele Mendes, mestra em comunicação e coordenadora de comunicação pelo Coletivo Intervozes, descreveu a relação entre as plataformas digitais e os usuários. A regulação das plataformas digitais virou um assunto urgente para as pessoas e emergente na mídia nas últimas semanas. Entre limitações e avanços, o processo de regularização se torna uma importante etapa para equilibrar esta “guerra” entre os grandes monopólios digitais e os usuários que veem sua vida transformada e centrada pelas redes sociais.
De acordo com a análise “Tendências de Social Media 2023”, da Comscore, o Brasil é o terceiro país que mais consome redes sociais em todo o mundo. São 131,5 milhões de usuários brasileiros conectados. Entre eles está Dona Sueli Bezerra, que utiliza o smartphone no seu dia a dia. Mas, a costureira de 62 anos nem sempre viveu em um mundo conectado.
Dona Sueli nasceu em Ituporanga em 1961 e quando criança não tinha acesso a energia elétrica. Naquele tempo era apenas a luz de querosene, um pequeno rádio e as cartas que recebiam que mantinha ela e sua família conectados com o mundo.
“O pai tinha um rádio, alguns dias escutávamos o jornal e aos domingos acompanhávamos a missa. Mas não escutávamos música, nem outras coisas. A pilha era muito cara, então só o pai que mexia no radinho”, lembra.
Um mundo bem diferente do que aquele que hoje ela carrega na palma da mão, em seu smartphone. Para ela, antes de ter o acesso a internet a vida tinha seu encanto nas coisas simples.
“Era uma vida saudável, tínhamos uma inocência, não tinha maldade. Subíamos nos pés de árvores, colocávamos as melancias no rio para gelar, era tudo à vontade. A gente não trancava a casa, a gente saia na rua e não tinha medo. Éramos felizes”, declara.
Foi quando veio para Joinville que ela teve contato com televisão, internet e seu celular, o qual descreveu carinhosamente de tijolinho. “Meu primeiro celular era um quadradinho e tinha uma anteninha, servia apenas para ligar e mandar mensagem, hoje a gente faz tudo nele”, diz.
Assim como os outros 131 milhões de usuários, Dona Sueli faz de tudo na internet hoje, usa redes sociais para se comunicar, aprende sobre costura no Google, conversa com suas clientes pelo WhatsApp, paga suas contas e se mantém conectada. As plataformas transformaram a vida dela, mudaram seu estilo de vida e facilitaram muitas coisas, segundo a costureira. Mas, esse novo estilo de vida, também acompanha medos e receios.
“Acho que o maior receio é as pessoas invadirem sua privacidade, entrarem na sua conta e tirarem o dinheiro. Mas tem muitas coisas boas também, por exemplo, eu aprendo novas coisas sobre costura, acabamento, molde que eu não sabia”, relata.
Para ela, a criação de leis para regulamentar as plataformas pode ser positivo. “Eu acredito que se tem leis que estabelecem o que pode e o que não pode, a gente se sente mais seguro. Até porque tem muitas coisas que eu tenho medo de abrir. Muitas mensagens que eu recebo no celular eu não abro antes de perguntar pro meu filho”, diz Dona Sueli.
O medo que ela e muitos usuários sentem, refletem a experiência obscura que se tem quando navegamos nas plataformas digitais e entregamos nossa vida na mão das grandes empresas como Google, Meta e Twitter.
Afinal, porque recebemos aquele anúncio? Como eles sabem o que eu preciso comprar? De que forma armazenam meus dados? A resposta para essas perguntas não são claras, muito menos transparentes.
Nesse sentido, a regularização tornou-se um movimento necessário no mundo, que divide opiniões no Brasil e é alvo de ataques pelas Big Techs. Por que será?
Regulação das plataformas digitais: o que é o PL 2630 e o que aconteceu até o momento?
- Conforme explica Gyssele, a regulação significa estabelecer um conjunto de leis, princípios, direitos e deveres para atuação das plataformas no Brasil, ou seja, mecanismos de transparência, de processos, dizer o que as plataformas podem ou não podem fazer dentro dos seus ambientes.
