
As versões de Ayrton Senna que sobrevivem na memória do tempo.
Por: Camila Bosco
Eu não vi Ayrton Senna correr.
Desconheço a sensação de acordar logo cedo em um domingo de manhã esperando por Ayrton Senna, e após o café quente, sentar em frente à televisão com a família esperando pela largada daquele que não seria superado no próprio país. De gritar com o tema da vitória e vibrar com a narração emocionante de Galvão Bueno. “Ayrton! Ayrton Senna do Brasil!”. A sensação de ver a bandeira quadriculada balançando enquanto aquele brasileiro atravessava a linha de chegada. Enquanto o nosso herói subia ao pódio. E justamente por desconhecer essa sensação é que eu precisava entender, como apaixonada pela Fórmula 1, quem era a pessoa que também era a alma do esporte. O que sei é que posso explicar que as vitórias mais bonitas da Fórmula 1 não foram vistas por mim, que, na verdade, nasci sete anos após sua morte, e nunca sentirei as emoções de quem viu essa história se concretizar. Talvez nem a imaginação seja capaz de descrever tal sensação. O que sei é o que me contaram, o que ficou marcado nas memórias.

Eu não vi Ayrton Senna correr, mas esses caras viram.
A versão de Lemyr Martins, o jornalista
Agendar uma conversa com ele em uma tarde de sexta-feira parecia simples quando tudo estava perfeitamente organizado. A caneta repousava ao lado do bloco de anotações, depois de três testes o gravador funcionava, as perguntas estavam escritas em uma folha separada. No entanto, a ansiedade fazia-se presente ao pensar em falar sobre Ayrton Senna com alguém que foi tão próximo – e que, assim como eu, é catarinense – criava para mim uma expectativa. Quando o telefone tocou, Lemyr atendeu e, minutos depois, me disse que havia reservado um tempo especialmente para conversarmos. Assim, conheci a primeira versão sobre Ayrton Senna.
Lemyr Martins, hoje aos 87 anos, foi jornalista e fotógrafo esportivo e viu além das lentes da câmera fotográfica, além dos relatos jornalísticos que produzia e das entrevistas. A relação entre repórter e entrevistado fez com que ele visse Ayrton Senna como pessoa, uma parte humanizada que poucos puderam conhecer. Uma relação mais próxima, de convivência até rotineira.
O catarinense acompanhou Ayrton Senna ainda na época do kart, viu de perto o surgimento de uma lenda ainda adolescente e também as mudanças de equipe e os pódios que iam aumentando no decorrer do tempo, conforme mudava para categorias mais altas, até chegar na Fórmula 1.
Lemyr se referiu a Senna, algumas vezes, como “guri”, expressão que me fez pensar como eram próximos. Algo que ficou evidente depois de me contar que se dava bem com a família dele, principalmente a mãe, Neide. Senna era o retrato de um verdadeiro profissional: era exigente e determinado, cobrava tudo o que podia dos mecânicos, buscando sempre estar por dentro do que acontecia. Era o tipo de brasileiro que gostava da sensação da vitória correndo no sangue, nunca faltara a um treino e se frustrava quando algo saia do controle. Como em 1988, durante o Grande Prêmio de Mônaco. Estava liderando a corrida e tinha mais de 30 segundos de vantagem sobre o rival Alain Prost, que era o segundo colocado. Um erro custou a vitória quando o carro bateu na entrada do túnel. Ficou tão frustrado que, mais tarde, isolou-se do mundo em seu apartamento em Monte Carlo.
“E aí ficou com vergonha de enfrentar o mundo, foi de capacete e tudo pra casa dele. Ele morava no mesmo edifício que levava o nome da princesa Grace. Era o edifício Grace. E ele foi para lá. Só que ele ficou sentado no corredor duas horas, até terminar a corrida. Porque tinha dito para a empregada: “olha fulana, não atenda o telefone, não atenda o interfone, não atenda o interfone da garagem, nada. Nada que eu não dê licença para ninguém vir aqui.”
Ayrton era considerado o rei de Mônaco, ganhou seis das dez corridas de que participou. Os jornalistas muitas vezes se questionavam como o piloto conseguia se sair tão bem em relação aos rivais em um circuito, que era travado e perigoso com aquele tipo de traçado.
“ Ele não dizia e aí eu insistia: “tem uma característica?” “Ah, talvez porque eu seja canhoto.” E como canhoto? É, porque ele era realmente canhoto (…) enquanto todos os outros pilotos destros tinham que tirar a mão do volante para fazer a mudança, ele fazia com a mão boa (…) Não tirava a mão da direção, tinha perfeito comando sobre o carro” – relembra Martins.

