
Ciclo da violência segue em Joinville
Maior cidade de Santa Catarina já registra 2,4 mil casos de violência contra mulher em 2025
Por Adryan Dal Negro e Giovanna Marques
Nos sete primeiros meses de 2025, Joinville registrou 2.498 casos de violência contra a mulher, incluindo dois feminicídios. Os dados são do painel Observatório de Violência Contra a Mulher, disponibilizado pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc).
Com a diferença de apenas um caso a mais em relação ao mesmo período de 2024, as ocorrências deste ano se mantêm estatisticamente sem variação. O painel do Observatório divide as ocorrências em nove classificações, entre violências físicas, morais, sexuais e psicológicas.

A maior quantidade de casos registrados são de ameaça, com cerca de 1,1 mil denúncias, seguido por lesão corporal dolosa leve (582) e injúria (419). Em 2025, março foi o mês mais violento para as mulheres em Joinville, com 439 ocorrências.

Conforme o painel, a idade média das vítimas é de 37,5 anos em Joinville. “Nessa faixa etária, muitas mulheres estão em relacionamentos duradouros, já têm filhos e compartilham a casa e a vida com o agressor, o que torna muito mais difícil romper o ciclo da violência”, explica a advogada Júlia Melim, que atua em defesa dos direitos das mulheres.
O feminicídio é o ponto final do ciclo de violência. Na maior cidade catarinense, duas mulheres perderam a vida pelo fato de serem mulheres. Em ambos os casos, cometidos em maio e junho, o meio utilizado pelos autores foi a agressão física e nenhum deles tinha registro de boletim de ocorrência.
A delegada Geórgia Bastos, titular da Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso de Joinville (DPCAMI), explica que “o homem autor de violência doméstica costuma ser um cidadão comum ‘fora de casa’: trabalhador, socialmente, educado, pagador de imposto e praticante de alguma religião”.
Crianças e adolescentes também são vítimas
Entre os 2.498 casos deste ano, 82 foram cometidos contra menores de idade. “Todos os crimes de violência contra a criança e adolescente são fatos graves e que causam preocupação para a Polícia Civil. Quanto menor a idade da criança, maior a preocupação em razão de que as crianças não têm condições de se defender e procurar ajuda”, afirma a Patrícia Zimmermann D´Ávila, delegada da Polícia Civil de Santa Catarina (PCSC).
Normalmente as denúncias de violência contra menores de idade são feitas por uma pessoa que convive com a vítima e que acaba tendo conhecimento dos fatos de alguma maneira,
conta a representante da PCSC. Por isso, é essencial a colaboração entre todos os agentes da sociedade.
Mulher busca autonomia após agressões
Quebrar o ciclo da violência, seja ela em qualquer uma das suas manifestações, é um ato de coragem e força para as vítimas. A advogada Ana Paula Nunes Chaves, que luta na defesa dos direitos das mulheres em Joinville, já atendeu muitos casos, mas um deles marcou a sua memória.
Carolina* chegou até Ana Paula por meio das filhas. Dentro do casamento, sofria violências patrimonial e psicológica severas, era totalmente dependente do marido e não possuía acesso à dinheiro ou outros bens. “Ela descobriu que o marido mantinha outro relacionamento, no qual ele era financeiramente generoso, o oposto do que era com ela. Embora já soubesse de traições passadas, sempre o perdoava por não ver alternativas. Quando chegou a mim, estava completamente perdida sem saber o que queria ou poderia fazer.”
A autoridade do homem dentro de casa era tão extrema que ele controlava até mesmo o sabonete usado pela esposa. Na gaveta, Carolina tinha apenas dois sutiãs, enquanto o marido comprava lingeries para a amante. Até mesmo uma marca preferida de amaciante para roupas da vítima era alvo de restrição.
Após apoio jurídico da advogada e um acordo com o agressor, a mulher fez sua primeira transferência bancária da vida toda: um pagamento pix à Ana Paula pelas consultas. “Eu sou um passarinho que acabou de sair da gaiola. Ainda voo raso, mas sei que um dia vou voar alto”, Carolina afirmou com orgulho à advogada.
“Mesmo sem processá-lo judicialmente, para mim, essa foi a história mais emblemática. Porque o mais importante foi vê-la compreender os próprios direitos. Mais do que qualquer sentença judicial, o essencial é que a mulher saiba que tem direitos e saiba onde procurar ajuda”, destaca a advogada.
*Nome fictício usado para não identificar a vítima
Acolhimento às mulheres vítimas de violência

