
Transporte público de Joinville: modelo lucrativo e queda no número de usuários são destaques de audiência pública
Com queda de 50% no número de passageiros desde 2000, especialistas apontam lógica empresarial como causa do encolhimento e da precariedade do sistema
Por Dyeimine Senn
Antes mesmo de tomar o microfone do plenário da Câmara de Vereadores (CVJ), na noite do dia 19 de maio, o estudante e pesquisador Vitor Augusto Joenk já sabia exatamente o que queria dizer. Aos 29 anos, cursando a quarta fase de História, ele não chegou ali apenas como cidadão interessado na audiência pública, mas como alguém que vem estudando a fundo um tema que, para ele, é mais do que uma pauta política: é um retrato da desigualdade e da negligência que marcam a história do sistema de transporte coletivo de Joinville.
Com um artigo publicado no caderno de iniciação à pesquisa da Univille, Joenk enxerga o sistema atual como resultado de uma longa trajetória de descontentamentos da população, decisões políticas controversas e um modelo empresarial que “não é pensado para servir às pessoas, mas para garantir lucro a qualquer custo”.
“Essa discussão da tarifa zero não é nova”, afirma. “Ela já aparecia nos anos 90 no Brasil e pelo menos desde os anos 2000 em Joinville. O problema é que nunca saiu do papel porque o modelo de gestão do transporte coletivo sempre priorizou as empresas. E isso vem desde a década de 1920.”
A primeira linha de ônibus de Joinville foi operada em 1926, por uma empresa privada, fundada por Gustavo Vogelsanger: a Santa Catarina — que mais tarde passou a se chamar Transtusa. Nos anos 1967, surgiria a Gidion, segunda grande operadora da cidade, criada por José Loureiro, um dos donos da Transtusa, com apoio da prefeitura. A promessa era levar o transporte às regiões mais afastadas, onde a cobertura era inexistente. “Mas o que se desenhava ali já era um modelo que se consolidava: o poder público entra com o suporte, e a iniciativa privada com o controle e o lucro”, explica Vitor.
Desde os anos 1960, quando a população urbana começou a superar a rural, a insatisfação com o serviço virou constante. As páginas dos jornais da época (disponíveis no Arquivo Histórico de Joinville) registram queixas quase idênticas às que se repetem até hoje: tarifa alta, poucos horários, abrigos precários, longas esperas, veículos lotados. E com o tempo, segundo o pesquisador, só agravou o que já era um problema crônico.
Dados do IBGE revelam que, em 2000, Joinville registrava mais de 50,3 milhões de usuários no sistema ao longo do ano. Hoje, são cerca de 26 milhões. “A queda começou bem antes da pandemia. Em 2019, esse número já tinha despencado para cerca de 35,3 milhões, uma queda de 36%”, destaca.
Para ele, o encolhimento da demanda é consequência direta da lógica empresarial que rege o sistema: menos usuários geram menos receita; mas em vez de melhorar o serviço para atrair mais passageiros, reduz-se a oferta de ônibus e se aumenta a tarifa, o que, por sua vez, afasta ainda mais a população. “É uma bola de neve. O transporte coletivo deveria ser pensado como um direito público essencial, mas aqui virou um negócio. E um negócio que, quando dá prejuízo, responde penalizando o usuário.”
A própria classe empresarial da cidade já manifestava descontentamento com o modelo atual. “Tem matéria de 1998 no jornal A Notícia com a Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) dizendo que não dá mais para sustentar um sistema baseado no aumento contínuo da tarifa. E mesmo assim, estamos aqui, 27 anos depois, ouvindo a mesma coisa.”
No artigo intitulado “Quem não paga, não anda: o Direito à Cidade e o transporte coletivo em Joinville” (p.177-183), o estudante de História, inclusive, menciona que a Câmara de Vereadores prorrogou a concessão até 2014, sob a condição de que as empresas investissem R$ 20 milhões na modernização do sistema. “As empresas continuam operando com contratos temporários, enquanto a licitação do transporte enfrenta um impasse judicial.”
Ele se refere à minuta do edital de licitação do transporte coletivo que a Prefeitura de Joinville enviou, em março deste ano, ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) de Santa Catarina. Após a análise do TCE, a prefeitura poderá publicar o edital e realizar a concorrência para determinar a empresa ou consórcio que irá operar o sistema de transporte público.
Contudo, a distância entre os números e a vida cotidiana é curta e se revela de forma brutal na rotina de quem depende do transporte coletivo para tudo. É o caso do estudante Brunno Alexandre Mattos, de 22 anos, morador do bairro Morro do Meio. Estudante da quarta fase de Psicologia da Faculdade Ielusc, Mattos mora na zona oeste de Joinville e faz parte de um grupo invisibilizado nos grandes debates: jovens trabalhadores e estudantes que dependem do transporte coletivo para tudo. Literalmente.