Lemyr me contou que ao longo dos anos ele esteve em todas as casas de Senna e que, por vezes, vira o rapaz fazendo as tarefas do cotidiano. Que gostava das fotografias que registrou de Senna na própria casa. A que o jornalista me enviou mais tarde por e-mail mostrava o cenário que havia me descrito: Ayrton era tão perfeccionista que preferia lavar as próprias roupas na máquina que tinha em casa, pois não gostava do cheiro de sabão da lavanderia. Preferia poder escolher o perfume.
Senna era tão organizado que quando faziam refeições junto aos companheiros era uma cena quase sistemática. Sentava-se à mesa, pegava uma fatia de pão, passava manteiga, geleia e cortava tudo em pedacinhos. Inclusive, todas essas preparações foram assunto entre jornalistas e paparazzis. Uma vez, em um hotel, subornaram uma empregada para descobrir como era a intimidade dentro do quarto de Ayrton. Queriam saber os detalhes da roupa, da cama, das malas, tudo.
Fora das pistas, Senna era um homem comum, com uma vida igualmente comum. Mas com a popularidade veio o preço da fama, que lhe custava a falta de privacidade Tanto que Senna comprou um avião particular.
Enquanto me falava das viagens, o jornalista me confessou dizendo ter algo fantástico guardado quase como se fosse um segredo, ele relembrou o dia em que a imprensa foi chamada às pressas para o aeroporto de Guarulhos. O motivo? A Polícia Federal havia montado um esquema digno de filme. A chamada ‘Operação Silva’ teria surgido após os rumores de uma suspeita de tentativa de sequestro contra o astro da Fórmula 1. Os policiais teriam montado uma tática de defesa usando cinco carros idênticos. Para maior segurança, o avião do piloto pousou e assim que saiu do local, Senna embarcou direto em um carro cercado por seguranças. O caminho do aeroporto até sua residência na Serra da Cantareira foi tenso e movimentado: os carros trocavam de posições para despistar qualquer ameaça durante o percurso. Até que o piloto chegasse bem em casa. O acontecimento foi algo que pouca gente soube.
A popularidade tinha, portanto, seu lado complexo. Quando ia ao cinema, o piloto precisava esperar até que todas as luzes se apagassem para poder entrar na sala da sessão. As saídas para jantar ou explorar a cidade durante o tempo livre eram mais difíceis, pois frequentemente era abordado por fãs. Lemyr mencionou a vez em que um repórter convidou Senna para uma partida de tênis – ele era fã do esporte, inclusive jogava também com os narradores Galvão Bueno e Reginaldo Leme — e, no dia posterior, a mídia vazou fotos do jogo. Foi uma experiência que detestou e, a partir desse incidente, Senna passou a ser cauteloso e detalhista até mesmo com o rótulo da garrafa de água que bebia. Medidas rigorosas para preservar sua privacidade.
Vários boatos e polêmicas percorreram sua vida pessoal e, em meio aos holofotes da mídia, em uma ocasião surgiu algo curioso: a notícia de um filho. Lemyr me relatou em tom de brincadeira que o boato surgiu de um antigo relacionamento e quando os dois se encontraram ele perguntou: “Você vai ser pai agora, é?” o piloto respondeu rindo: “O quê? Só me faltava essa (…) Não pode. Eu não encontro com ela há 12 meses.” Mas confessou que, embora fosse falso, a família torcia para que fosse verdade. Senna planejava se casar e ter filhos, um desejo que, infelizmente, ele não conseguiu realizar.
A forma como Lemyr falava de forma emocionante, penso que talvez é como se passasse várias imagens na cabeça desse fotógrafo que via o mundo pelas lentes. Naquele momento da conversa, também lembrei nos vídeos que vi nas redes sociais, em como Senna demonstrava gostar de crianças e as perguntas foram surgindo na minha cabeça. Como seria se ele tivesse um herdeiro? Seguiria seus passos? Daria continuidade ao legado na Fórmula 1? São perguntas que nunca terão respostas.
Como alguém que admira tanto o piloto, eu já havia me preparado para ouvir atentamente os relatos sobre o dia da morte. Me ajeitava na cadeira e deixava a caneta azul jogada sobre a mesa, prestando atenção para não perder nenhum detalhe.
