Patudos da Rua: onde o poder público não chega, elas chegam
Por Ketlin Mylena Ribeiro e Taynara Back Procopio
Era fim de tarde quando uma voluntária da Patudos da Rua resgatou de uma casa da região do Quiriri três cãezinhos que haviam sido abandonados após a família se mudar do local. Ela estava apenas de passagem pela região visitando uma familiar, mas ao se deparar com tamanha dor dos animais os levou para tutela da organização. A mãezinha dos filhotes estava extremamente magra e assustada. Miriam, outra voluntária da Patudos, conta que o processo de recuperação foi intenso: “Eu lembro que ela levantou a cabeça devagar e abanou o rabo, mesmo sem força”.

Foi assim que os pequenos entraram para a lista de vidas salvas pela Patudos da Rua — uma associação que, silenciosamente, luta todos os dias contra o abandono crescente nas ruas de Joinville. Ruas onde cães e gatos vagueiam doentes, famintos, invisíveis. Ruas onde o socorro só chega porque alguns poucos insistem em não virar o rosto.
Joinville não possui números oficiais atualizados sobre quantos animais vivem nas ruas. O Centro de Bem-Estar Animal (CBEA) registrou mais de 580 adoções em 2024, número que cresceu desde 2022. Mas a ausência de dados não significa ausência de problema: basta circular pela zona Norte, pelo bairro Paranaguamirim ou pela região do Boehmerwald para ver cães vagando em bandos, cadelas prenhas, gatos debilitados.
A falta de políticas públicas amplia a crise: castração insuficiente, pouca fiscalização contra maus-tratos, nenhum programa robusto de acolhimento. Com isso, a superpopulação cresce, assim como as doenças, os atropelamentos e o sofrimento. E o impacto não é só dos animais — afeta também a saúde pública, já que zoonoses e acúmulos de colônias desassistidas aumentam riscos à população. É nesse cenário que grupos como o Patudos da Rua tentam fazer o que o Estado deveria.
Como surgiu a Associação
A Patudos da Rua nasceu em 2015 por um grupo de protetoras de animais que concentrava seus esforços na reabilitação e cuidados de animais em situações de vulnerabilidade. Isso inclui tratamentos médicos, castração, vacinação, chipagem e, o mais importante, a promoção de adoções responsáveis. “Começou com um resgate aqui e ali”, lembra Miriam. “Quando vimos, já estávamos com dezenas de animais para cuidar e muita gente pedindo ajuda.”
Hoje, o trabalho funciona de forma totalmente voluntária, com poucas pessoas se revezando em quase todas as frentes. “Nos falta tudo: recursos, políticas públicas, estrutura…”, diz Miriam. “A gente faz porque ninguém mais faz.” Sem sede física, muitos animais ficam temporariamente em lares voluntários — e, às vezes, na própria casa das voluntárias, que improvisam quartos, banheiros e áreas externas para acomodar resgatados.
O caso que machuca lembrar
“Teve um que não conseguimos salvar”, diz Miriam, em voz baixa. Era um cão atropelado na BR-101. Quando chegaram, o animal não resistiu ao trauma. “É muito difícil… a gente chora, mas volta. Porque no outro dia já tem outro pedindo ajuda.”
Em 2023, um gato preso numa boca de lobo mobilizou dezenas de pessoas. A associação conseguiu, com apoio de moradores e de uma equipe de resgate voluntária, retirar o animal com vida. “Ali, sentimos que o problema não é só nosso”, ela lembra. O maior obstáculo, segundo Miriam, é a falta de políticas públicas de conscientização e posse responsável.
A isso se somam:
- falta de recursos financeiros;
- abandono constante;
- maus-tratos;
- devoluções, que aumentam no fim do ano;
- escassez de voluntários.
“Final de ano é quando mais devolvem”, relata. “As pessoas querem viajar e não têm onde deixar o animal. Isso nos entristece muito. O animal se apega, mesmo que por pouco tempo.” Além do físico, existe o peso emocional: ver dor todos os dias cobra um preço.
A avaliação de Miriam é direta: “Sim, sofremos muito com a falta de apoio para uma questão que é DEVER do ESTADO!”. Joinville carece de políticas permanentes de: castração em larga escala; fiscalização efetiva contra maus-tratos; campanhas de educação; parcerias reais com organizações independentes. Com a ausência dessas ações, a associação precisa suprir lacunas que deveriam ser públicas. Cada animal retirado das ruas evita novas ninhadas, reduz riscos sanitários e diminui o sofrimento que se multiplica a cada ciclo de abandono.
Quem é Miriam, a voluntária que não desiste
Miriam, voluntária e uma das vozes mais ativas da associação, divide seu tempo entre trabalho, família e a causa animal — uma rotina que exige equilíbrio, resiliência e coragem. “Eu faço porque amo. Porque eles precisam. E porque alguém tem que fazer”, diz. Ela fala sobre responsabilidade, sobre vidas que dependem de intervenção humana. “Adotem com responsabilidade. É uma vida de uns 10 ou 15 anos. Precisam de amor, ração boa, abrigo, companhia e veterinário.”
Entre os planos da associação para o futuro estão: conquistar um espaço físico para abrigar temporariamente os animais; ampliar campanhas de castração; contar com mais voluntários e alcançar maior visibilidade para educar a população. “Queremos que o abandono diminua. Parece simples, mas é o mais difícil”, diz Miriam. Por fim, ela mostra uma foto postada nas redes para atualizar o estado de um dos animais: o mesmo filhote encontrado na casa no Quiriri agora dorme no sofá da nova família, aconchegado, sereno. “Dexter” é como foi apelidado.