“Eu gasto R$ 550 por mês com passagem de ônibus. Isso só para ir e voltar do trabalho e da faculdade”, relata. O valor consome cerca de um terço do salário mínimo dele e, com isso, sobra pouco para o lazer e para a alimentação adequada.
Mas o custo mais alto, segundo Alexandre, não é o financeiro. “O tempo é o que mais me afeta. Eu passo de quatro a cinco horas por dia dentro do transporte público. Isso desregula meu sono, me impede de ter hobbies, de estudar com calma. Me esgota.”
A rotina exaustiva de quem mora nas extremidades da cidade revela outro lado da crise: a logística falha, a lentidão do sistema e o abandono da conectividade entre bairros. “A demora nos pontos é absurda. Às vezes espero 40, 50 minutos por um ônibus. E isso em dias úteis. Nos fins de semana pode chegar a uma hora e vinte. Como se vive assim em uma cidade desse tamanho?”, questiona.
Brunno também aponta a falta de acessibilidade, não apenas no sentido físico, mas informacional. “A maioria das pessoas nem sabe que tem direito à integração no cartão ideal. Falta comunicação, falta transparência. Os horários são confusos, os aplicativos não funcionam direito, e o passageiro fica sem saber o que fazer.”
A lista de dificuldades segue: veículos superlotados, ar condicionado inexistente ou ineficiente, redução de linhas e falta de infraestrutura básica nos pontos. E, sobretudo, a falta de escuta.
Foi justamente para dar voz a relatos como o de Brunno que a audiência pública foi realizada. Nessas sessões, qualquer cidadão pode se inscrever para falar sobre suas dificuldades e cobrar soluções das autoridades. O objetivo é tornar o processo político mais transparente e participativo.
Seinfra apresenta dados em resposta a ofício enviado pela CVJ
Durante a audiência pública, representantes da Prefeitura de Joinville também participaram do debate. Charlison Ribeiro, gerente da Unidade de Transportes da Secretaria de Infraestrutura Urbana (Seinfra), apresentou dados sobre o sistema de transporte coletivo da cidade, em resposta às queixas sobre atrasos, lotação e falta de linhas.
A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos enviou um ofício à Prefeitura pedindo esclarecimentos sobre o motivo da falta de linhas, atrasos recorrentes, tarifas altas, superlotação dos veículos e qualidade nos serviços prestados à população.
De acordo com o levantamento, 42% dos usuários consideram o serviço bom, 37% o avaliam como regular e 21% o classificam como ruim. Os pontos positivos destacados foram o atendimento dos motoristas, a forma de pagamento e a limpeza dos ônibus. No entanto, a superlotação, a precariedade dos abrigos nos pontos e o tempo de espera foram alvos de críticas contundentes.
Os dados fazem parte de uma pesquisa realizada em 2022 pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), contratada pela Prefeitura para ajudar a “melhorar a modelagem para o serviço de transporte coletivo de passageiros”.
Conforme Ribeiro, o número de linhas de ônibus em Joinville cresceu 12,5% desde 2022, passando de 192 para 216 rotas. O número de viagens diárias também aumentou: de 4.742 para 5.882 em dias úteis, um avanço de 24%. Os dados técnicos também indicam que 99,74% das viagens programadas foram cumpridas, e 95,63% delas ocorreram dentro do horário previsto, considerando uma tolerância de cinco minutos.
Os atrasos, segundo ele, são causados principalmente por fatores externos, como acidentes, obras e congestionamentos. Já sobre a superlotação, Ribeiro reconheceu que, em horários de pico, muitos veículos operam em capacidade máxima. A média de ocupação nesses períodos gira em torno de 52%. “Obviamente, a gente tem, sim, em situações pontuais, muitos veículos que trafegam na sua capacidade máxima de lotação, mas nunca acima da sua capacidade máxima de lotação”, argumenta.
Segundo o representante da Seinfra, a alta ocupação na ida e veículos mais vazios na volta, ajudam a explicar essa média. “O sistema é calibrado para evitar ociosidade e garantir eficiência na utilização dos recursos públicos”, afirmou Ribeiro.
Taxa do transporte público: uma alternativa para gratuidade
Imagine viajar por Florianópolis sem precisar pagar pela passagem de ônibus. É isso que prevê o Projeto de Lei nº 19470/2025, que está em análise na Câmara Municipal e propõe a implementação do sistema de Tarifa Zero no transporte público da cidade. Para financiar essa mudança, a proposta sugere uma Taxa do Transporte Público (TTP), cobrada das empresas que têm 10 ou mais funcionários.