Lemyr me contou que nunca havia trabalhado tanto como no marcante dia 1º de maio de 1994, o dia do trabalhador. Eu estava prestes a saber como alguém que acompanhou a sua vida, que o viu crescer profissionalmente e mantinha um contato direto, que sabia de algumas intimidades e assuntos que nunca viriam à tona soube da morte de Ayrton Senna.
Ele estava lá. Ele estava em Ímola. Estava situado na largada, então pegou carona no carro do circuito para registrar novas fotos em um ângulo bom, tinha se posicionado próximo a uma curva do circuito de San Marino. O carro do brasileiro passou uma. Duas. Três vezes e depois não voltou mais. Ele entendeu logo que algo não estava certo.
Ayrton Senna liderava a corrida até que na sétima volta, o carro azul-escuro da equipe Williams se chocou fortemente contra o muro da antiga curva Tamburello, onde os carros alcançavam altíssimas velocidades, beirando os 300 quilômetros por hora. Em uma batida tão forte, o carro levou quase dez segundos para paralisar quando se desfazia como brinquedo e os destroços voaram por toda a parte. A comoção tomou conta. Do outro lado da televisão, os espectadores ouviam a voz apreensiva de Galvão Bueno: “Senna bateu forte”. Os bombeiros correram até o local, logo após chegaram os médicos para realizar os primeiros atendimentos. As imagens mostram o carro visto de cima. O clássico capacete amarelo se destaca. Senna tomba levemente a cabeça para o lado. Para quem assistia de longe, ele parecia ter consciência. Ninguém imaginava que seria deste modo que ele terminaria a corrida.
Após o helicóptero decolar lentamente para transportar o piloto desacordado ao hospital, os telespectadores brasileiros emocionados ouviam a narração: E aí vai, leva a nossa oração, a nossa fé, a nossa reza – a torcida no circuito aplaudia Senna como sinal de respeito.
Lemyr me disse que, no dia, encontrou uma médica brasileira que fora para trabalhar no circuito. Não pensei que ouviria as palavras que mais me causariam impacto naquela conversa, quase como um soco no estômago: “E ela atendeu. E ela me disse, meio chorando, como eu também estava, me dizendo que a traqueostomia [um procedimento em que se faz uma abertura na traqueia para permitir a passagem de ar até os pulmões] feita já foi uma violação de cadáver.”
É como se o fotógrafo retornasse ao passado e revivesse alguns sentimentos, a nostalgia está presente na voz, tento imaginar as particularidades em cada cena relatada, e fico emocionada. Reviver memórias que possivelmente são dolorosas me fizeram questionar se fui insensível ao perguntar sobre o acidente, pensando como se sentiu, o que viu com os próprios olhos. Soube que ele não dormiu, ficou acordado até às seis horas da manhã. O sentimento de angústia e a letargia tomando conta, torcendo para não ser verdade. Mas precisava voltar ao trabalho.
“Eu ficava esperando o Senna aparecer, mas eu não via mais o Senna, eu não via o Senna naquele carro da Williams. Eu ficava esperando o Senna no carro da McLaren, que é aquele carro que marcou tudo, marcou os três campeonatos. Eu esperava aquilo, esperava que viesse aquilo. Como talvez querendo desmentir, querendo fugir daquela realidade.”
Quando a realidade bateu, não compareceu ao enterro e permaneceu em Monte Carlo. O local foi tomado por homenagens. Os fãs montaram altares com flores, imagens de Senna por toda a cidade. Os italianos escreviam “Senna não está morto”. Imagine então como foi o recebimento da notícia no Brasil.
É delicado colocar em palavras o quanto a morte de Ayrton Senna foi intensa, significativa para o mundo. São como nuances de uma cicatriz que mesmo após 30 anos permanece aberta. Lemyr, ele me contou que ainda lembra muito de Ayrton toda vez que um atleta brasileiro sobe ao pódio carregando a bandeira verde e amarela. “Era um ‘Silva’.
Mais tarde, Lemyr Martins transformou suas memórias em dois livros. “Uma Estrela Chamada Senna” detalha algumas das histórias compartilhadas nesta matéria. O título surge de um momento emocionante. Viviane, a irmã, o chamou para mostrar que astrônomos descobriram uma nova estrela na Constelação de Auriga que recebeu o nome de Senna. Hoje, quem olhar para o céu poderá ver a estrela Ayrton Senna. O pódio mais alto que um piloto de Fórmula 1 poderia alcançar.
