
Relações na era digital: porquê o álbum Regina, de niLL, ainda é muito atual
De mensagem no WhatsApp à saudades da mãe, o rapper embarca em uma viagem intimista sobre a modernidade líquida
Por Pedro Simm
Desde 2017, o chamado “Ano Lírico” dentro da cultura Hip Hop, o rap brasileiro tem vivenciado uma ascensão do estilo. Com o crescimento de um estilo musical, é natural que existam subdivisões dentro do próprio gênero, e com o Rap não foi diferente.
O que antes se resumia a ritmo e poesia em cima de batidas marcantes agora se torna algo mais complexo. Trap, drill, plug, grime, boombap e lo-fi são alguns dos gêneros derivados do hip-hop, sendo o primeiro o de maior sucesso, vide artistas como Veigh, Ryu, Matuê, Teto, Oruam, entre muitos outros.
O Brasil é cheio de artistas que se destacam nas mais diversas vertentes, mas tem um em específico que se aventura e passeia por todos os ritmos. Eu estou falando do Davi de Andrade, mais conhecido como niLL.
O rapper tem 32 anos e nasceu em Jundiaí, cidade próxima da capital paulista. Desde a infância o artista carrega um forte laço com a família, e no seu segundo álbum, e talvez o mais intimista, “Regina”, ele deixa isso claro. Não é à toa que o nome do álbum faz referência a falecida mãe
O álbum é de 2017 mas segue sendo muito atual. Traz pegadas de rap, trap e lo-fi, com uma estética inconfundível para quem escuta, e relaciona a família com a vivência adulta e a modernidade, aprofundando muito a questão da tecnologia e das relações, e como esses dois temas se entrelaçam.
O artista trabalha muito o conceito de modernidade líquida, apontando diversas vezes como as redes sociais aproximam e afastam os laços. Como isso o incomoda e está presente no dia a dia.

Em Regina, niLL se conecta com memórias profundas. Já na introdução do álbum, na faixa intitulada “452” – um interlúdio – ele mostra essa conexão familiar. Na música, um conjunto de áudios da irmã e da sobrinha acompanhados de uma batida calma trazem uma mistura de sensações nostálgicas.
Mesmo não conhecendo o artista ou sua história, sentimos uma identificação quase que familiar, como se ele passasse pra nós exatamente o que ele sentiu enquanto produzia o álbum. Nessa faixa, sua irmã diz que vai enviar um áudio porque “o pacote de dados já vai acabar” e logo depois pergunta se ele vai vir jantar.
De forma sútil, ele conecta a questão da modernidade, da fluidez, com o iminente fim do pacote de dados com algo singelo, algo aconchegante, que é a preocupação da irmã em saber se ele estaria presente para a janta.
Na segunda faixa, WIFI, nILL nos traz uma energia mais tranquila, com aspectos da recente vida adulta dele, mas sempre estabelecendo uma forma de contato com a mãe, Regina. Isso pode ser visto no trecho “Sabe, mãe, era tudo verdade, contamos histórias dentro de boates, e são só questão de fases, não dá pra apertar o pause, ainda preciso ligar no SAC.”
Ele conta pra mãe que é verdade, que ele está vivendo a vida e fazendo coisas que talvez ela não se orgulhasse. Mas também diz que tudo é questão de fases, talvez se referindo às fases rebeldes e das eventuais discussões com a mãe.
Também diz que não dá pra apertar o pause, querendo dizer que queria ter aproveitado mais os momentos, mas que a vida adulta, a correria, o trabalho não permitem isso. Claro, também é uma referência aos videogames, atrelando as fases e o pause, elementos padrões de jogos, à vida real. E ele ainda precisa ligar no SAC, para reclamar que esse botão pra pausar a vida ainda não foi inserido.
Uma curiosidade nas músicas do niLL é que ele também produz muitas delas, desde a batida até a mixagem. Ele carrega o pseudônimo de O Adotado, se referindo à própria adoção, para assinar as faixas que produz.
É o caso de “Jovens Telas Trincadas”, produzida por ele mesmo.Nessa faixa ele mostra essa dependência e dificuldade de construir uma relação na era do celular e do digital. Mostra como nos apegamos às efemeridades das redes sociais, brigamos, compramos e vivemos através de telas, trincadas, igual nossos corações.
Talvez essa seja de fato a música em que o ouvinte mais consiga se relacionar, porque fala sobre a angústia de só ver uns aos outros pela tela do celular. E que rapidamente uma relação dá lugar a outra, mas que todas elas podem se acabar repentinamente, igual o pacote de dados de internet, ou o próprio celular.
É interessante que ele encerra a música novamente com um áudio da sobrinha, cantando um verso em que diz que ama o tio, que tudo na vida vai acontecer, mas encerra dizendo “para, para, para. quebrou o seu celular”. É um momento autêntico que condiz muito com o conceito do álbum.
Inclusive, a presença desse áudios no álbum inteiro, todos orgânicos e de situações reais dão ainda mais conceito ao álbum, porque se misturam totalmente com a ideia que ele quer passar. São momentos autênticos, puros, mas igualmente digitais.

A última faixa, “Tchau, Regina” é talvez a mais melancólica e ao mesmo tempo mais libertadora, porque se trata de uma despedida. niLL fala diretamente com a mãe, fala que o tempo passa e o que fica é a saudade, e que ficou faltando um abraço.
Esse parte se conecta com todo mundo que já viveu ou vive um luto e nos lembra da sensação dolorosa que é a saudade de alguém que não está mais presente. niLL acerta o ouvinte como um soco na boca do estômago, emocionando até os corações mais duros.
No fim da faixa, ele diz que não deu adeus a mãe e sim um te vejo mais tarde, mantendo vivo a ideia e as lembranças da mãe, tanto na memória quanto na discografia. Porque agora Regina está eternizada, para niLL e para os mais de 360 mil ouvintes mensais. E acredito que muitos tenham uma Regina na vida.
Recomendo escutar esse álbum de cabo a rabo, ou seja, do começo ao fim, na ordem cronológica das faixas. É uma experiência única, sonora e sentimental, e tenho certeza que fará você questionar pontos sobre a tecnologia e as relações modernas. Considero o álbum como atemporal.
Você pode ouvir Regina, de niLL, em todas as plataformas de streaming de áudio.