A jornada que virou jardim
Por Bruna Borges, Guilherme Miranda e Adryan Dal Negro
Já era primavera quando decidimos ir até lá. Para chegar percorremos um longo caminho e, aos poucos, o barulho urbano de buzinas e motores de carros foram dando espaço ao canto dos pássaros, ao barulho que os pneus fazem ao passar por uma estrada de terra e ao som do vento contornando as árvores. Deveria ser umas 9 horas da manhã quando paramos em frente ao portão de madeira e, mesmo de dentro do carro, já fomos muito bem recebidos pelos canarinhos amarelos que pousaram sobre o parabrisa.
Um lugar onde predomina o verde, árvores altas, flores por todo canto e um lago gigante que embelezava ainda mais o espaço. O responsável por dar vida a esse lugar é Oraci Reinheimer, que nos recebeu vestindo seu avental verde de jardineiro e que, com muita gentileza e calma, contou como o orquidário se formou.
Joinville cresceu como polo industrial, ganhando o apelido de Manchester Catarinense. Mas a mesma cidade que ergueu fábricas também ficou conhecida como Cidade das Flores, devido à tradição de cultivo trazida por seus colonizadores europeus, especialmente alemães, suíços e noruegueses, que tinham o hábito de cultivar jardins. É nesse cenário que o Orquidário Reinheimer se apresenta como um dos refúgios onde essa tradição permanece viva.
O seu primeiro contato com a natureza começou ainda na infância. Nascido em Tuparendi, no Rio Grande do Sul, cresceu na roça, botando a mão na terra e ajudando os pais em tudo. Desde pequeno aprendeu a cuidar, plantar e colher. Quando completou sete anos, a família se mudou para a zona urbana. O pai, que nunca estudou, queria que os filhos tivessem a oportunidade que ele não teve. Quatro anos depois, outra decisão transformou o rumo da vida de Oraci, onde aos 11 anos, se mudou para o Paraná.
O incentivo deu certo. O garoto seguiu estudando, terminou o ensino médio e encontrou no seminário um caminho para continuar aprendendo. Lá, o contato com os livros se misturou a um encontro inesperado, um padre o convidou a ajudar nos cuidados de suas orquídeas e, assim, nasceu uma paixão que o acompanharia para sempre.
Formado em Letras em 1987, já professor, Oraci manteve as orquídeas como hobby. No Paraná, cultivou as primeiras coleções, montou seu orquidário e foi ampliando o espaço aos poucos, sempre com dedicação. Se casou, construiu uma família numerosa com cinco filhos e, com sua esposa, também professora, dividiu uma vida dedicada à educação.
Perto da aposentadoria, veio a decisão de recomeçar e se mudar para Joinville, a tal cidade das flores. A escolha pelo recanto na Estrada Bonita não foi acaso. Ali, em meio à mata e ao turismo rural, encontraram o lugar ideal para viver e compartilhar o que amam. “Não fazia sentido ter as plantas só para mim. Eu queria que as pessoas pudessem sentir o mesmo que eu sinto”.
Na mudança, roupas e móveis ficaram em segundo plano. O que chegou primeiro foi um caminhão carregado de plantas. O orquidário, que já existia no Paraná, renasceu em terras catarinenses. Aos poucos, foi crescendo, se abrindo ao público e se transformando na grande sala de aula de Oraci.
Hoje, o dia dele começa cedo. Às cinco horas da manhã, o chimarrão e a leitura marcam o início da rotina. Depois, vem o café e, enfim, o trabalho com as plantas. Ao lado da esposa, que cuida da horta de onde tiram boa parte dos alimentos da casa, ele passa horas preparando jardins, observando flores e recebendo visitantes. “Quando a gente está dentro do orquidário, esquece do mundo. A natureza nos reconecta com a nossa essência. Nós somos natureza.”
Para se reconectar com essa essência, fomos caminhar pelo orquidário e, logo de cara, vemos uma pequena lojinha de madeira que anuncia o espaço onde acontecem as vendas das orquídeas. Mas o pequeno espaço guarda também parte da história de Oraci, em forma de medalhas e troféus conquistados ao longo dos anos em competições de flores.

Na prateleira mais alta, o maior deles se destaca, dourado e reluzente. É o prêmio da 15ª Exposição Sul-Brasileira de Orquídeas e Plantas Ornamentais, onde Oraci conquistou o primeiro lugar em duas categorias: campeão geral do evento e campeão do grupo específico da Catleya. A vencedora foi a Cattleya Nobilior FA, lembrada por ele com carinho: “Era uma planta muito bonita, parece que ela se preparou para a festa”.

