No mundo, no Brasil e em Joinville: conheça a história dos 50 anos do hip hop
Por: Fagner Ramos
Em 11 de agosto de 1973, o jamaicano radicado nos EUA, Clive Campbell, conhecido como Kool Herc, decide comemorar o aniversário de sua irmã, Cindy. Nesta data, mal sabia ele que seria o início de um novo movimento que revolucionaria o mundo da música, e que seria dificilmente roubada do povo negro, mesmo que alguns no caminho tentassem: o hip hop.
Herc, inspirado pelos modos como os DJs Jamaicanos tocavam no intervalo dos shows da banda de seu pai, prolongando as bases instrumentais para os frequentadores dançarem enquanto não começava o próximo set do show, levou a ideia para as festas no Bronx, bairro onde foi morar quando se mudou para os Estados Unidos.
Conheça a história de Kool Herc feito pela galeria Christies
Com dois toca-discos, o DJ alongava uma música instrumental da mesma faixa até escolher outro disco com um ritmo semelhante. Durante a troca, o DJ ainda recitava algumas palavras para despertar o interesse do público, que se empolgava e dançava cada vez mais entusiasmado. Nasce aí uma das primeiras técnicas do DJ, o “Merry Go-Round”.
Reza a lenda, que o scratch, uma das principais técnicas dos DJs, foi inventada enquanto Herc praticava em seu quarto. Sua mãe, incomodada com o som alto, bateu na porta e gritou pedindo que ele abaixasse o som. Assustado, ele segurou o disco com a mão, e percebeu o ruído que o vinil fazia quando era manipulado, ficando maravilhado com o barulho.
As técnicas de Kool Herc levavam as pessoas que compareciam nas festas à loucura, e várias interações entre públicos e artistas aconteciam. Pessoas falavam frases durante as bases instrumentais, outras dançavam peculiarmente, alguns realizavam desenhos nas paredes.
Naquele momento e em um ambiente hostil e decadente que era a Nova York dos anos 70, uma nova manifestação cultural iria mudar radical e definitivamente a vida dos jovens no mundo. Nascia o Hip Hop, a junção dos DJs, MCs, B-Boys e o Grafite.
Outro personagem importante para a expansão da cultura de rua sairia de uma das maiores gangues de Nova York. Vendo e participando daquela efervescência, Lance Taylor, até então membro da gangue Black Spades, usou de seu dom de líder, para fortalecer de vez a cultura Hip Hop na América.
Após ganhar um concurso de redação, e fazer uma viagem à África, Lance Taylor decide retornar para os EUA com o ideal de revolucionar mediante outro espírito de grupo, e cria a Zulu Nation, fundamental para expandir o Hip Hop mundo afora. Sai de cena Lance Taylor, e entra a persona Afrika Bambaata.
A Zulu Nation, ong criada por Bambaata, foi fundamental para fomentar a cultura hip hop, com as batalhas de DJs, o conceito e a valorização dos MCs, a proliferação de grupos de danças urbanas, os B-Boys, e uma variedade de artistas que espalham mensagens de resistência através das pinturas em muros, o famoso grafite.
Dos guetos para a indústria mundial
Criado na cidade que mais moldou a cultura jovem no mundo, Nova York, o rap, o motor propulsor do hip hop, ganhou destaque ao aparecer na TV com grande destaque, em 1979, com o Sugarhill Gang, e a música Rappers Delight. Muito do conceito estava naquele som, como as rimas e as sobreposições (sample) de músicas, com a base feita em cima de Good Times da banda americana, Chic.
A música atingiu as paradas da Billboard, e colocou uma interrogação na cabeça da indústria fonográfica da época, que já ciente da fama daquele estilo nas periferias, perceberam que aquilo caberia em discos, e logo poderia ser comercializado e vendido.