O acolhimento de mulheres vítimas de violência em Joinville ainda enfrenta limitações. A DPCAMI funciona em horário comercial, mas uma decisão judicial determinou que, no prazo de 18 meses, passe a operar 24 horas. Fora desse horário, os casos são encaminhados à Central de Plantão Policial.
A cidade também conta com casas de acolhimento, como a Casa Rosa Mulher, que tem capacidade para até 24 pessoas, podendo receber mulheres sozinhas ou acompanhadas de filhos em situação de risco. O espaço oferece apoio psicossocial e orientação às vítimas.
Para a advogada Ana Paula Nunes Chaves, o medo e a vergonha ainda são os principais fatores que impedem mulheres de registrar ocorrência. “O grande motivo pelo qual muitas não denunciam é o medo da reação do agressor, seguido da vergonha. Quando a denúncia não é levada a sério, a vítima se sente desamparada e muitas vezes desiste”, explica.
Ela também chama atenção para a crescente migração da violência para o ambiente digital, como no caso de perseguições, difamações virtuais e uso indevido de imagens. “O espaço virtual se tornou mais uma frente de violência contra a mulher. Mostrando que a tecnologia, ao mesmo tempo em que aproxima, também abre brechas para práticas abusivas”, afirma.
O cenário mostra que Joinville possui estruturas importantes, mas a efetividade do atendimento depende de uma rede que funcione de forma contínua, humanizada e integrada, para que as mulheres não desistam de romper o ciclo da violência.
Santa Catarina lida com ausência de delegacias 24 horas
No Brasil, o “Agosto Lilás” é o mês dedicado à conscientização e ao combate à violência contra a mulher. Conforme a lei federal n. 14.541/2023, o atendimento das delegacias especializadas no atendimento às mulheres deve acontecer de forma ininterrupta, mesmo em finais de semana e feriados.
Ao todo, Santa Catarina conta com 32 delegacias do gênero. No entanto, nenhuma das unidades presta atendimento 24 horas. Ulisses Gabriel, delegado-geral da Polícia Civil de Santa Catarina (PCSC), alega que há falta de recursos e equipes efetivas para suprir a especificação da lei.
“A lei federal foi criada, foi sancionada, só que não transferiu o recurso para que nós pudéssemos abrir essas unidades. Eu precisaria de um grande conjunto de policiais e teria que tirar eles do trabalho de investigação”, argumenta.
Ainda de acordo com o posicionamento da PCSC, o funcionamento 24 horas das delegacias especializadas é destinado apenas ao registro de ocorrências, que também pode ser feito em qualquer outra unidade policial ou ainda por meio da delegacia virtual.
A delegada Patrícia Zimmermann D´Ávila explica que o policial que faz o registro de ocorrência em uma delegacia da mulher é o mesmo que faz na Central de Plantão, por meio da Sala Lilás – um espaço utilizado como alternativa à falta de delegacias 24 horas.
Sala Lilás como atendimento especializado
A Sala Lilás é um espaço criado para oferecer acolhimento e atendimento humanizado a mulheres vítimas de violência. Presente em instituições como delegacias, hospitais e órgãos de saúde, ela busca garantir que o relato da vítima seja feito em um ambiente seguro, reservado e sigiloso, reduzindo o constrangimento e a revitimização.
O funcionamento envolve uma equipe multidisciplinar formada por policiais, psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais, capacitados para lidar com casos de violência de gênero. O diferencial está no acolhimento imediato, na escuta sem julgamentos e no encaminhamento para serviços de apoio psicológico, jurídico e de saúde.
Eliane de Souza Rafael, psicóloga que atuou três anos na delegacia da mulher, diz que a maior contribuição desse modelo é o fortalecimento emocional das vítimas. Segundo ela, muitas mulheres se veem presas em relações abusivas por dependência afetiva ou financeira, e quando o sistema falha em protegê-las, acabam retornando ao agressor. A ameaça também não pode ser subestimada, já que desencadeia traumas graves como ansiedade, depressão e estresse pós-traumático.
Diante da ausência de uma delegacia 24 horas exclusiva para atendimento às mulheres, a Sala Lilás surge como uma alternativa importante.