Com a experiência de quem já participou de muitas disputas, Oraci nos revela os bastidores desse universo. “A gente cuida muito da planta para se preparar antes de uma competição, mas chega no dia e ela pode não florescer. Aí a exposição passa e você não participa, às vezes você leva a flor que acha a mais linda e descobre que tem melhores… ou então acontece o contrário. É uma competição muito improvável. Mas é uma coisa muito bacana, muito legal de participar.”
E quem pensa que o julgamento é simples se engana. Segundo ele, os avaliadores olham tudo: a planta, a flor, a armação da flor, a textura, o número de flores e de hastes florais, além da qualidade do vegetal, do vaso e até do substrato. São de dez a doze critérios avaliados com rigor.
Ainda dentro da casinha de madeira, uma estante exibe outro orgulho de Oraci, o livro Vida Saudável, escrito por ele e publicado em 48 mil exemplares. De fala serena, o professor comenta com satisfação sobre a obra, que trata da qualidade de vida sob a ótica de Hipócrates, o pai da medicina: “Que teu alimento seja teu remédio e teu remédio seja teu alimento.”
Ao voltar para fora, vemos que flores de todos os lados enfeitam o espaço, formando um tipo de labirinto em uma extensa floresta, mas a sensação não é a de estar perdido, querendo encontrar a saída, e sim de se sentir calmo e querer cada vez mais descobrir o que nos espera no próximo ponto. Ali dentro, a variedade impressiona. São mais de 4.200 exemplares de orquídeas, de cores e espécies diversas que deixam seu aroma pelo ar. Entre elas, a Cattleya Walkeriana, chamada popularmente de feiticeira, dona de uma linda cor roxa, com pétalas arredondadas e sépalas bem fechadas, que formam uma “gota” distintiva no topo, com um labelo plano e, em algumas versões, um formato de “coração”. A flor ocupa um lugar especial no coração de Oraci, que fala dela com um carinho particular. Em outro canto, mini orquídeas florescem em cascas de coco, prova da criatividade aplicada ao cultivo. “Aqui nós aplicamos a teoria de Lavoisier, na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

Cada vaso parece carregar uma história, e Oraci conhece todas. A forma como descreve cada detalhe faz dele um verdadeiro dicionário vivo das plantas. “Deixe as plantas tocarem em você, para sentir a boa energia que elas passam”. A paixão é tamanha que contagia até os visitantes, que não escondem a admiração por sua dedicação.
Entre tantas curiosidades compartilhadas por Oraci durante a visita, uma em especial se destacou: o processo de cruzamento das orquídeas. A bióloga Cynthia Hering Rinnert, doutora em Biodiversidade Vegetal, explica melhor que, nas orquídeas, o pólen não aparece como um “pozinho”, mas em pequenas massas chamadas polínias. “Com um palito, removemos essas polínias de uma flor e as depositamos no estigma de outra. Depois, é esperar a formação do fruto, que pode carregar de milhares a milhões de sementes minúsculas”.
Segundo Cynthia, as características da nova planta dependem da combinação genética herdada. Genes dominantes tendem a se manifestar com mais facilidade, enquanto os recessivos podem permanecer escondidos. Por isso, alguns cruzamentos trazem resultados relativamente previsíveis, especialmente quando as plantas já vêm sendo selecionadas por várias gerações. Mas, quando se trata de espécies diferentes, a natureza costuma reservar boas surpresas.
Além de gerar plantas únicas, os híbridos ampliam a diversidade dentro do orquidário, não só em cores e formas, mas também em resistência a pragas e doenças. “Eu, pessoalmente, gosto mais das espécies puras, mas os híbridos encantam muito o público. Eles revelam possibilidades novas que surpreendem até quem já está habituado a esse universo”, completa a pesquisadora.
Encontramos, no orquidário, o resultado de um cruzamento entre a Cattleya Golden Acclaim e a Cattleya Califórnia Apricot, que nos chamou muita atenção pela sua cor, composta por tons amarelos, vermelhos e alaranjados. Para nossa surpresa, ela tem um nome que homenageia um dos maiores pilotos de Fórmula 1 da história: Cattleya Ayrton Senna. Recebeu esse nome por suas cores remeterem às mesmas presentes no capacete do piloto.

Na maioria das vezes nem imaginamos a quantidade de conhecimento que essas plantas têm a nos oferecer. Mas temos a certeza que se quisermos nos aprofundar um pouco mais nesse universo das flores, temos a oportunidade dentro do Orquidário Reinheimer. O espaço abre aos sábados e domingos para turistas e curiosos que percorrem a Estrada Bonita. Durante a semana, só com agendamento.