Pensando que essas plataformas vem ocupando um papel cada vez mais central na construção da sociedade, a regularização vem em uma ideia de limitar o poder imenso delas. A gente sabe que hoje elas ocupam um papel central na sociedade contemporânea, elas estabelecem mapas de condutas sociais. Elas ajudam a construir o ‘tecido’ social”,
explica Gyssele.
- Em 2014 foi aprovada a lei nº 12.965, mais conhecida como Marco Civil da Internet.
- O Marco Civil é considerado uma das leis pioneiras para regulação da internet e é a primeira legislação do Brasil que estabelece princípios e garantias de direitos e deveres do uso da internet no Brasil.
- Já em 2020 há a apresentação no congresso do Projeto de Lei (PL) 2630, conhecido como PL das Fake News, com o objetivo de principalmente combater a desinformação.
- Diferente do PL 2630 que trata de um assunto específico, o Marco Civil trata de questões amplas ou “gerais” relacionadas ao uso da internet.
É como se o PL 2630 tratasse de uma pequena parte do Marco Civil da Internet, no caso, ele vai focar em plataformas digitais, que são as redes sociais, mecanismos de busca e serviços de mensagens privadas”,
esclarece Gyssele.
- Outra mudança é que, no decorrer dos anos, até chegarmos em 2023, o PL 2630 passou por várias modificações. O texto que se tem hoje é bem diferente daquele apresentado em 2020 e atualmente ele é um projeto voltado para regular as plataformas e não um projeto voltado especificamente para a questão da desinformação, como era conhecido antes (PL das Fake News).
- No dia 25 de abril o PL 2630 teve regime de urgência aprovado pela Câmara de Deputados, entretanto no dia 3 de maio, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP) adiou a votação a pedido do relator do projeto Orlando Silva (PCdoB), que pediu mais tempo para ajustar o texto e incluir as sugestões recebidas.
- A proposta ainda não tem data para ser votada novamente.
Quais são os principais pontos do PL 2630?
- As plataformas devem trabalhar para remover conteúdos que espalham discurso de ódio, fake news e desinformações, tudo dentro dos termos e políticas de uso que vão de acordo com a legislação nacional. O PL também visa impedir a censura no ambiente online e a aplicação discriminatória de termos de uso pelos provedores.
- Transparência: se aprovado, o projeto de lei estabelece que os provedores devem ter transparência na aplicação dos termos de uso contra os usuários. Os processos atuais são desconhecidos e atuam de maneira fechada e unilateral.
- Contas falsas e robôs: os provedores deverão proibir contas falsas e automatizadas (geridas por robôs). De acordo com o texto, em caso de denúncias que vão contra os termos de uso da plataforma, as empresas devem requerer dos responsáveis a identificação, normalmente feita por meio de documentos de identidade.
- Remoção de conteúdos: os usuários deverão ser notificados em caso de denúncia ou de aplicação de medida por conta da lei. Porém, eles não precisarão ser notificados em casos de dano imediato de difícil reparação; para segurança da informação ou do usuário; de violação a direitos de crianças e de adolescentes; de crimes previstos na Lei do Racismo; ou de grave comprometimento da usabilidade, integralidade ou estabilidade da aplicação.
- Publicidade: todo o tipo de conteúdo pago em redes sociais deve ser identificado, inclusive quando for de propagandas com fins políticos e eleitorais.
- Sanções: empresas que descumprirem as medidas ficarão sujeitas a advertência e multa de até 10% do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício.
Por que as Big Techs são contra o PL 2630?
- Em abril de 2023, o Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), publicou um estudo intitulado “A Guerra das Plataformas contra o PL 2630”.
- Segundo o estudo, o Google, a Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp), o Spotify e o Brasil Paralelo publicaram e veicularam anúncios contra o PL 2630, contrariando as próprias políticas e termos de uso. O estudo caracterizou a atitude como abuso de poder.
- O abuso de poder se dá pela tentativa de impactar a opinião pública e a opinião dos parlamentares contra o PL, às vésperas da votação.