Antes da corrida em San Marino, pela manhã, Senna procurou Lemyr dizendo precisar lhe contar algo, mas ele nunca soube e nem saberá o que o piloto precisava contá-lo. Mas que precisa passar adiante o que vivenciou. “Eu preciso dividir o Senna com as pessoas”.
A morte de um ídolo como Ayrton Senna parou o país, e quando digo parar é no sentido literal da palavra. Quem me confessou em detalhes a versão de um fã foi Eduardo.
A versão de Eduardo dos Santos, o fã:
Há 30 anos, o Brasil passava por uma situação economicamente instável enquanto uma crise de hiperinflação assolava o país desde a década de 1980, o país chegou a ter quatro moedas diferentes em pouco tempo. Segundo dados do Senado Notícias, houve um aumento anual de preços de quase 2.500%. As famílias estavam endividadas com o alto custo de vida e lutando por melhores condições. Nesse meio tempo, o país também passou pela implantação de uma nova moeda, o real. Em um contexto em que ainda sentiam-se os resquícios da Ditadura Militar e o país tentava se recuperar, o povo reivindicava por saúde, segurança, educação e comida na mesa.
Em meio a esses tempos difíceis, o povo também buscava refúgio em pequenos momentos de alegria. A televisão era uma forma de entretenimento, a Fórmula 1 aos domingos na TV aberta era quase como um clamor por esperança para alguns brasileiros que buscavam por dias melhores, principalmente para aqueles que esperavam por um brasileiro subindo ao pódio.
Conheci Eduardo por meio da filha dele, que me relatou que o pai se emocionava ao ouvir o nome de Ayrton Senna. Eu sabia, portanto, que seria a pessoa ideal para me contar sobre as memórias que ele construiu vendo o piloto correr. Quando agendamos nossa conversa por videochamada, percebi que, mesmo com pouca qualidade de vídeo, conseguia entender por que Eduardo tinha os olhos marejados desde o início da conversa. Aos 42 anos, ele usava um casaco azul-marinho com o símbolo da seleção brasileira de futebol no lado esquerdo do peito. Me contara mais cedo que já havia preparado um lenço de papel para conter as lágrimas. “Eu não tenho vergonha de chorar” , citou.
Eduardo conheceu Senna quando mais novo e passava os domingos da forma típica esperando pelo campeão. Então lhe perguntei “Por que as pessoas ainda têm uma conexão tão grande?” Segundo ele, Senna era diferente. A forte ligação com a nacionalidade o tornava mais “humano”, deixava de lado a separação entre alguém famoso e fã, era uma visão onde todos estavam em um mesmo degrau. Havia simplicidade apesar do dinheiro que tinha, da carreira que havia alcançado. Demonstrava como a religiosidade era significativa na sua vida, era temente a Deus. Conseguia transmitir tudo que o brasileiro sentia para um ‘civil comum’ e isso resultou em uma nação torcendo junto. “Ele colocava em primeiro lugar o país dele, a população, as pessoas que torciam por ele, ele carregava aquela bandeira com orgulho”, relatou completando que o brasileiro mostrava que era o melhor naquilo que estava sendo feito. Eduardo comparou igualmente que hoje em dia a Fórmula 1 não é tão manual como na época de Senna e que a tecnologia sustenta um grande auxílio e facilidade que não existia. O piloto mostrava que, apesar das diferenças técnicas existirem entre as equipes, conseguia se destacar vencendo grandes pilotos como Alain Prost, Nigel Mansell e Michael Schumacher. Alguns destes rivais despertaram nos brasileiros o sentimento de raiva.
“Era só que quando esse tipo de sentimento acontece, é porque tu sabe que tem uma pessoa que é quase do mesmo nível, entendeu? E que batia de frente com o Senna, só que por que a gente não gostava dele? O Prost, ele trocava roda com roda, o que dava alguns problemas.(…) existia muita rixa ali, só que querendo ou não sempre é bom existir porque isso é o que apimenta o esporte.” — Eduardo sobre Alain Prost.