De professor a presidente
Se dentro do orquidário Oraci vimos a beleza das flores, fora dele existe uma missão que se amplia. Em 2016, quando chegou em Joinville, ele já trazia consigo uma rede de amigos orquidófilos espalhados por Joinville e cidades vizinhas, como Jaraguá do Sul e Pomerode. O convite para integrar a AJAO – Associação Joinvilense de Amadores de Orquídeas não demorou para chegar até sua porta. Mesmo assim, Oraci preferiu se estabilizar antes de assumir compromissos, mas em 2018 não resistiu e se tornou parte da associação. Alguns anos se passaram, e em 2024, ele foi escolhido para presidente, cargo que exerce hoje com o mesmo cuidado e carinho que dedica às suas plantas.
A Associação é quase tão antiga quanto a própria tradição orquidófila no nosso país. Fundada em 1938, soma 87 anos de história e é considerada uma das mais antigas nesse segmento. Mais do que reunir colecionadores e produtores, ela preserva uma cultura, uma forma de olhar para a natureza e de partilhar esse olhar com a comunidade. É a entidade responsável por organizar a nossa queridíssima Festa das Flores, o evento floriculturístico mais antigo do Brasil, que ano após ano transforma Joinville em um grande e lindo jardim que atrai gente de todos os cantos.
Oraci, com um sorriso no rosto conta que é um trabalho muito bonito, que vem marcando gerações. Para ele, presidir a AJAO vai além da gestão, é tentar mostrar que as flores carregam lições humanas, solidariedade, sensibilidade, delicadeza. “O orquidófilo é uma pessoa determinada, com valores muito fortes e arraigados. Administrar uma entidade assim exige jogo de cintura, porque é preciso agradar, convencer, evoluir. Confesso que é um desafio muito grande, mas nós temos uma diretoria muito forte, que se reúne mensalmente para planejar cada passo.”
Hoje, a associação se estrutura em três grandes pilares: a sede, localizada na subida do Mirante; os eventos, com destaque para a Festa das Flores; e o Palácio das Orquídeas, projeto em andamento junto à prefeitura, que busca criar um espaço permanente para celebrar a cultura e beleza das flores em Joinville.
Entre todos os eventos, a Festa das Flores é, sem dúvida, o maior desafio. O planejamento começa no início de cada ano e envolve desde o projeto paisagístico até a venda de ingressos, passando pela montagem dos estandes e pela logística que dá vida ao evento. Esse ano a festa chegou à sua 85ª edição, onde durante os seis dias, a beleza e a exuberância das quase 30 mil plantas, entre orquídeas, flores e ornamentais que fizeram parte da exposição, impactaram os cerca de 60 mil visitantes que prestigiaram o evento.
Além dos joinvilenses que aproveitaram o feriado prolongado para passear entre as flores, fazer compras e aproveitar a programação artística dos palcos, cerca de 10 mil turistas de diversas regiões do Brasil e de países vizinhos vieram conhecer porque Joinville é conhecida como a Cidade das Flores. Entre as excursões recebidas, estavam caravanas dos estados do Pará ao Rio Grande do Sul, além de grupos do Paraguai e Argentina.
“É muito prazeroso organizar, porque a gente vê a alegria, o espanto das pessoas. É uma gratificação enorme proporcionar esse momento para a vida delas, foi emocionante ver a admiração, o sorriso e a alegria de adultos e crianças que se encantaram com a beleza e as atrações da nossa festa. E já esperamos por todos, em 2026”, finaliza Oraci Reinheimer.
Com sua trajetória entrelaçada à terra, às palavras e às flores, Oraci nos lembra que nenhuma vida floresce sozinha. Seu trabalho ultrapassa os limites de um jardim, ele inspira, preserva tradições, forma novas gerações e transforma conhecimento em afeto compartilhado. Ao olhar para suas orquídeas, percebemos que cada flor carrega um pouco de sua história, e cada visitante sai levando um pouco de sua essência.
O orquidário não é apenas um destino turístico é um convite a desacelerar, a sentir e a reencontrar o que, muitas vezes, esquecemos em meio ao concreto: a beleza que nasce da paciência, a força que habita no silêncio e o florescer constante que a vida nos oferece. E, assim como as orquídeas que renascem a cada estação, a paixão de Oraci segue desabrochando, perpetuando a certeza de que enquanto houver alguém disposto a cultivar seus sonhos, a Cidade das Flores continua, ano após ano, florescendo dentro de nós.