De acordo com o projeto, cada empresa pagaria R$ 139,03 por empregado a partir do 10º funcionário, ficando isentas as que possuem até nove trabalhadores. A ideia é tirar o custo do transporte do bolso do usuário e repassá-lo para as empresas, que se beneficiam da mobilidade urbana proporcionada pelo sistema.
Para Augusto Joenk, essa proposta vai além da questão financeira e representa uma política de inclusão social. “É sobre garantir o acesso das pessoas à cidade como um todo, não apenas ao trabalho”, afirma.
Embora ainda esteja em debate, a Tarifa Zero de Florianópolis faz parte de um movimento nacional que busca alternativas sustentáveis para garantir o transporte coletivo gratuito, e a Taxa do Transporte Público vem ganhando destaque entre as principais estratégias adotadas.
Quem explica é Mario Roberto Dutra, representante do Movimento Catarinense pela Tarifa Zero. Segundo ele, a TTP é uma forma concreta e constitucional de garantir a universalização do transporte público gratuito, ao substituir o vale-transporte por uma contribuição direta das empresas. “A taxa é recolhida das empresas com base no número de vínculos empregatícios e direcionada a um fundo municipal de mobilidade. Micro e pequenas empresas são isentas”, afirma.
A proposta, que nasceu em Belo Horizonte a partir da articulação entre movimentos sociais e especialistas em mobilidade urbana, já foi incorporada ao debate legislativo de cidades como Florianópolis, ainda que não tenha sido implementada em nenhuma delas. “Belo Horizonte está no estágio mais avançado, com aprovação na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Vereadores”, destaca Dutra.
Mas a TTP não é a única alternativa de financiamento para a Tarifa Zero. Dutra lembra que das 132 cidades brasileiras que já oferecem transporte coletivo gratuito, muitas utilizam outras fontes, como recursos diretos do caixa municipal, cobrança de estacionamento rotativo ou IPTU progressivo.
Em nível federal, tramita ainda o projeto de criação do Sistema Único de Mobilidade (SUM), da deputada Luiza Erundina, que propõe um modelo tripartite de financiamento, com responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios (nos moldes do SUS). “O debate não é novo, mas vem ganhando força. A mobilidade urbana é um problema complexo e não há soluções simples. O importante é buscar melhorias”, reforça Dutra.
Esse esforço por soluções é acompanhado de perto por moradores que sentem na pele as limitações do atual sistema. Para o pesquisador Vitor Joenk, morador do bairro Petrópolis, a discussão sobre tarifa zero vai muito além da planilha de custos. “O problema é sempre tratado do ponto de vista da arrecadação, mas quase nunca da necessidade do serviço em si”, aponta.
Crítico do modo como o transporte coletivo é encarado pelo poder público, o pesquisador defende uma mudança de perspectiva. “A pergunta que deveria ser feita é: quem precisa se deslocar pela cidade, e por que essas pessoas não conseguem?”, questiona.
O conceito de Tarifa Zero, segundo ele, não é novo. A proposta começou a ganhar forma ainda nos anos 1990, em São Paulo, quando o engenheiro Lúcio Gregori, então parte da gestão de Luiza Erundina, apresentou a ideia de um transporte público gratuito, financiado por outras fontes que não o bolso direto do usuário.
Hoje, mais de 132 cidades brasileiras já implementaram algum modelo de gratuidade no transporte coletivo. Maricá (RJ), por exemplo, conta com uma empresa pública de ônibus totalmente subsidiada pela prefeitura. O município opera um sistema de transporte coletivo gratuito, gerido pela Empresa Pública de Transportes (EPT), uma autarquia municipal criada pela Lei Complementar nº 244/2014.
A EPT é responsável pela operação de uma frota de ônibus municipais, conhecidos como “Vermelhinhos“, que circulam por todos os distritos da cidade, oferecendo transporte gratuito a moradores e visitantes. O sistema é totalmente financiado pela Prefeitura de Maricá, com um subsídio mensal estimado em R$ 7,3 milhões.
Além dos ônibus, a EPT também gerencia um sistema de bicicletas compartilhadas gratuitas, ampliando as opções de mobilidade sustentável no município. O modelo de Maricá tem sido reconhecido nacionalmente como uma referência em políticas públicas de mobilidade urbana, destacando-se pela inclusão social e pela promoção do direito à cidade.
É justamente nessa perspectiva que Augusto, acompanha de perto os debates locais sobre mobilidade urbana. Para ele, os dados não são apenas números, mas reflexos da realidade enfrentada por muitos moradores da cidade.
