Tradição e memória alemã seguem vivas em Joinville
Da mesa farta das antigas colônias aos encontros familiares de hoje, descendentes mantêm práticas que atravessam gerações e ajudam a moldar a identidade cultural da cidade.
Por Priscila Pereira
A lembrança da avó falando apenas alemão. A mesa cheia de marreco recheado, repolho roxo e aipim. A música típica ecoando nos encontros de família. Para muitos germanos descendentes que vivem em Joinville, como Risolete Riper, essas memórias não são apenas cenas do passado, são o fio que mantém viva uma herança transmitida de geração em geração. “A minha Oma falava praticamente só alemão. O que eu sei, aprendi com ela. Era a minha melhor amiga”, lembra.
Assim como Risolete Riper, Laércio Beckhauser e José Francisco Gaiger também carregam marcas profundas dessa identidade. A língua, a culinária, a música, as festas comunitárias e até as dores herdadas como a repressão sofrida por famílias gaúchas durante o Estado Novo ajudam a compor o mosaico que ainda pulsa na cidade.

É a partir dessas vivências que o passado se conecta ao presente. E para entender de onde vêm essas práticas tão enraizadas, é necessário voltar ao início do fluxo migratório que moldou o Norte de Santa Catarina.
Uma história que atravessa séculos
Documentos do Arquivo Histórico de Joinville (AHJ) mostram que a presença alemã no território antecede a própria fundação oficial do município. A área integrava o Domínio Dona Francisca, criado em 1843 como dote da princesa Francisca Carolina. Em 1849, o procurador do casal, Léonce Aubé, firmou um contrato de imigração com a firma de Christian Mathias Schröder, em Hamburgo.
Segundo o Museu Nacional de Imigração e Colonização (MNIC), o primeiro grupo chegou em 1851, composto por suíços e alemães que se estabeleceram às margens do ribeirão que hoje leva o nome de Mathias.
Esse movimento acompanhava a expansão da imigração de língua alemã no Estado. Registros do Arquivo Público de Santa Catarina (APESC) apontam que ela começou em 1828, em São Pedro de Alcântara, avançou para Blumenau em 1850 e chegou à Colônia Dona Francisca logo depois. Entre 1851 e 1889, milhares de imigrantes passaram pela região, formando núcleos que dariam origem a diversas cidades do Norte catarinense.
É nesse contexto que se inserem as histórias de Laércio, Risolete e José, trajetórias que revelam como a germanidade se preservou, se transformou e permanece presente na vida cotidiana de Joinville.
Laércio Beckhauser, empresário aposentado, traz consigo uma herança que remonta a 1862, quando seus ancestrais chegaram a São Pedro de Alcântara. As reuniões familiares resultaram em mais de dez livros de memória e genealogia. Para ele, a germanidade se manifesta no cotidiano. “A língua, a comida e a música sempre estiveram presentes. Todas as festas têm um pouco disso”, afirma.
Laércio também participou da criação da FenaChopp no fim dos anos 1980, evento reconhecido pela Fundação Cultural de Joinville como marco da retomada pública da cultura germânica na cidade após décadas de silêncio e estigmas.

A história de Risolete Riper está profundamente ligada às raízes de Pirabeiraba e Corupá. Muito do que ela sabe sobre a cultura alemã veio da avó, nascida em 1900. As receitas tradicionais, marreco recheado, repolho roxo, aipim e os encontros com música típica formam o ambiente em que cresceu. Para ela, manter a cultura não é imposição, mas convivência.
Já José Francisco Loureiro Gaiger carrega um capítulo frequentemente omitido da memória local. Sua família está documentada no Rio Grande do Sul desde o século 19 e enfrentou repressão durante o Estado Novo, quando o governo Vargas proibiu o uso público do alemão, fechou escolas comunitárias e perseguiu imigrantes e descendentes. Documentos do Arquivo Histórico de Santa Catarina confirmam detenções e monitoramento entre 1938 e 1945.
“Tentaram enxovalhar (manchar a imagem) do meu pai na época da guerra. Houve muita perseguição”, relata. Ao chegar a Joinville nos anos 1980, ainda encontrou resistências baseadas em estereótipos sobre quem seria “mais” ou “menos” alemão.
Apesar das diferenças, as três histórias convergem em um ponto, a cultura alemã permanece viva não apenas nas grandes festas, mas na memória afetiva, nos rituais domésticos, na língua dos mais velhos e em uma forma de viver que atravessa o tempo.
Entre Schlachtfest e FenaChopp, tradições alemãs seguem unindo gerações
As celebrações de origem alemã na região mostram como tradição e comunidade caminham juntas desde o período colonial. O Schlachtfest, amplamente documentado pela Fundação Cultural de Joinville, preserva práticas trazidas pelos primeiros imigrantes: preparo coletivo dos alimentos, mesa farta e música que acompanha a convivência. Mesmo quando realizado em versões menores, por famílias ou associações, o ritual mantém elementos que remontam ao século 19.
No ambiente urbano, a FenaChopp cumpre papel complementar. Criada no fim dos anos 1980 por Laércio Beckhauser, a festa reúne gastronomia, grupos folclóricos, cervejarias e apresentações culturais que representam a fase contemporânea da germanidade catarinense. Registros da Fundação Cultural de Joinville apontam a FenaChopp como uma das celebrações responsáveis por revitalizar publicamente a identidade alemã na cidade após décadas de estigma e silenciamento.
Juntas, essas festas revelam que a cultura alemã em Joinville não se limita ao passado, mas segue se renovando, assumindo seu lugar na identidade da cidade e mantendo sua presença vibrante nas tradições contemporâneas.
