Longe de casa encontrei um lar – Capítulo 3
Somayhe mora no Brasil com sua família há 18 anos e busca manter viva as raízes de seu país natal
Por Raquel Ramos
Capítulo 3
A religião
Antes da pandemia a família frequentava as Mesquitas em Curitiba, já que em Joinville não há. No impedimento atual fazem as 5 orações diárias em casa. “Minha mãe e meu pai fazem todos os dias”, diz ela. A primeira oração é antes do nascer do sol, depois às 12h, uma antes do entardecer, e outra por volta das 21h.
Com a vida corrida e trabalho que tem, Somayhe fala que não tem a mesma disciplina dos pais. “Se estou com um cliente, não posso pedir para esperar com a justificativa de que vou fazer a oração e voltar depois”, explicou. Embora saiba que muitos lojistas de São Paulo e Foz do Iguaçu assim procedem: fecham a loja, rezam e depois voltam. Explica que “a nossa oração demora bastante, não é um ato rápido. Tem todo um ritual. Tem que lavar o rosto, lavar o antebraço, passar água em cima do pé e sobre a cabeça. Depois é necessário colocar um véu e um xador (lenço comprido além da altura da cintura) por cima. Só então é que realmente começam a oração”.
O Véu
Na chegada ao Brasil, relata que se sentiram muito discriminadas por usarem véu. “Quando entrávamos num supermercado os seguranças nos seguiam” e acrescenta que quando se dirigiam a elas geravam outro problema. “No nosso país, não podemos conversar com nenhum homem estranho na rua.” Essa situação é considerada uma afronta para as mulheres.
Passados alguns meses morando em Joinville, diante de tantos fatos relatados ao pai, o Senhor Said, acostumado com o mundo ocidental, permitiu que a esposa e as filhas deixassem de usar o lenço. Tal atitude, por outro lado, gerou sentimentos contraditórios entre elas. Como quem revive aquele tempo inicial, diz: “No primeiro dia que saí sem véu era como se eu estivesse sem roupa”, relata ainda com uma certa angústia na voz. “Achava que todo mundo estava me olhando. Me sentia insegura. Foi muito estranho. Às vezes eu voltava para casa chorando”, completou. E continua, “reclamava com meus pais de que as pessoas me olhavam.” Por outro lado, o pai a acalmava, “essa sensação é de vocês, não das pessoas. É justamente o contrário, quando vocês saem com véu, todos apontam, agora vocês são comuns e iguais as outras mulheres.”
Para a família que ficou no Irã, tirar o véu foi visto com certa naturalidade. O sogro foi o que menos gostou desta mudança. Eles têm hábitos mais rigorosos em relação à religião do que a família dela. “Eu tinha como aliada a minha sogra que fez ele entender que morando no Brasil, não podíamos viver como se estivéssemos no Irã”, explica. Para convencê-lo argumentava que quando Somayeh fosse para lá, usaria o véu como antes. E foi o que realmente aconteceu “lá eu me visto igual às minhas cunhadas”, assume.
Quando há a presença de outros homens, que não seja o marido, o uso do véu é obrigatório mesmo dentro de casa. E nesse caso, também têm que usar vestido comprido e manga longa, porque nenhuma parte do corpo pode ficar à mostra, como quando estão na rua. Como nesses períodos de viagem havia a presença constante dos irmãos e parentes de Hamidreza na casa da família, ela era obrigada a usar traje completo o tempo todo. Mais uma vez, a sogra intercedeu perante o sogro para que ela pudesse tirar essa vestimenta na intimidade do lar.
Na alimentação também seguem a religião muçulmana
A base da alimentação de proteína vem da carne bovina, carneiro e frango. Nunca comem carne suína por questões religiosas. O presunto, as salsichas que consomem são de frango.
“As comidas, em todos os países, são muito parecidas, o que muda é o preparo. Os temperos, ingredientes que não existem no Brasil, são trazidos do Irã”, diz Hamidreza. E Somayhe repete que se for preciso deixam as roupas lá, “mas não voltamos sem nossos chás, especiarias e os alimentos que não existem no Brasil, como por exemplo a lentilha iraniana, Senjed (a flor de lótus)”.
No dia a dia, costumam comer Geimeh – carne de panela com lentilha persa, Abgusht – uma comida simples como seria no Brasil o básico arroz com feijão, Gorme Sabzi – um ensopado de várias ervas picadas e fritas, cozidas com feijão e carne, tradicionalmente a de cordeiro, Kafta – carne moída feita churrasco servida com arroz e tomate assado.
A carne consumida pelos muçulmanos segue alguns preceitos religiosos, de acordo com a lei islâmica. A iraniana explica que o animal deve ser abatido com corte na veia jugular para que ele morra sem sofrimento. Algumas vezes o pai, Senhor Said, trouxe carneiro vivo, de Campo Alegre, para abater e limpar em casa. Ela relata: “É preciso abater o animal no sentido da casa de Deus, que é Meca.” Para isso, seu pai usa uma bússola para ver a posição correta.
Famoso mesmo na família e entre alguns clientes, presenteados por ela, é o pão persa feito pela mãe Mahi. O tradicional pão de formato redondo é achatado, como uma folha, desenrolado com um bastão de madeira, assado na chapa, é conhecido em casa como o “pão da vó”. Para comer, corta-se com a mão e pode ser servido com salgado, doces, queijo, presunto, no café da manhã ou para acompanhar as refeições.
Produzido de forma artesanal, esse é, praticamente, o único pão que a família consome. De tanto ver a vó amassando na mão e assando um a um. Somayhe conta que ao retornar de uma das viagens do Irã, o filho Amir percebeu e comentou: “vó, lá não existe mais desse teu pão, eles fazem tudo sovado na máquina”. E ele confessa que se pudesse trazer algo do Irã para cá escolheria a comida. Em especial os doces “que só tem lá”, diz o garoto.
Para os iranianos o principal valor é a família e por isso eles querem preservar seus costumes e religião. Desse mundo tão distante, e não só em quilometragem, conheci uma mulher destemida sem abandonar seus valores. Com todo o respeito e cada um desempenhando as suas funções, ela tem um papel de liderança na família e atua nas decisões com o marido.
Somayhe se destaca pela personalidade forte. Vem mostrar que as mulheres iranianas não são invisíveis. Elas existem e buscam os seus anseios sem a necessidade de romper com as tradições. O peso dessas mulheres vai além das obrigações ou do modo de se vestirem.
Sobre visitar o Irã, ela esclarece “que não há conflito armado no seu país”. O medo dos turistas é uma consequência das desavenças políticas e muitos o confundem com o vizinho Iraque ou a Arábia Saudita. Somayhe diz que em seu país “as pessoas são acolhedoras e que é seguro viajar para lá”.
Antes de viajar, ler relatos é sempre uma boa atitude. A própria Embaixada do Irã orienta os visitantes sobre como se vestir ou se portar. Ter atitudes correspondentes aos hábitos locais é importante para não incorrer em faltas deselegantes.