Outro marco no rap, foi novamente capitaneado por Afrika Bambaataa, na música Planet Rock de 1982. Feito em parceria com o produtor Arthur Baker, eles decidiram criar uma base em cima da música da banda alemã Kraftwerk — Trans-Europe Express — utilizando o estúdio como um instrumento, misturando sintetizadores, baterias eletrônicas e vocoder. Desta produção, nasceu outro estilo, o eletro funk, e variações do Miami bass e freestyle, que depois seria muito utilizada no funk carioca do final dos 80, início dos 90.
Seria ingênuo falar que o rap, vindo da cultura do povo preto, não precisasse da “afirmação” dos brancos para virar um sucesso, e atravessar barreiras. Aconteceu com o rock, quando só virou um estilo popular com a entrada do Elvis no mercado, e não seria tão diferente com o rap. O movimento ganhou apoio de produtores brancos, e chancela de bandas como o grupo punk Blondie.
Mas o que chamou muito atenção mesmo, foi quando o visionário e ex empresário dos Sex Pistols, Malcolm Mclaren, enxergou no rap, aquilo que ele vira no punk. Um movimento vindo dos excluídos, e que ganharia o mundo logo. Em 1982, ele lançou a música Buffalo Gals, que virou febre na Europa e apontada por muitos, inclusive no Brasil, uma das principais referências do rap.
Deste ponto em diante, o rap começa a tornar-se viável comercialmente, e vários grupos e vertentes foram surgindo, e influenciando outros estilos. Grupos como RUN-DMC que uniram a moda sendo um dos primeiros a serem patrocinados por uma marca fortíssima da moda, a alemã Adidas, ao mesmo tempo, em que eles popularizaram os feats com outros estilos, na poderosíssima Walk This Way com o grupo Aerosmith.
Há o protesto e a raiva do Public Enemy, grupo essencial para levantar questões do racismo americano, e referência para o rap de São Paulo, ao mesmo tempo em que grupos como Beastie Boys, formado só por integrantes brancos, ganham destaques na cena.
Da costa leste (Nova York) para a costa oeste (Los Angeles) o rap voltou para as cenas de gangues, e grupos como NWA, apareceram, escancarando toda a violência policial do bairro de Comptons, e as guerras do tráfico que dominavam a região. O rap de L.A mostrava um lado mais melódico ao mesmo tempo, em que as letras reforçaram a misoginia e a ostentação dos integrantes. O termo Gangsta rap ganha notoriedade.
De Los Angeles, saíram DR. DRE, Ice Cube, Snoop Dogg, a polêmica gravadora Death Row e a uma das maiores lendas do rap, Tupac Shakur, rival direto de Notorious BIG, rapper influente da segunda onda nova-iorquina.
Com a ajuda da MTV, o rap virou uma indústria milionária nos anos 90 e consolidada até hoje como o estilo mais lucrativo no mundo da música. Jay Z, Kanye West, Beyonce, Rihanna que o digam.
O hip hop e o poder para o povo preto no Brasil
Ainda na década de 80, o hip hop e o rap seguiram os mesmos passos dos contemporâneos novaiorquinos. O estilo pegou em cheio os jovens da periferia da cidade de São Paulo, que se reuniam nos pátios da estação de metrô São Bento, o mesmo reduto que os punks frequentaram no mesmo período. Dali surgiram Thaíde e Dj Hum como um dos principais expoentes do movimento, Nelson Triunfo, referência do BreakDance e os Gêmeos, nomes importantes no grafite mundial.
Miele, o famoso agitador e produtor cultural, foi o primeiro artista no Brasil a gravar a música rap, no Melô do Tagarela. Logo depois vieram os Black Juniors, apresentado por Nelson Triunfo ao famoso produtor musical Mister Sam.
Mas a maior referência foi a coletânea Hip Hop Cultura de Rua, tido como o primeiro disco oficial de rap nacional e produzido por Nasi e André Jung da banda Ira, Akira S e Dudu Marote, e que contavam com os artistas Thaíde e DJ Hum, Código 13, Credo e MC Jack.
