Cursinho Popular Inserção incentiva acesso de estudantes periféricos ao ensino superior
Alunos da periferia de Joinville podem fazer o cursinho pré-vestibular gratuito
Por: Lara Donnola Rodrigues
Somente 36% dos alunos que completaram o ensino médio na rede pública entram numa faculdade. Para os da rede privada, esse percentual chega a 79,2%, mais do que o dobro. Os dados divulgados pelo IBGE fazem parte da Síntese de Indicadores Sociais 2018, que destaca as desigualdades de acesso ao ensino na pré-escola e no nível superior. Neste cenário, alguns grupos criaram iniciativas populares para amenizar essa situação, um exemplo é o Cursinho Inserção, de Joinville.
Segundo a advogada popular e coordenadora do cursinho, Cássia Santanna, o Cursinho Inserção nasceu de uma demanda antiga da população periférica de Joinville, reinvindicada por movimentos sociais, principalmente pelo movimento negro. “Tentamos colaborar com a democratização do acesso ao ensino público superior a partir da constatação que a maioria da população periférica não consegue usufruir desse direito”, destacou Cássia.
Para a doutora em educação e especialista em interdisciplinaridade, Mariana Datria Schulze, o grande papel do ensino superior no Brasil, pensando no processo de democratização que aconteceu a partir da década de 80, é a ascensão social. “Nós procuramos o ensino superior para termos uma outra vida, outra história, para ascendermos social e economicamente”, disse a doutora.
Esse é o objetivo do Cursinho Inserção, trazer novas perspectivas para os jovens periféricos da cidade e inseri-los nas universidades. Em março de 2022, o projeto foi finalmente viabilizado. As atividades são realizadas na Escola de Educação Básica Dr. Paulo Medeiros, no bairro Adhemar Garcia.
A advogada comentou que a escolha de uma escola pública situada na Zona Sul de Joinville se dá pelo fato de ser uma das mais pobres da cidade, onde concentra grande parte da classe trabalhadora. “Lá tem habitações precárias, carência de serviços públicos e essenciais”, comentou Cássia. “O acesso às universidades ainda é uma realidade muito distante desses jovens.”
Através da educação popular são oferecidas diversas atividades pedagógicas. “As aulas, simulados, oficinas, seminários e debates buscam preparar os estudantes para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)”, disse a coordenadora.
Ela informou que o foco do cursinho no ENEM é pela oportunidade de ingressar nas universidades federais através do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), e nas particulares pelo Programa Universidade para Todos (ProUni) e Programa de Financiamento Estudantil (Fies).
O papel dos programas governamentais de acesso à educação superior no Brasil
Para Mariana Schulze, iniciativas como o ProUni, o Sisu e o Fies são excelentes meios de promoção do acesso à educação superior no Brasil. “Não tem como mensurar a transformação social que vivemos nas duas últimas décadas nas universidades”, disse a educadora.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) divulgados em setembro de 2010, apontaram que a escolarização dos brasileiros aumentou naquela época. Os dados mostram que a proporção de pessoas que tinham pelo
menos 11 anos de estudo subiu de 26% em 2004 para 33% em 2009. Também apontou que mais de 97% das crianças de 6 a 14 anos frequentavam a escola.
O gráfico elaborado pelo INEP retrata a evolução na frequência escolar da população de 15 a 17 anos, no período de 2001 a 2012. Conforme o relatório do Governo Federal, alguns avanços ocorreram pela ampliação no atendimento à população mais vulnerável nesta faixa etária. Houve destaque para a distribuição por cor e raça, localização e renda domiciliar per capita.
A taxa de frequência da população preta ou parda teve um crescimento de 79% em 2004 para 82,5% em 2012. A população indígena apresentou um crescimento de 22,4% no período de 8 anos, indo de 74% em 2004 para 90,7% em 2012.
A especialista concorda que muitas pessoas distantes do sistema educacional e fora da realidade de acessar o ensino superior finalmente tiveram uma oportunidade. “É mais do que ter uma profissão, é ter um sonho realizado”, afirmou. “Essa é a maior prova de que as políticas públicas e afirmativas são essenciais para que a população consiga acessar esse espaço”.
Dificuldades enfrentadas
Apesar do avanço nas políticas sociais, ainda há empecilhos que dificultam a permanência dos alunos nas aulas. Cássia disse que a maioria dos estudantes do cursinho já são trabalhadores. “A evasão escolar é recorrente por conta do mercado de trabalho”, informou. Em 2022, o Cursinho Inserção perdeu uma grande quantidade de alunos. “Muitos deles precisam ajudar no sustento da família, e às vezes o horário de trabalho se choca com o horário do cursinho”, lamentou.
De acordo com a Pnad, divulgada pelo IBGE em 2020, a necessidade de trabalhar é o principal motivo para jovens de 14 a 29 anos abandonarem os estudos. A pesquisa aponta que aproximadamente quatro em cada dez jovens que não concluíram o ensino médio precisaram deixar as salas de aula para trabalhar.
Conforme a coordenadora, a maioria dos alunos são provenientes de famílias de baixa renda e enfrentam problemas como a insegurança alimentar. “Como é que o jovem vai estudar com a barriga vazia?”, questionou.
Além da pobreza, existem outras questões que mantêm os alunos em situação de vulnerabilidade social e que podem retirá-los do ambiente escolar, como o racismo, machismo e a homofobia. Por isso, o Cursinho Inserção também presta apoio psicológico relacionado a estas questões.
Quem pode participar do Cursinho Inserção?
