
O nome da minha mãe
Por Camila Vieira e Suyane Urbainski de Quadros
Em uma rua silenciosa e de pouco movimento, vive uma mulher com uma história de vida incomum. Na manhã de uma quinta-feira de outono, chegamos a casa de Marise Vieira. A professora de 53 anos já nos esperava no portão, enquanto brincava com os cachorros da vizinha que passeavam na rua. Recebeu-nos com um sorriso e nos convidou para entrar. Foi na cozinha de sua casa que ouvimos por mais de uma hora as dores e alegrias da sua caminhada de vida – uma história que poderia muito bem ser vista em um filme.
“Ai eu vou chorar”, é a primeira reação de Marise quando começa a falar sobre seus pais adotivos.
Amor em cada detalhe
Marise, uma das quatro crianças adotadas pelo seu José Vieira e a dona Erotides dá detalhes de como cresceu sendo amada e como admira seus pais de criação, que já são falecidos. Isso não se revela só em palavras, mas toda vez que os cita, seus olhos enchem de água.
As idas à praia de fusca, os dias de parque, os mimos que recebiam, um amor marcado por detalhes que ela carrega até hoje em sua memória e coração. “Eles nunca negaram nada para a gente, sabe? Além de amor, carinho, atenção…uma coisa que eu levo para minha vida. Hoje tenho um filho de 19 anos, o João Eduardo, e tudo aquilo que eu adquiri na época, trago comigo e passo para ele”, conta Marise.
Seu Vieira e dona Tida – como os pais de criação eram conhecidos, nunca esconderam das crianças a adoção. Marise sabia o nome da mãe, que ela era alta com cabelos longos e tinham os mesmos olhos. Que seus avós eram alemães e de uma família rígida e quando sua mãe engravidou não poderia ficar com a criança, por isso a deixou no hospital para doação. Mas mesmo assim, algo saltava dentro do seu coração, uma inquietude de criança curiosa em busca do seu antigo paradeiro.
Com tanta insistência da menina, seu Vieira temia que a filha fosse à procura de sua mãe e não voltasse mais, contou-lhe que sua mãe biológica havia falecido. Marise nunca mais perguntou nada sobre ela, talvez algo dentro dela havia partido também. “Lembro que eu sempre me olhava no espelho e ficava me imaginando, será que eu sou parecida com a minha mãe?”.
Marise tinha apenas nove anos quando começou a cuidar do lar, já que a mãe havia adoecido. Aos 13, veio o diagnóstico de câncer. Nas idas e vindas do hospital, Tida ficava cada vez mais frágil. “Ela dizia para mim: agora você vai me ajudar a tomar banho, só que a mãe não é mais a mesma pessoa” conta, com a voz embargada. Nove meses depois, dona Tida faleceu.
José Vieira se casou novamente. A relação com a madrasta é um assunto delicado para Marise. Com a partida da mãe, a garota teve dificuldade para se adaptar à nova vida. “Ela assumiu o meu pai, não a gente”. Marise ainda ansiava por aquele amor de mãe que lhe foi tirado tão cedo: “eu pensava, meu Deus eu queria tanto uma mãe, a que me gerou, não pode ficar. A que me amava e eu amava Deus levou, daí agora, eu não tenho carinho”. Hoje as duas mantêm um contato de respeito devido a relação da senhora com o neto.
Marise havia prometido a si mesma, só procuraria sua mãe biológica novamente após o falecimento do pai, para não magoá-lo. E assim o fez. Com as informações que já tinha, graças ao falecido pai, procurou pelo nome e sobrenome da mulher no Facebook: Albertina Waltrick. Por diversas vezes Marise procurou sem encontrar nada. Até que um dia, teve interferência de algo a mais. Ao visitar o santuário de Madre Paulina, em Nova Trento, a mulher fez um pedido em uma conversa com Deus para encontrar a mãe, não porque queria algo em troca, somente para saber se estava bem. Caso não a encontrasse, nunca mais procuraria.