- Ainda segundo o estudo, as plataformas usam o que podem para tentar impedir a votação do PL, pois o que está em jogo são os bilhões arrecadados em publicidades e anúncios que hoje possuem pouca ou nenhuma transparência de como funcionam nestas plataformas. Ou seja, esta restrição e falta de transparência deixa os usuários totalmente à mercê dos interesses econômicos das plataformas, que nada mais são do que empresas privadas com imenso poder na construção do “tecido social”, como disse Gyssele.
- Na última quinta-feira (27), o Google divulgou uma carta aberta contra o PL 2630/2020. De acordo com a Big Tech, o projeto traz sérias ameaças à liberdade de expressão.
O PL 2630 vai acabar favorecendo quem produz desinformação ao limitar a aplicação pelas plataformas de suas políticas e termos de uso, inclusive para determinadas contas de interesse público, e ao “blindar” a remoção de conteúdo produzido por “qualquer empresa constituída no Brasil para fins jornalísticos”.
(Google)
- O estudo apontou que, entre as atitudes tomadas pelo Google está a busca que resulta em sites enviesados e hiper partidários quando pesquisado pelo PL 2630. Por exemplo, o “Boletim da Liberdade”, de propriedade do ex-deputado Paulo Ganime (NOVO), aparece como resultado na primeira página de pesquisa. Paulo Ganime está em campanha aberta contra a aprovação do PL.
- Um dos anúncios do próprio Google intitulava o PL como “PL da Censura”, nome dado ao PL 2360 pelos opositores à regulamentação.
- Por mais que o Google direcione as pesquisas para termos como “PL da Censura”, o estudo mostrou através de ferramentas como Semrush, que analisa os resultados de busca do Google, que o termo “PL da Censura” não era o termo mais utilizado para pesquisar pelo assunto. Ou seja, o Google estaria induzindo negativamente a percepção do usuário através do termo usado pela oposição ao projeto.
- O Spotify veiculou anúncios do Google contra o PL. Porém, no termo de uso do Spotify, a plataforma afirma que não permite conteúdos pagos que tratem de temas políticos.
- Assim como outras plataformas, o Spotify não possui uma biblioteca de anúncios onde seja possível ver, de forma transparente, relatórios das publicidades veiculadas. Portanto, não há como medir quantas pessoas foram impactadas pelo anúncio do Google, contra o PL, veiculado na maior plataforma de streaming de música do mundo.
- Por fim, o estudo ressalta que em 2023, a publicidade digital brasileira movimentou R$32,4 bilhões. Enquanto que a publicidade em todos os outros meios de comunicação foi de R$13,6 bilhões.
- O faturamento com anúncios é a principal fonte de lucro das plataformas, e não há como saber quanto deste faturamento provém de anúncios irregulares ou tóxicos.
O problema é a falta de regulação que cria uma assimetria regulatória na qual 2/3 do total do mercado publicitário (referente a publicidade digital) não obedecem a nenhuma regra, restrição ou obrigação de transparência, deixando anunciantes e consumidores vulneráveis aos interesses econômicos das plataformas. Anúncios promovendo compra de armas, golpes de estado e fraudes financeiras podem facilmente ser veiculados nas plataformas, que ganham dinheiro também com esse tipo de publicidade tóxica.”
(estudo A Guerra das Plataformas contra o PL 2630)
Como o governo está lidando com o processo?
- De acordo com a mestra em comunicação e coordenadora de comunicação pelo Coletivo Intervozes, Gyssele Mendes, é positivo os esforços do governo Lula de estar envolvido no processo. Mas para ela, o processo está acelerado.
- Após a tentativa de golpe do dia 8 de janeiro ter sido articulada via redes sociais, a regulação das plataformas se tornou uma agenda urgente para o governo. Entretanto, Gyssele alerta sobre a importância do debate amplo.
O que a gente tem pedido é para discutir mais sobre, fazer audiência pública. Aprofundar mais os debates que precisam ser feitos antes que a gente saia dando canetadas em projetos e medidas provisórias pelo executivo. E a gente vê um certo desespero do governo de querer legislar logo sobre essa questão, mas a gente não pode achar soluções simplistas para uma causa tão complexa”,
explica Gyssele.