“Em Joinville, a última pesquisa de divisão modal, de 2010, mostrou que cerca de 23% dos deslocamentos eram feitos a pé. Isso não é uma escolha. É uma realidade imposta pela falta de acesso”, destaca. Para o pesquisador, uma parcela significativa da população está confinada ao próprio bairro. “É uma vida limitada ao trabalho e à reprodução dessa mesma lógica. A cidade, nesse modelo, não é para todos.”
Vitor lembra que o transporte coletivo atual em Joinville atende, principalmente, aos horários de trabalho, com pouca ou nenhuma cobertura nos fins de semana e feriados. “Não tem ônibus para aproveitar a cidade. Não tem ônibus para o lazer. A cidade só funciona para quem pode pagar ou tem veículo próprio.”
Tarifa Zero depende de decisão política, não de verba
Na avaliação da vereadora Vanessa da Rosa, autora da proposta da audiência pública, o maior obstáculo para implementar a Tarifa Zero não é financeiro. “Falta muito mais do que dinheiro. Falta vontade política”, afirmou.
Vanessa defende a criação de um Fundo Municipal de Mobilidade, com fontes de arrecadação variadas e já adotadas em outras cidades brasileiras que implementaram a gratuidade no transporte. “A gente pode retomar o estacionamento rotativo, redirecionar os valores pagos de vale-transporte por empresas e pelo próprio poder público, e até usar instrumentos como o IPTU progressivo, que infelizmente ainda não foi aprovado na cidade.”
Segundo ela, esses recursos poderiam compor uma estrutura sólida para subsidiar o transporte coletivo. “Esse é um modelo que funciona. Nas cidades onde foi adotado, os empresários relatam economia e o sistema se tornou mais eficiente.”
Rosa também criticou a atual lógica de dependência do carro particular, que, além de insustentável, reforça desigualdades sociais. “A gente está chegando num ponto em que há mais carros do que pessoas nas cidades. Isso não é futuro. A gente precisa que o transporte público seja atrativo, moderno, ecológico e que as pessoas tenham vontade de deixar o carro em casa.”
A vereadora mencionou ainda a urgência de uma nova licitação para modernizar a frota e possibilitar o acesso a recursos federais para aquisição de ônibus elétricos. “Isso não é uma pauta da esquerda. É uma pauta de todos, uma pauta da sociedade. Estamos falando de justiça social, de direito à cidade, de sustentabilidade.”
Próximos passos na luta pela Tarifa Zero
Sobre a nova licitação, a concessão atual já está vencida e, embora uma nova versão do edital esteja em reformulação, o conteúdo ainda não foi disponibilizado publicamente. Como citado anteriormente, o documento encontra-se sob análise do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina desde março.
Para Vanessa, essa indefinição representa um risco à proposta da gratuidade. “Existe uma pressão clara nesse momento. Estamos na rua, escutando a população, ouvindo as dificuldades que as pessoas enfrentam. Se essa licitação for publicada sem a participação da sociedade, corremos o risco de, desde já, inviabilizar qualquer possibilidade de implementação da Tarifa Zero como estamos propondo.”
A vereadora também afirmou que, caso o edital avance sem considerar as demandas debatidas na audiência, não está descartada uma contestação judicial. “A gente vai avançando nesse meio tempo. Se houver algo no texto da licitação que inviabilize o projeto, vamos recorrer judicialmente. Porque não dá mais para ignorar esse debate em uma cidade do tamanho de Joinville.”
A presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, Vanessa da Rosa, também indicou o próximo passo. “Estou reunindo todas as falas e informações trazidas aqui para montar um projeto consistente, que seja viável”, explicou a vereadora.
Entre as ações previstas, Vanessa pretende conversar com setores estratégicos da sociedade civil e da economia local sobre a Tarifa Zero. “Não se trata apenas de custo, mas de geração de renda, de movimentação da economia, de atratividade para o comércio, de sustentabilidade ambiental e de garantia de um direito básico da população”, afirmou.
O acesso à mobilidade é um direito constitucional, mas o transporte coletivo ainda é tratado como serviço secundário. “Transporte público não pode ser visto apenas como despesa. É uma ferramenta de justiça social. É o que garante o direito de ir e vir das pessoas, de viver a cidade. Isso está na Constituição”, Rosa reforça.
Ela também criticou a postura do Poder Executivo municipal e cobrou responsabilidade. “Não dá para o poder público fazer vistas grossas. O transporte é caro, é falho e não garante mobilidade. É papel da prefeitura ouvir a população e reorganizar o orçamento para que esse direito seja respeitado.”