Conforme ele me conduzia pelas próprias memórias, respirava fundo antes de começar uma nova história. Era como um mergulho profundo em nostalgia, aquele momento em que você fixa o olhar em algo e deixa as palavras saírem. Em uma memória marcante, ele lembra da sensação de assistir o Grande Prêmio do Brasil em 1991, corrida histórica que ficou marcada para sempre na carreira de Senna e certamente na lembrança de muitos brasileiros. O piloto que foi pole position largou bem na corrida, mas enfrentou uma briga acirrada com Nigel Mansell, que vinha o pressionando o tempo todo. No entanto, Mansell foi obrigado a realizar uma troca de pneus após um furo no equipamento. Quando a situação parecia mais tranquila, mais da metade da prova já havia acontecido quando Senna encontrou problemas na caixa de câmbio da McLaren branca e vermelha que dirigia. Precisou guiar o carro usando apenas a sexta marcha durante as últimas voltas do circuito de Interlagos. Sabia conduzir o carro como ninguém. Ao ultrapassar a bandeira final, a frase que o telespectador ouve é Galvão Bueno em plenos pulmões gritando “AYRTON! AYRTON! AYRTON SENNA DO BRASIL! De ponta a ponta ele vence em Interlagos. Uma grande vitória!”
Enquanto o áudio no rádio do piloto são gritos de comemoração, os fiscais da prova se aproximam do carro enquanto pulavam de alegria e se abraçavam. O carro desfila lentamente próximo à arquibancada onde o torcedor cantava ‘olê olê Senna, Senna…” e balançavam os bonés na cor azul. Uma cena muito bonita. Mas no pódio, podia-se perceber o quanto o estado físico estava desgastado. Outra corrida que Eduardo contou com os olhos brilhando e a voz um pouco falhada foi a vitória de Senna em 1993, também em Interlagos. Quando o piloto deixou o carro na pista sendo carregado pelos torcedores que invadiram o local.
“E foi onde todo o público que estava no autódromo simplesmente invadiu a pista, entregaram aí uma bandeira para ele e ergueram. Tiraram ele do carro, né, aquilo foi…, é até complicado de falar, mas assim, a gente que lembra muito…o Senna, ele foi tudo. Ele foi exemplo de pessoa, de profissional, de liderança. Ele foi exemplo de muita coisa. Era 100% correto? Era 100% anjo? Não. Ele era um brasileiro, humano como qualquer um, inclusive brigou com algumas pessoas.”
Mais cedo naquela sexta-feira, Lemyr me contara da vez em que presenciou o soco que Senna deu em um jornalista italiano que o havia provocado. Dessa vez, o fã completou a história afirmando que a garra de Senna não era apenas no volante e que defendia os brasileiros com unhas e dentes, no sentido literal se necessário, isso fazia-o admirá-lo cada vez mais. Enquanto Eduardo pausava algumas vezes em sua fala, brinquei dizendo que se ele chorasse naquele momento eu iria chorar junto, o que não era mentira. Nessa conversa, passei a entender que Senna também era cabeça quente e não levava atrevimento para casa. Algo que a família já havia comentado.
Quando chegamos ao tema da morte (que evitamos desde o início da conversa por ser algo delicado) percebi que de alguma forma Eduardo continuamente se emocionava falando sobre sua inspiração. O lencinho branco que havia separado estava molhado devido às lágrimas e os olhos levemente avermelhados. Admitia se sensibilizar e explicava que nas entrevistas, Senna falava não apenas como esportista e a força que tinha para conduzir o carro era como algo sobrenatural, além da compreensão humana. Na ocasião do acidente, ele chegara da igreja junto da família e estava esperando pela corrida, como mais um domingo tradicional. Aquele final de semana tinha sido marcado por emoções: o perigo não se limitava à curva Tamburello. Durante o treino de sábado, o piloto Roland Ratzenberger faleceu em um acidente fatal. Caso vencesse a corrida de domingo, Senna iria homenageá-lo. Estava inquieto com a Williams que dirigia, a relação com a equipe não estava como esperava, há quem diga que Senna não queria correr naquele final de semana. Após o acidente, Eduardo estava angustiado em frente a TV, como se a voz do narrador ecoasse dentro da mente, estático. Relembrou como o atendimento médico foi demorado e pontuou como a transmissão midiática mostrava a fatalidade de maneira escancarada, sem censurar imagens sensíveis.
Naquele dia, perguntei “Eduardo, você acha que as pessoas entendem quão grande era o Senna?”. Prontamente me respondeu com convicção que para compreender algo assim, é preciso voltar ao passado e vivenciar a experiência na pele. Notei que não hesitava em me explicar, era como um professor apresentando sua aula para um aluno curioso. Para Eduardo, Senna era motivo de alegria e em cada vitória os brasileiros tinham a garantia que iam começar a segunda-feira bem. Exceto naquele 1º de maio.