Nessa mesma época, nos fundões de SP, Capão Redondo, oriundos da mesma escola da São Bento, surgem os Racionais MCs, com seu rap que entrava em conflito o sistema que aniquilava a população da periferia, com uma política higienista e racista. O grupo é para o Rap Nacional, o que o Caetano Veloso é para a MPB, a maior referência do estilo. Todo o rap feito no Brasil, tem o DNA Racionais, seja pelo flow, por batidas, por letras, e principalmente nas atitudes contestadoras.
Os Racionais começaram a carreira em 1988, com a primeira aparição em disco na coletânea Consciência Black, ao lado de outros grupos. Foram 3 discos até 1993, quando estouraram com o Raio-x Brasil, que os levaram para as rádios fora do nicho rap. A música Fim de Semana no Parque, com a participação do grupo de Samba Negritude Júnior, mudou o status de um grupo que ainda avessos a fama e sucesso, não passariam mais despercebidos nos quatro cantos de SP e do Brasil.
Mas em 1997, com o rap estabelecido em todo o mundo, lançaram o clássico, Sobrevivendo no Inferno. O “boy”, o “branco”, passou a conhecer e consumir um grupo que até então fazia shows somente em redutos do rap. O disco foi o responsável por ser o porta-voz de toda a juventude negra brasileira, com o relato dilacerante da realidade do povo preto, pobre, periférico, presidiário e excluído.
Com diversos prêmios, disco do ano por revistas especializadas, e o principal prêmio da MTV Brasil, com direito a uma apresentação antológica no canal aberto, Sobrevivendo no Inferno é até hoje utilizado por faculdades em vestibulares, ou estudos antropológicos.
Nunca realizaram um disco mais ou menos. Em 2002, se reinventaram, e lançaram Nada Como Um Dia Após o Outro Dia. Álbum duplo, letras afiadas, contestadoras, mas com um flow um pouco mais suave, isso para o quesito Racionais MCs.
Demoraram 12 anos para lançar o sucessor, Cores e Valores, um disco considerado o aceno para o rap moderno dos Racionais. Com apenas 32 minutos, e um olhar direto e reto, as composições relatam os mesmos problemas que o povo preto passou a vida inteira, mas agora da visão vidraça de seus integrantes. Nesse disco os Racionais foram questionados por parte do seu público, por deixar de lado o rap “raiz” e apontar para o trap, que até então, não era um gênero tão aceito como hoje.
Com os Racionais, o rap viveu os dias de glória, com lendas como Sabotage, RZO, SNJ, Rappin Hood, Black Alien, Planet Hemp, Marcelo D2, B Negão, Câmbio Negro, MV Bill, e hoje vive o apogeu com Emicida, Criolo, Rincon Sapiência, Baco Exu do Blues, Djonga e tantos outros em vários estilos e derivações que o rap pôde proporcionar a cena.
Joinville tem rap sim senhor
Com o objetivo de difundir o rap feito por grupos da capital paulista, em Joinville, o gênero musical começou só por volta de meados da década de 1990, com o surgimento de alguns grupos. A história e um panorama atual do hip hop na maior cidade de Santa Catarina é contada por um dos seus maiores nomes, o rapper Ukah, em entrevista concedida ao acadêmico de Jornalismo Fagner Ramos.
O gênero musical que chegou a Joinville somente 20 anos após o surgimento nos EUA também foi tema do Projeto Experimental dos acadêmicos do curso de Jornalismo, Pedro Simm e Isabela Peixer. Segundo os alunos, trata-se de um documentário com o objetivo de registrar a cultura urbana da cidade. Além disso, o conteúdo tem como propósito servir de base para estudos e pesquisas sobre o hip hop em Joinville, passando pelos quatro elementos que o compõem: o MC, o DJ, o B-Boy e B-Girl e o grafiteiro.
Confira também:
Esta reportagem especial faz parte de um conteúdo multimídia produzido pelos acadêmicos Diogo de Oliveira e Fagner Ramos, da 4ª fase do curso de Jornalismo, para a disciplina de Jornalismo Digital, ministrada pela professora Marina Andrade.