
Entre conquistas e saudades: a busca por qualidade de vida no sul do país
Por Gabriela Dutra
Sentada na cama em seu quarto, no apartamento inteiro mobiliado por ela e a mãe com esforço, suor e orgulho, Caroline Aviz compartilha as vivências e experiências que marcaram seus 27 anos de vida. Nascida em Belém do Pará e criada no interior, em Boa Vista de Quatipuru, ela representa muitos migrantes que cruzam o país em busca de algo que deveria ser um direito garantido a todas as pessoas, independentemente de onde estejam: dignidade, segurança e espaço para sonhar.
A infância de Caroline foi marcada pela força e coragem das mulheres da sua família. Criada pela avó, ela aprendeu desde cedo sobre cura com ervas e benzimentos — embora a religião da matriarca fosse o catolicismo, era a fé popular que dava conta das dores do corpo e também da alma. “Minha avó fazia de tudo com planta. A gente quase não usava remédio de farmácia”, conta, com uma pontinha de saudade. Ela também lembra das histórias de antepassados curandeiros e fortemente ligados com a espiritualidade, inclusive de um bisavô pajé, de quem ela ouviu que “entrava no rio e saía enxuto”.

Aos 16 anos, deixou Boa Vista para viver com a mãe em Belém, onde existia a possibilidade de estudar e também trabalhar. Depois, casou-se jovem e passou a morar com a família do marido. Trabalhou como jovem aprendiz, fez alguns freelas enquanto começava o curso de Enfermagem. Vivia uma rotina simples, mas relativamente tranquila diante das limitações do interior e das dificuldades vividas por sua família. Sua avó faleceu, e a mãe, Carmen, enfrentando dificuldades financeiras, decidiu tentar a vida no sul do país.
“Ela conheceu um cara pela internet e decidiu ir pra Santa Catarina. Veio com uma mala e fé, literalmente. Eu fiquei no Pará com minhas primas, e a gente se ajudava como podia. Muitas vezes não tinha nem o que comer. Eu tinha medo do que podia acontecer com ela sozinha, sem grana, em um estado desconhecido”, relembra Caroline.
Carmen enfrentou uma série de dilemas — o relacionamento rapidamente não deu certo, o primeiro emprego demorou a vir — mas acabou se estabelecendo em Joinville como vigilante, profissão na qual já havia se especializado no Pará. Só então Caroline sentiu segurança para migrar também. “Um dia eu acordei e pensei: isso aqui não é mais pra mim. Minha mãe estava bem, eu tinha um lugar pra ficar. Peguei minhas coisas e vim.”
Em fevereiro de 2022, Caroline chegou a Joinville com o FIES transferido para uma faculdade daqui, esperança nos olhos e nenhum conhecimento da cidade nem do que estaria por vir. “Minha mãe me buscou, mas uma semana depois já estava viajando a trabalho. Então, tudo o que aprendi aqui foi sozinha, andando pela cidade, conhecendo rodoviária, bairro, faculdade, tudo.”
As primeiras impressões foram positivas. “Achei a cidade muito limpa, segura. Isso me impressionou.” Mas logo vieram os conflitos mais duros. A frieza das pessoas, a xenofobia escancarada. “Ouvi de motorista de aplicativo que a gente vinha pra cá só pra fazer bagunça, pra sujar a cidade. Na empresa onde trabalhei, minha supervisora dizia que não suportava meu sotaque.”
O fato de se sentir sozinha também pesou. “Eu chorava todo dia no primeiro ano. Sentia falta da minha família, dos meus amigos, de ter vizinho batendo na porta pra chamar pra festa.” O que a segurou foi o encontro com a espiritualidade — agora dentro de um terreiro de Umbanda. “Sempre fui chamada pela espiritualidade. Aqui, eu aceitei. Isso me amadureceu muito.”

Hoje, Caroline trabalha como auxiliar administrativa, é estudante de psicologia, compartilha o lar com a mãe e suas primas, e não pensa mais em voltar. “A gente não tem muita coisa, a gente não tá nem perto do que eu pretendo chegar, mas a gente tem qualidade de vida. O nosso apartamento foi montado por nós duas, sem ajuda de ninguém. Minha mãe hoje compra o que ela quer, vive com dignidade, podemos ter momentos de lazer. Só isso já é uma vitória imensa.”. Ela explica que poder trazer aos poucos sua família para Joinville mostra que tudo está valendo a pena, e espera pelo seu irmão, que chegará em julho com emprego garantido na cidade.
Mesmo longe do Norte, Caroline não esquece de onde veio e fala com orgulho das suas raízes. “Eu nunca deixei a minha cultura se perder de mim. Sempre disse que isso não ia acontecer.” No início, fez amizades que eram locais e sempre havia aquele preconceito disfarçado de piada, com risadas do sotaque, dos costumes. Ela achava que isso era normal. Com o tempo, maturidade e conhecimentos adquiridos na faculdade, foi percebendo que isso não era. Seus amigos atuais — quase todos também migrantes, mas a maioria de Santa Catarina — foram escolhidos por afinidade de pensamento e respeito.
Quando questionada sobre o que diria à Caroline de 2022, ela sorri e responde com firmeza: “A gente conseguiu”.