Naquela mesma semana, Marise pesquisou novamente, porém dessa vez, pensou “por que não procurar a árvore genealógica da família?”, foi aí que encontrou um rapaz responsável por montar a árvore da família Waltrick. O homem resolveu ajudar. Por esse nome, ele conhecia duas senhoras, uma a qual, segundo ele, era muito parecida com Marise. O rapaz passou então o contato de uma senhora que conhecia Albertina. Mais adiante, Marise descobriria que essa senhora era sua tia e a dificuldade em encontrar a mãe era porque ela se casou e mudou o sobrenome. E assim Marise tinha finalmente o contato da mãe. E veio então a primeira ligação. Albertina atendeu surpresa, Marise se apresentou, Albertina chorou desesperadamente. “Meu marido sabe, mas meus filhos não. Preciso contar para eles, então marcamos um encontro”.
O dia em que o espelho se reconheceu
Foi no dia 18 de janeiro de 2020 que elas se encontraram pela primeira vez. Com a casa decorada, mensagens de carinho e bolo na mesa, a família toda recebeu Marise. Seus irmãos de sangue nunca viram a mãe sorrir tanto, principalmente nessa época do ano, onde ocorrem as festividades e coincidentemente, o aniversário de Marise, dia 2 de janeiro. Marise aproveitou o encontro para entender mais sobre a sua origem.
A mãe havia engravidado com 20 anos, não era casada, o pai havia falecido e o irmão mais velho assumiu o papel de responsável da casa. Foi esse irmão o principal expoente para o decorrer da história. Ao descobrir a gravidez da irmã, ameaçou a mulher e o bebê, prometeu que se encontrasse a criança, a esquartejaria e daria aos cachorros. Foi o mesmo irmão que contratou dois senhores para espancarem Albertina quando a mesma voltava para casa, os homens a arrastaram para um riacho, chutaram sua barriga e tentaram afogá-la. A irmã de Albertina a encontrou depois do ocorrido e a levou para se recuperar na casa onde trabalhava. O chefe da irmã ofereceu a Albertina que trabalhasse para a família, mas ela não poderia ficar com o bebê, foi assim que a mulher decidiu entregar a criança para adoção.
No dia do parto, quis o destino que a sobrinha da mãe adotiva de Marise, visitasse uma amiga internada no quarto ao lado, ao descobrir que havia uma criança para adoção, a sobrinha logo ligou para dona Erotides, que sonhava em adotar uma criança pois perdeu seu filho de 4 anos para a meningite. Seu Vieira visitou Marise ainda no hospital. Albertina recebeu alta sem a bebê, mas conta que assim que voltou para casa, não conteve o choro e desespero, retornou ao hospital para buscar Marise. Mas a criança já não estava lá.
Quando os ciclos se fecham
Hoje Marise trabalha como professora e mora com o filho, sua grande paixão.. A filha conta que ao reencontrar a mãe muitas coisas fizeram sentido, seus medos e gostos se tornaram mais reais, como se esse processo a fizesse compreender a si mesma e todos os sentimentos que carregava desde a infância.
Marise ainda conta que seus irmãos biológicos relataram existir uma Albertina antes e outra depois de Marise. Ela sorri com frequência e leva a vida com mais leveza, como se, assim que Marise pôs os pés na casa daquela que a gerou, a culpa fosse levada embora.
Hoje elas passam datas comemorativas juntas, trocam conversas sobre seus gostos e tentam recuperar todos os anos que não trocaram uma palavra ou um olhar.
Apesar do grande carinho e respeito pela mãe biológica e por sua história, Marise carrega uma certeza: os reencontros da vida não apagam nem substituem tudo que viveu com seus pais adotivos. “Pai e mãe para mim, foi quem me criou. Isso eu tenho no meu coração, na minha mente, na minha vida.”