O corpo negro e os estereótipos no balé clássico
Por: Ana Pinto e Hayana Ribas
Racismo, palavra de sete letras que tem sua origem etnográfica derivada da junção da palavra “raça”, derivada do italiano “razza”, e do sufixo -ismo. De acordo com o dicionário de português, “preconceito e discriminação direcionados a alguém tendo em conta sua origem étnico-racial, geralmente se refere à ideologia de que existe uma raça melhor que outra”.
A palavra já deveria estar em desuso há muito tempo. Cidadãos negros não deveriam ter que lutar dia após dia por respeito. Em março de 1960, na África do Sul, 20 mil negros protestavam contra uma lei que não permitia que eles circulassem em todos os lugares. A manifestação era pacífica, até que tropas do Exército começaram a disparar contra a multidão. Ao todo, 69 pessoas morreram e outras 186 ficaram feridas. Em memória ao massacre, que ficou conhecido como Shaperville, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o dia 21 de março como o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial.
No Brasil, as coisas demoraram um pouco mais para acontecer. Só em 1888 a princesa Isabel assinou a lei Áurea que acabou com a escravidão no país. Na época, só a partir do decreto é que pessoas escravizadas puderam ser libertos e livres. Porém, será que eles foram livres mesmo?
Ao contrário dos Estados Unidos, ou da África do Sul, no Brasil, nunca houve leis e medidas implementadas com o objetivo de acabar com a segregação. Isso fez com que tivéssemos a falsa ideia de democracia racial, quando, na verdade, mecanismos foram criados durante e depois do período da abolição da escravatura para manter privilégios e reforçar a desigualdade.
Se de um lado pessoas negras lutam todos os dias por igualdade, do outro notamos o conforto e o privilégio de pessoas brancas. Quando analisamos o acesso de negros a direitos básicos, como cultura e arte, presenciamos cada vez mais a falta desses direitos e a luta evidenciada dessa parte da população. Que, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2022, representa 56% da população do Brasil.
Em Joinville, maior cidade do estado de Santa Catarina, também conhecida como cidade da dança, a cultura e a arte são usadas frequentemente como cartão postal do município. Principalmente porque o município abriga a sede brasileira da Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, a maior escola de balé clássico do mundo.
A escola foi fundada em janeiro de 1825 em Moscou na Rússia, com o nome de “Grande Teatro Petrovski”, quando o balé passava por um processo de desprendimento de suas origens francesas e passava a englobar outras culturas. Porém, até a escola chegar em solo brasileiro, foram 170 anos.
Em 1996 a escola fez uma turnê no Brasil e Joinville foi incluída na rota, coincidentemente na mesma época do Festival de Dança, que realizava sua décima quarta edição. Os russos ficaram impressionados com a reverência da cidade diante da arte, e a partir daí o diretor artístico da escola começou a esboçar o projeto de uma sede na cidade.
A Escola do Teatro Bolshoi no Brasil foi fundada em 15 de março de 2000 em Joinville. Desde então, já formou centenas de alunos e ajudou a realizar o sonho e transformar a vida de diversos bailarinos, de todos os estados do país.
“Cidade da dança”, mas será para todos?
Paulo Souza, 19 anos, bailarino negro natural de Guarulhos e morador da grande São Paulo, se mudou para Joinville quando tinha 11 anos. O rapaz passou nos testes e ganhou uma bolsa de estudos para cursar balé clássico na renomada escola de dança, Escola do Teatro Bolshoi no Brasil. Joinville está localizada ao norte de Santa Catarina, e, segundo dados do IBGE de 2021, a cidade é composta por 604.708 habitantes, com sua população predominantemente composta por pessoas brancas.
Paulo afirma que foi muito bem acolhido pelo Bolshoi, e que se adaptou bem à rotina de estudos da escola. Entretanto, quando questionado sobre como a cidade lhe recebeu e se já sofreu algum tipo de preconceito, a resposta infelizmente muda de contexto.“As coisas chatas que eu já recebi daqui foram a questão do racismo absurdamente forte e da homofobia. Quando mais novo já fui seguido pelos seguranças de um supermercado por ser negro, além de uma vez já ouvir xingamentos e piadinhas por ser gay quando estava praticando exercícios no mirante”.
Já na questão da dança, Paulo reflete que ainda é um mundo muito racista. “Por exemplo, em alguns países como Rússia e Alemanha as companhias não aceitam bailarinos negros. Existe uma obra chamada ‘A filha do faraó’, nela os personagens são pretos, mas na Rússia eles pintam os bailarinos brancos de pretos”.
Ao ser questionado sobre como é a relação dos bailarino negros com o Bolshoi de Joinville, e se a escola faz distinção de raça entre os alunos, a resposta foi clara: “No Bolshoi eu nunca senti nada em relação ao racismo […]. Nós estamos no Brasil, um país formado por pessoas de diferentes etnias e a escola respeita esta diversidade”.
Além disso, segundo o bailarino, “[…] o Bolshoi ‘bate’ bastante de frente com essa questão racial. Eles colocam gente preta em papéis de protagonismo e destaque. Afinal, não faz o menor sentido você repetir uma coisa que acontece lá (fora do Brasil) aqui”.