“É por isso que a gente continua”, ela diz. E, por um instante, todo o peso acumulado parece ficar mais leve.
A biomédica Laura, 22 anos, moradora do bairro Espinheiros, sabe bem o que significa mudar o destino de um animal. Na casa dela, vivem cinco pets — quatro cachorros e um gato — e dois deles chegaram através do Patudos da Rua.
Uma delas é a Candy, adotada em 8 de outubro de 2016, durante uma feirinha organizada pela associação. Candy viveu seus primeiros anos de vida acorrentada, presa a uma corrente curta que deixou marcas visíveis até hoje. “Ela não recebia comida nem água direito. Foi retirada por ordem judicial”, conta Laura. Depois da apreensão, Candy passou quase um ano no abrigo, esperando por alguém que a enxergasse.
Quando chegou à nova casa, mal se reconhecia como um cachorro: quieta, acanhada, medrosa, não brincava, não latia. Mas, com o tempo — e com amor — algo começou a mudar. Quase um ano depois, a família adotou Pit, outra vira-lata tímida que, sem saber, ajudaria na transformação. “A Pit foi essencial para a socialização da Candy. Elas se completaram”, diz Laura.
Hoje, nove anos depois, Candy carrega mais alguns pelinhos brancos e enfrenta um linfoma indolente, sendo paciente paliativa. Mas continua brincalhona, carinhosa, cheia de vida — e cercada de cuidado. “A gente faz de tudo para garantir a melhor qualidade de vida dela. Ela merece”, completa.


Outra história de amor é a da professora de inglês Sílvia, moradora do Jardim Iririú que já adotou três animais e tornou o ato de ajudar parte de sua rotina diária. Ela costuma sair de casa levando ração na bolsa — um gesto simples que se repete em qualquer lugar por onde passa. “Não consigo ver um animal na rua e ficar sem fazer nada”, conta. Para ela, cada potinho de comida deixado na calçada é uma forma de lembrar que eles existem, sentem fome, frio e medo — e que alguém precisa se importar.
Histórias como as de Laura e Sílvia mostram o impacto real do trabalho da associação: quando uma vida encontra um lar, todo um ciclo de sofrimento é interrompido. E, muitas vezes, quem resgata descobre que também é salvo um pouco no processo.
