Amor de mãe a serviço da patinação catarinense
Por Raquel Ramos / 2ª parte
Quem vê Fernanda Gomes Pereira Giraldi administrando seu próprio espaço exclusivo para patinação – a Equilibri – e orgulhosa das conquistas das filhas Gabriella (campeã mundial de patinação artística) e Manuella (campeã sul-americana de quarteto e grupo de show) não imagina os obstáculos que teve de enfrentar ao longo da vida para manter vivo o amor pelo esporte (acesse a primeira parte desta reportagem aqui). Encontrar locais para a prática e ensino da patinação não é tarefa fácil em um país onde a prioridade costuma ser o futebol.
Se na infância ela teve o apoio do pai, como treinadora o incentivo veio do marido André. Bailarino de jazz, André integrou o Grupo Raça, de Roseli Rodrigues, em São Paulo, mas também precisou largar essa atividade para ter um emprego convencional. Atualmente, é ele quem cuida de toda a parte administrativa e comercial da escola. O ambiente é aberto para atividades multidisciplinares esportivas e artísticas, mas o foco principal é a patinação.
Também coube a André ficar com a filha menor em casa, ainda pequenina, para que Fernanda acompanhasse Gabriella em cursos e competições que surgiam. “Às vezes passávamos até 15 dias fora e ele só dizia: ‘vai sim…vai que eu seguro a onda’”.
O crescimento de Fernanda como técnica também se deu pela necessidade de auxiliar a filha Gabriella no esporte, diante do desempenho obtido. Há uma grande diferença entre a Fernanda patinadora, a Fernanda mãe e a Fernanda técnica, embora uma tenha evoluído com a outra. “Quando eu parei de patinar, eu já dava aulas, mas as dificuldades para a prática da profissão mais uma vez interferiram no meu crescimento profissional como treinadora, por isso me dediquei ao Direito na época”, lembra. “A advocacia sim era considerada uma profissão”, desabafa.
Diferente da mãe, a campeã Gabi teve todas as oportunidades para se dedicar ao esporte, fazer cursos e participar de competições. “Na minha época não tínhamos nem federação nem reconhecimento da importância da patinação”, conta Fernanda.
A paixão pelo esporte predileto não se esvaiu com o tempo. “Quando coloco os patins e saio andando por esta sala, o mundo para. Coloco uma música e eu não quero pensar em outra coisa”, confessa. “O mesmo acontece com a Gabi”, declara.
Assim que percebeu o interesse de Gabriella pelos patins, Fernanda e o marido não pouparam esforços para incentivar a menina. “Não se trata de compensar uma frustração por eu não ter conseguido chegar onde a Gabi chegou, mas sim de proporcionar a ela oportunidades”, justifica.
Renunciar é preciso
Assim como a mãe, Gabriella nunca reclamava de treinar aos sábados. Trocava festas de aniversários por treinos e competições, incluindo a troca de presentes pelos gastos decorrentes de cursos ou equipamentos. São renúncias que ela faz desde o início da sua trajetória. Sempre abdicou de festas da família, até mesmo do aniversário do pai – que é no início de janeiro – período em que se concentra a maior quantidade de treinos. “Isso acontece desde que ela tinha mais ou menos uns 10 anos”, confirma Fernanda.
Esses sacrifícios em nome do esporte acabaram afetando toda a família. O casal que está junto há 23 anos, entre namoro e casamento, fez a primeira viagem junto, este ano, para Barcelona e, ainda assim, o motivo foi a disputa do Mundial. Definitivamente, a patinação é o fator motivacional que movimenta toda a família.
Há um ano, quando a jovem Gabriella classificou-se para o Campeonato Mundial, André colocou como um propósito ver a filha se tornar campeã. Na França, no ano passado, e em tantas outras competições sempre era a mãe quem viajava com Gabriella, até por questões de economia. No Brasil, os cursos concentram-se na cidade de Santos-SP. “É o lugar de referência da patinação no Brasil, onde está Kadu Paiva, treinador da seleção brasileira”, informa Fernanda. Kadu tornou-se amigo pessoal da família joinvilense.
Como a patinação não é um esporte olímpico, não há patrocinador. Todos os treinos de Gabi no exterior – condição indispensável para uma atleta se tornar campeã – foram custeados pela família, o que também inclui avós paternos e maternos, tios, padrinhos, amigos. Todos se juntavam e contribuíam com dinheiro, cada um dentro das suas possibilidades, para pagar as passagens, a estadia e os treinos.
Não existe na lista de prioridades da vida de Fernanda nada que ela possa lamentar não ter feito por priorizar a carreira de Gabriella. “Tudo valeu a pena, mesmo que ela não tivesse alcançado esse título”, garante.