Paulo também fala sobre a importância da representatividade de bailarinos negros na dança e como isso pode impactar na luta contra o racismo. Para ele, mostrar que pessoas negras podem estar onde elas quiserem e mostrar que todo lugar pode ser delas, é o mais importante. De acordo com o jovem, todo lugar que tenha um preto já é uma forma de abrir caminho para outros e evidenciar cada vez mais a luta dessas pessoas.
“Nós sempre somos jogados para as danças afros, pro samba, para danças mais sexualizadas. […] Ok, a gente faz parte desses lugares, mas nós também podemos estar no balé clássico, na moda russa, na engenheira etc.”, afirma Paulo.
Segundo dados do IBGE 2020, Joinville é a cidade com maior número de cidadãos negros em Santa Catarina, 18% da população é negra. Acredita-se que essa comunidade se estabeleceu na cidade no século XVIII, antes mesmo da chegada dos imigrantes europeus.
Diante disso, pesquisas e estudos mostram que a partir da chegada dos imigrantes, o povoado negro perdeu seus bens, e passou a ser escravizado pelas pessoas brancas da época. O Cemitério do Imigrante, grande símbolo cultural da cidade e primeiro cemitério construído em Joinville, apresenta na maioria de suas lápides apenas nomes de indivíduos brancos, enquanto as lápides destinadas ao sepultamento de escravos negros permanecem sem identificação.
O racismo acaba sendo um preconceito estrutural, já enraizado na cabeça de diversas pessoas. É difícil de combater, pois ele é transmitido de geração para geração. Por isso, cada vez mais, se torna necessário dar voz e lugar para as pessoas negras compartilharem sua luta diária, e, quem sabe um dia, acabar com esse preconceito que machuca tanto.
Pele preta, sapatilha rosa
Tayssa Sousa, 17 anos, também bailarina negra, natural de Belém do Pará, se mudou para Joinville em 2017 após ser aprovada na escola Bolshoi. Ela conta que sofreu com o racismo e xenofobia quando chegou no município, “a primeira vez que sofri racismo na vida foi em Joinville”.
O mundo da dança, principalmente do balé clássico, com origens europeias, continua sendo uma arte elitista, até mesmo no seu vestiário. “Me sinto muito mais bonita e representada com meia calça e sapatilhas pintadas da minha cor, já que nas meninas brancas o rosa-claro mescla com suas peles”, conta Tayssa sobre como se sente com as roupas oferecidas pela escola. Nesse caso, Tayssa conta que as meninas negras costumam pintar suas próprias sapatilhas com maquiagem para chegar perto de seu tom de pele.
As sapatilhas de balé foram criadas em 1820 e eram originalmente brancas. Com o passar dos anos, elas foram sendo confeccionadas na cor rosa, para ficarem mais parecidas ao tom de pele das bailarinas europeias. Foram necessários quase 200 anos para que apenas em 2017 a primeira sapatilha que combinasse com a pele negra fosse lançada e produzida em grande escala pela marca norte-americana, Gaynor Minden.
Aqui no Brasil, este movimento chegou apenas em 2020, com a bailarina e ativista precursora, Ingrid Silva. A bailarina, nascida em 1988, na zona norte do Rio de Janeiro, teve seu primeiro contato oficial com o balé aos oito anos de idade. Aos 17, já estagiava na escola de dança Grupo Corpo e começava a ganhar destaque com seu talento.
Hoje, Ingrid é cofundadora da plataforma EmpowHerNY que, desde 2018, conecta diferentes mulheres para que troquem experiências, façam descobertas, contem suas histórias, inventem e se reinventem.
Com sua relevância, a bailarina usou a voz para expor pautas relevantes para comunidade negra, como a da cor das sapatilhas. “No balé clássico, as bailarinas usam meia-calça e sapatilha para criar uma linha contínua na silhueta”, explica Ingrid sobre o motivo e a importância da representação nas vestimentas do balé.
A ativista passou 12 anos pintando suas próprias sapatilhas, até que começou a questionar o porquê de não encontrar vestimentas que incluíssem pessoas negras. As sapatilhas pintadas de Ingrid fazem parte do acervo do Museu Nacional de Arte Africana Smithsonian, nos Estados Unidos, desde 2020.
Hoje, o custo de uma sapatilha de ponta no país, tanto rosa quanto marrom, variam de R$280,00 a R$1.000,00. Uma questão que acaba por perpetuar desigualdades e dificultar o acesso para a maioria da realidade brasileira.
A bailarina Tayssa acredita em um futuro onde essa luta por direitos tenha valido a pena e que a arte seja desburocratizada para todos: “É de extrema importância que os bailarinos negros recebam mais visibilidade nos próximos anos, essa ideia de que o balé é apenas para brancos é completamente irreal”.
Apesar dos avanços recentes na luta contra o racismo no mundo e no balé clássico, há ainda muito a ser feito para garantir a igualdade de oportunidades para todas as etnias. Paulo e Tayssa concordam que esta é uma luta diária e que ainda existem pontos a serem melhorados, os dois têm opiniões semelhantes que se cruzam em diversos pontos. Embora algumas companhias tenham implementado políticas para promover a diversidade, muitas ainda têm um longo caminho a percorrer.
A conscientização e a educação sobre a história do racismo tanto no balé quanto no mundo, são fundamentais para a mudança. Sendo assim, com mais e mais vozes se unindo para exigir mudanças, é esperado que todos continuem a avançar em direção a um futuro mais inclusivo e justo para todos e todas.