Quais os principais pontos de atenção?
Gyssele declara que há algumas problemáticas que precisam ser resolvidas. Uma delas é a questão da remuneração do jornalismo pelas plataformas e os direitos autorais. Se tem defendido, como sociedade civil através de coletivos, que se crie um outro texto para tratar desta questão.
É uma questão muito delicada, que vai exigir muito mais debate. Então a nossa defesa tem sido em torno de tirar esse ponto deste texto (do PL 2630) e focar nas plataformas digitais”
- Em nota, o coalização Direito das Redes (CDR) – uma rede de entidades que reúnem mais de 50 organizações acadêmicas e da sociedade civil, em prol dos direitos digitais – expôs 10 pontos importantes para análise.
- Entre os pontos, o CDR também defende que o debate sobre os direitos autorais e a remuneração do jornalismo deve ser aprofundado em norma própria.
- Além disso, as entidades também levantam problemáticas relacionadas à imunidade parlamentar prevista no PL 2630, que estende a imunidade parlamentar para as plataformas digitais. Segundo a nota lançada pelo CDR, “as disposições sobre Imunidade Parlamentar criam diferentes categorias de usuários, ao conceder privilégios sem limites para políticos, que são tratados com usuários “superiores”, ainda que descumpram sistematicamente os termos de uso e a regulação.”
- A rastreabilidade também é uma questão que preocupa os coletivos quando analisada em outros cenários. Gyssele explica que nas mãos de um governo autoritário, a rastreabilidade pode ser usada como ferramenta de perseguição contra ativistas e movimentos sociais.
Ao mesmo tempo que é muito positivo saber quem criou ou quem está espalhando conteúdos nocivos, como por exemplo, o pânico dos ataques nas escolas, se olharmos para outro lado, o lado ‘mais fraco da corda’, como movimentos sociais e ativistas que já são perseguidos, isso pode ser nocivo em cenários de governos autoritários”,
fala Gyssele.
Para exemplificar, Gyssele cita defensores de direitos dos povos indígenas que atuam na Amazônia: saber a origem de quem cria este conteúdo pode torná-los alvo mais facilmente.
É uma legislação que foca nas Big Techs, mas que de certa forma também vai respingar em usuários diferentes, de formas diferentes, então é importante tempo para discutir e analisar melhor essas situações”,
reforça.
- Outra grande questão, alvo de críticas e tensão relacionadas ao PL 2630, é a criação de uma entidade autônoma para fiscalização do cumprimento do PL. Conforme Gyssele, esta é uma lacuna deixada pelo texto atual. Para ela esta entidade autônoma precisa estar clara e especificada na lei.
- Além disso, segundo o relator do Projeto, este foi também um dos grandes pontos controversos que influenciaram no adiamento da votação.
- A redação original previa a criação de uma entidade autônoma, enquanto a última versão deixou de prever este modelo regulatório.
- O CDR defende a criação da entidade e considera a retirada como um grave recuo. Além disso, o CDR diz que a pressão feita pelas Big Techs foi a responsável pela retirada da previsão de uma entidade autônoma de supervisão.
- A coalizão ainda reforça a preocupação de colocar esta responsabilidade para a Anatel ou para algum Ministério.
Os enormes desafios que temos diante de um cenário novo devem levar a sociedade a empreender esforços à altura, como a criação de novos modelos regulatórios e instâncias competentes. Nesse sentido, a Coalizão acrescenta sua preocupação com propostas ventiladas nos últimos dias, como a destinação desse papel à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)”
(nota da CDR).
- A CDR conclui que é importante que o texto inclua salvaguardas, mas que representa importante avanço para o país.
Como resultado de mais de três anos de discussões intensas, proposições e escuta, chegamos a um texto que acolhe visões dos mais diversos setores. Ainda que combine aspectos positivos com outros que, a nosso ver, podem melhorar ou que não deveriam ser objeto do projeto em comento, avaliamos que o PL 2630 contribui para que o Brasil dê passos fundamentais rumo à garantia de direitos.”
(nota CDR).