Trajetória de sucesso
Em 2009, Gabriella já era campeã catarinense e desde 2012 integra a seleção brasileira. Mesmo sendo a primeira técnica da filha, Fernanda reconhece que outras treinadoras estão a sua frente e destaca o trabalho de Gleice Cani. “É a técnica do coração da Gabi e atualmente sua psicóloga esportiva.”
Embora amigos técnicos e patinadores sempre tivessem previsto que Gabriella seria campeã, Fernanda enxergava tal destaque como um sonho distante da realidade da família. Até mesmo às vésperas do Mundial, quando André dizia entusiasmado que ia a Barcelona ver a filha se tornar campeã, Fernanda preferia a cautela e pedia para o marido controlar a empolgação. “Na verdade, eu usava essa negativa como uma forma de me proteger e proteger minha filha do medo de uma decepção”, reconhece.
Quando Gabriella precisou passar um tempo em Portugal para se preparar para o mundial, o coração de mãe de Fernanda ficou apertado. Sabia da importância desses treinos, mas, ao mesmo tempo, temia o longo tempo de permanência da filha no exterior. “Já o André não teve a menor dúvida em dizer que nós tínhamos que permitir e que ela não podia perder essa oportunidade”, conta a mãe. Ainda assim, Fernanda chorou muito durante a ausência de Gabi.
Certamente não há a menor dúvida de que a mudança para Portugal e o trabalho feito com os treinadores Fernanda Ferreira e Hugo Chapouto foram determinantes para a conquista do título. Chapouto já tinha feito outros campeões mundiais, mas nunca uma mulher”, afirma Fernanda. Da mesma forma, foi importante a contribuição da treinadora Fernanda Ferreira, brasileira que reside em Portugal e trabalha com o técnico português há dois anos.
Itália, Portugal e Espanha têm tradição como berços de campeões de patinação. Porém, com a mudança nos critérios de avaliação do sistema “rollart”, a competição ficou mais justa e transparente. Além da parte técnica, os avaliadores levam em consideração os componentes artísticos. “O atleta é avaliado pelo que executou e não mais de forma comparativa, como no sistema anterior”, explica Fernanda.
Além de ser a primeira brasileira a ganhar o título de Campeã Mundial, Gabriella também foi a primeira a ganhar com esse novo sistema de avaliação. O Brasil já vem adotando o “rollart” há aproximadamente três anos.
Como mãe e técnica, Fernanda aponta e reconhece todas as dificuldades para uma atleta de patinação. “É um esporte de elite, os equipamentos, as rodinhas dos patins, que são trocadas a cada três meses, assim como as roupas, é tudo muito caro”. Quando os pais começam a se deparar com esses custos, além das aulas, despesas de estadia e de viagens para cursos e competições, muitos desistem.
Fernanda tem 20 atletas que já participam de competições e vê bom potencial em outras crianças. Em relação às filhas, o trabalho continua o mesmo, repleto de atenção e empenho. Sabe que o caminho de Gabriella está só começando e que Manuella deverá trilhar os passos da irmã. Hoje Fernanda se sente mais segura, tem mais conhecimento acumulado. “Nessa caminhada, tudo valeu, inclusive as experiências negativas. Com os erros eu também aprendi”, afirma.
Os projetos de futuro permanecem. Gabriella, agora com 18 anos, passou, para a categoria “sênior” na qual o nível de exigência na execução é maior, requer ainda mais perfeição. Nessa categoria, os atletas entram com 18 anos, mas não há limite para parar. “Então ela vai começar a competir com atletas experientes que já estão ali há cerca de 10 anos. Este será seu grande desafio”, prevê a mãe.
Após a conquista do Mundial, mãe e filha continuam os treinamentos juntas. Elas gravam vídeos, Fernanda aponta os problemas e a campeã absorve o que a mãe diz. Da mesma forma, os técnicos de Portugal orientam a distância, observando os vídeos. Quanto à Manuella, a intenção é dar-lhe todas as oportunidades possíveis. Reconhece que a filha menor só agora está realmente despertando para os treinos. “Mas, justamente por ter pouco tempo de treinamento e já ter se tornado campeã sul-americana, é sinal de que tem talento.”
Desde que está à frente da Federação, Fernanda promove cursos e, com isso, sente-se criando chances não só para as suas filhas, mas para todas as crianças que se interessam pelo esporte. Quando ela entrou para a Federação existiam 8 clubes filiados, hoje são 26 e há aproximadamente 60 escolas em Santa Catarina. Lá se vão 13 anos de luta pelo esporte e agora, com uma campeã mundial em casa, Fernanda se sente ainda mais motivada a tornar a patinação um sonho possível de ser realizado.
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