Podem participar jovens periféricos que já concluíram ou que estejam concluindo o Ensino Médio em escola pública e, preferencialmente, da Zona Sul de Joinville. As aulas ocorrem aos sábados, das 8h às 12h15, na Escola de Educação Básica Dr. Paulo Medeiros, no bairro Adhemar Garcia.
Segundo a coordenação, o tempo do projeto é de 9 meses durante o ano, começando em março e terminando em novembro. Atualmente há o limite de 170 vagas, e todas estão preenchidas. A maioria dos estudantes têm entre 16 e 18 anos.
Depois do primeiro ano do cursinho, no final de 2022, alguns alunos foram aprovados em vestibulares, inclusive, em universidades federais, conforme a coordenação. Também tiveram um bom desempenho no ENEM, principalmente na redação.
Acesso ainda distante para muitos grupos sociais
Em 2018, no Brasil, os pretos ou pardos passaram a ocupar mais da metade das vagas do ensino superior da rede pública. No entanto, como formam a maioria da população (55,8%), permaneceram sub-representados. Além disso, entre a população preta ou parda de 18 a 24 anos que estudava, o percentual que frequentava o ensino superior aumentou de 50,5% para 55,6% entre 2016 e 2018. Porém, ainda ficou abaixo do percentual de brancos da mesma faixa etária (78,8%).
Os dados são do estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, que faz uma análise das desigualdades entre brancos e pretos ou pardos ligadas ao trabalho, distribuição de renda, moradia, educação, violência e representação política.
Mariana Schulze acredita que as políticas sociais de educação são uma resposta histórica a tudo que foi feito com a população preta, descendente de povos originários, quilombolas e afins. “É uma tentativa de retratação. Nós fomos o último país do mundo a abolir a escravatura e ainda temos, sistematicamente, notícias de circunstâncias de trabalhos escravos”, informou.
Estudos apontam que o aumento da oferta de cursos superiores exerce um papel importante, porém limita a redistribuição de oportunidades. Schulze acredita que o problema da educação no Brasil não é pontual, e sim estrutural. “Não funciona justamente porque foi organizado para não funcionar.”
Cássia considera que além da qualidade do ensino público, existem outros fatores que reforçam as desigualdades sociais. “As provas de vestibulares são filtros de raça e classe no acesso às universidades. Ao selecionar os supostamente mais aptos, reafirma os extremos desequilíbrios sociais”, declarou.
Mariana acha que a resolução do sistema educacional passa por questões políticas e ideológicas. “A população vulnerável não acessa o ensino superior da mesma forma e com a mesma qualidade que outros grupos, justamente por uma questão política, social, ideológica e econômica”, analisou.
Como resolver esse problema?
Segundo a Constituição Federal de 1988, a educação no Brasil é um direito de todos e dever do Estado e da família (Art. 205). A oferta pública é organizada através do “regime de colaboração” entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios (Art. 211) e o ensino livre à iniciativa privada (Art. 209). O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é um direito público subjetivo, sendo o Poder Público responsabilizado pelo não oferecimento ou oferta irregular (Art. 208).
“Não deveriam haver situações terceirizadas por um direito que é meu”, afirmou Schulze. Ela declara que devemos questionar o Estado sobre o que está acontecendo, contestar por que ele está se eximindo de uma responsabilidade.
Para a doutora, é de extrema importância que a educação básica popular brasileira seja repensada. “Reorganizar a educação é um caminho difícil, mas não é impossível. Ela afirma que o Estado precisa ser responsabilizado. “É essencial escolher responsáveis públicos (deputados, senadores, vereadores) que estejam de fato atrelados à causa da educação.”
A educadora ainda incentiva que nós, como cidadãos, devemos nos responsabilizar. “Precisamos escolher pessoas que estejam à altura desse desafio, que defendam as pautas educacionais”, declarou.
Ajude a manter o Cursinho Inserção
Manter o Cursinho Inserção não é fácil. As ações são desenvolvidas por uma equipe de voluntários, com 34 professores e 11 coordenadores. O projeto é sustentado por meio de doações mensais, que são feitas através de financiamento coletivo no site apoia-se. A meta mensal é de R$ 3.000 (três mil reais).
A arrecadação é destinada à impressão de materiais didáticos, aquisição de caneta, apagador, produtos de limpeza, papel higiênico, papel toalha e sabonete líquido. Além de alimentos para o café da manhã dos estudantes, como pão, queijo, presunto, margarina, café, açúcar. Com esse auxílio, o cursinho também ajuda no custo do transporte para os voluntários e alunos.
Diversidade na educação
Cássia acredita que o Cursinho Inserção causa um grande impacto social ao proporcionar a renovação de esperanças e perspectivas de vida aos jovens periféricos. “O projeto contribui com o desenvolvimento social da região, tornando as universidades mais inclusivas e representativas”, disse.
Para Mariana, resolver os problemas da educação é complicado porque se trata de um sintoma social. Schulze acha que o que acontece na escola não acontece apenas no ambiente escolar. “As pessoas são agressivas, preconceituosas e discriminatórias na sociedade, a escola só traz isso como um sintoma”, avaliou.
A educadora acredita que as políticas afirmativas são a principal ferramenta para a mudança na educação. “Defender a educação não significa não criticá-la, e sim fortalecê-la”, disse. “Já que o sistema se organiza para que a mudança não aconteça, nós devemos sempre lutar pelo acesso democrático à educação, pois o acesso ao conhecimento é o acesso ao poder”, incentivou.