Como o “boom” migratório transforma Santa Catarina
Estado já recebeu mais de 700 mil novos habitantes desde 2010, aponta IBGE
Por Isabelle Buzzi
Nos últimos anos, Santa Catarina deixou de ser apenas um destino turístico para se tornar um dos principais receptores de novos moradores no Brasil. Os dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o estado recebeu mais de 700 mil habitantes desde 2010, crescendo acima da média nacional e atraindo pessoas em busca de segurança, qualidade de vida e novas oportunidades. Esse fluxo pressiona o preço dos imóveis, o trânsito, a oferta de serviços públicos e a organização urbana e reacende a pergunta: o estado está preparado?
Segundo o Censo 2022, quase 25% da população catarinense nasceu fora do estado. Na capital do estado, Florianópolis, o índice chega a 39%. Entre 2017 e 2022, foram mais de 503 mil chegadas interestaduais, resultando em um saldo migratório positivo acima de 354 mil pessoas. Florianópolis, Joinville, Palhoça, Itajaí e Blumenau lideram as entradas em SC.
Para especialistas, o estado soube construir uma narrativa poderosa que conecta o imaginário da “vida mais tranquila” ao desejo das classes médias urbanas. A arquiteta e urbanista Tayna Vicente observa, porém, que o fenômeno não é homogêneo. “O perfil de quem chega mudou. Há quem venha pela subsistência e quem venha pela ideia de qualidade de vida. Esses grupos vivem experiências muito diferentes aqui”, diz.
Segundo ela, isso também acentua reações locais.
“Há movimentos xenófobos, especialmente contra pessoas vindas do Norte e Nordeste ou que chegam em vulnerabilidade. Já quem migra com base econômica sólida encontra menos barreiras.”
Para evitar que o crescimento aprofunde desigualdades, Tayna defende políticas intersetoriais focadas nas pessoas e não apenas no mercado. “Parece utópico, mas é assim que se constrói pertencimento e se evita que o desenvolvimento expulse quem sempre esteve ali.”
Se os especialistas observam tendências, quem se mudou sente o impacto no cotidiano. A gaúcha Duani Verlindo de Lima, publicitária, vive em Joinville há nove meses. A mudança ocorreu por trabalho: sua esposa recebeu proposta no setor de construção civil, que cresce aceleradamente na região. “A gente quase não conhecia o norte do estado. As empresas contratam muita gente de fora porque falta mão de obra qualificada aqui”, conta.
A adaptação trouxe contrastes. Vinda de Porto Alegre, Duani sentiu falta de uma vida urbana mais diversa. “Porto Alegre é muito cultural. Aqui, senti pouca oferta de lazer e menor abertura das pessoas. Meu convívio é basicamente com colegas de trabalho.” A infraestrutura também a surpreendeu. “Joinville parece ter passado por um boom muito rápido. Ruas estreitas, trânsito intenso, muita gente chegando ao mesmo tempo.” Para ela, o estado tem estrutura para receber migrantes, mas cidades como Joinville ainda não se readequaram totalmente ao novo ritmo populacional.
A pressão demográfica modela o mercado imobiliário. Incorporadoras ampliam lançamentos, bairros se verticalizam e cidades disputam moradores com marketing agressivo. O corredor litorâneo entre Florianópolis e Joinville concentra quase 80% do crescimento. Itapema, uma das cidades que mais cresce proporcionalmente no Brasil, e Penha, também registram alta acima da média nacional.
O que explica?
A migração para Santa Catarina envolve fatores objetivos e subjetivos. Entre os principais motivos citados por quem chega estão:
– sensação de segurança maior que a média nacional;
– custo-benefício atrativo para quem vem de grandes capitais;
– possibilidade de trabalhar remotamente;
– contato com natureza e áreas preservadas, clima mais ameno e infraestrutura urbana considerada “organizada“.
Santa Catarina lidera saldo migratório no país
Gráfico mostra que Santa Catarina lidera disparado o saldo migratório positivo do país, enquanto estados como Rio de Janeiro, Maranhão e Distrito Federal apresentam os maiores saldos negativos.

Mercado aquece e empreendimentos transformam cidades
A chegada de novos moradores colocou o mercado imobiliário catarinense entre os mais aquecidos do país. Incorporadoras ampliam lançamentos e bairros antes residenciais passam por rápida verticalização. Em Balneário Camboriú, prédios cada vez mais altos redesenham a orla. Em Florianópolis, a demanda pressiona áreas tradicionalmente protegidas. Joinville concentra novos empreendimentos no centro, enquanto Chapecó registra expansão de condomínios horizontais ligados à classe média alta. Os preços acompanham esse movimento. O valor do metro quadrado cresce acima da renda local e imóveis antes acessíveis deixam de caber no orçamento de moradores antigos.
A faixa litorânea entre Florianópolis e Joinville concentra a maior parte do aumento populacional e se torna símbolo do novo boom imobiliário. Itapema e Penha registram crescimentos muito superiores à média nacional, impulsionados por turismo, empregos e estratégias de marketing territorial.
Segundo o Índice FipeZAP de setembro de 2025, quatro das cinco cidades com o metro quadrado mais caro do Brasil estão em Santa Catarina. Balneário Camboriú, Itapema, Itajaí e Florianópolis compõem a lista que tem apenas Vitória fora do estado. O cenário levanta alertas sobre gentrificação, quando o desenvolvimento expulsa moradores de menor renda e altera o perfil cultural de bairros inteiros. Casos como Veneza, Barcelona e Lisboa mostram como turismo e valorização imobiliária podem esvaziar centros tradicionais.
A arquiteta e urbanista Tayna Vicente explica que o primeiro sinal é o afastamento de comunidades como pescadores e caiçaras. Ela afirma que a especulação imobiliária, combinada à pressão turística, torna difícil a permanência dessas populações. Para identificar o processo, sugere questões essenciais: para quem é a requalificação, quem será beneficiado, quem poderá permanecer e se os aluguéis vão aumentar. Segundo ela, a cidade fornece suporte identitário e retirar pessoas de seus espaços vividos significa retirar parte de sua cultura.
Em Santa Catarina, os sinais ainda são iniciais, mas perceptíveis. Moradores relatam dificuldade crescente para permanecer nos mesmos bairros. Em algumas áreas, o aluguel cresce mais rápido que a renda, enquanto empreendimentos de alto padrão substituem casas antigas e comércio local. Tayna defende políticas públicas que reconectem planejamento urbano às pessoas e não apenas ao mercado. Para ela, cidades sustentáveis exigem ações integradas que preservem saberes locais e redes de convivência.
Mesmo sem o turismo massivo europeu, Santa Catarina enfrenta a força de uma narrativa de desejo que valoriza a vida à beira-mar, a estética urbana aspiracional, a natureza e a sensação de segurança. Esse imaginário tende a favorecer investidores e recém-chegados.
A FACISC aponta um déficit de mais de 190 mil moradias no estado, enquanto o Censo mostra aumento expressivo de moradores em favelas na Grande Florianópolis. O desafio não é apenas acomodar quem chega, mas evitar que o crescimento aprofunde desigualdades e transforme cidades em territórios inacessíveis para quem já vive nelas. A pergunta central é simples e decisiva: quem poderá continuar vivendo aqui quando o futuro finalmente chegar?