“Senna sempre foi um exemplo de garra, um exemplo de persistência, um exemplo de nunca desistir. Se você chegou aqui, é porque tu pode chegar (…) ele mostrava pra todo mundo que a gente era capaz de fazer aquilo que estava programado e mais um pouco. Mais um pouco, sempre ir além, né? Sempre ir além daquilo, porque a gente consegue, a gente é capaz.”
Eduardo reforça novamente que não tem vergonha em chorar ao falar sobre Senna, me explicou que até mesmo a pessoa que não gostava de Fórmula 1 ou que não gostasse do piloto, também se comoveu. Mais tarde naquela noite, revi as cenas em jornais antigos que ele me detalhou com tanto sentimento. O mundo parou para ver o velório de Senna. O país ficou mergulhado em um luto irreversível pela perda de um herói nacional, luto esse que ainda é sentido mesmo após 30 anos. Os jornais anunciavam uma perda incomparável. Segundo a Prefeitura de São Paulo, o velório durou cerca de 22 horas e o cortejo feito pelo Corpo de Bombeiros foi acompanhado por aproximadamente 240 mil pessoas.
As pessoas literalmente subiam em árvores, placas, postes, se penduravam em viadutos. Todos queriam ver o ídolo pela última vez. Enquanto se uniam em um momento tão triste, doloroso, abraçados aos bonés azuis e a bandeira verde e amarelo. Amigos (e também desconhecidos) que se abraçavam em busca de um conforto para o coração. Religiosos que ofereciam suas preces. Um adeus que não queria ser dito. Não havia vergonha para chorar, o sentimento era o mesmo: lágrimas que secaram, mas que deixaram uma marca na memória de quem viveu na mesma era que Ayrton Senna.
“A gente conhecia o Senna só pelo olhar. Ele podia estar com outro capacete, que não fosse aquele amarelo com a faixa verde ali. Ele poderia estar com outro capacete, mas se você olhasse dentro da viseira e visse o olhar dele, nenhum olhar era igual. Era o Senna.” – citou Eduardo.

E por falar em lágrimas, não consigo contar quantas vezes me emocionei ao escrever, reler e repensar sobre o assunto. Mesmo sem ter vivido aquela época, Ayrton esteve presente de alguma forma em minha vida. Nas conversas emocionadas com quem vivenciou, nos olhares de quem testemunhou suas vitórias. Senna estava presente quando citavam seu nome com admiração, em relatos cheios de entusiasmo. Quando os olhos brilhavam. Está presente a cada vez que assisto uma corrida de Fórmula 1.
Até no papel sulfite da escola, penso em como foi marcado pelo nome Senninha. E são esses pequenos detalhes que fazem com que pessoas como Ayrton Senna sejam sempre consagrados como ídolos e mantidos vivos por anos nas histórias. Não assisti o piloto Ayrton Senna da Silva ao vivo, não conheci o ídolo ou o amigo. Mas cresci ouvindo histórias que nunca pereceram nas memórias.
AS REGRAS QUE MUDARAM PÓS-SENNA
A morte televisionada de um piloto tricampeão mundial que estava no auge da carreira, aos 34 anos, fez com que os olhos do mundo e as lentes das câmeras estivessem direcionados à Fórmula 1. O acidente fatal de Ayrton Senna desencadeou uma sequência de impactos dentro do esporte automobilístico. E não falamos apenas das alterações do Autódromo Enzo e Dino Ferrari.
A repercussão na mídia fez com que a opinião pública — incluindo de muitos que não eram próximos ao esporte — pressionasse a comunidade do esporte automobilístico a rever as principais medidas de segurança, questionando os riscos de mortalidade que os pilotos e mecânicos eram submetidos. Se antes do final de semana de 1º de maio de 1994 a segurança no esporte era tratada apenas como uma questão técnica, nesse momento a revisão das normas de segurança passaram a ser prioritárias. De forma lamentável, a cicatriz deixada pelo capacete amarelo de Senna nas curvas de Tamburello, assim como os acidentes de outros pilotos naquele trágico fim de semana, como Rubens Barrichello e Roland Ratzenberger, se tornaram marcas de algo que precisava ser superado e repensado. A famosa curva foi redesenhada, dando lugar a uma chicane e obrigando os pilotos a frearem. Em diversos circuitos, as áreas de escape foram ampliadas e barreiras de absorção de impacto reforçadas. Além disso, o design dos cockpits, uniformes e a estrutura dos carros foram revisados. O apoio da cabeça e pescoço, o Hans (“head and neck support”) foi incrementado para que não houvesse os mesmos danos que ocorreram com o crânio de Senna após o acidente.