Das prateleiras para a telona, um breve ensaio sobre filmes inspirados por produtos
Por: Guilherme Beck Scolari
Ocasionalmente, Hollywood decide fazer filmes sobre produtos com alto apelo comercial, a exemplo de “The Lego Movie” (2014) ou até mesmo o clássico jogo TETRIS, como evidenciado pelo filme “TETRIS” (2023). Às vezes, essa ideia de transformar um produto de muito sucesso em um longa metragem funciona maravilhosamente bem, como a própria franquia Lego, ou até mesmo o recém lançado ”Blackberry” (2023), que anda acumulando diversos elogios ao redor do globo.
Essa tendência está tão grande no momento que até fizeram um filme sobre Cheetos. Sim! O salgadinho com a onça de óculos escuros tem um filme para explicar a origem do “sabor que mudou o mundo”, segundo a própria descrição do longa na internet (para os curiosos, o filme se chama “Flamin’ Hot”, e já está disponível na Disney+). Ainda falando sobre o sub-gênero, me parece errado não citar o excelente “The Founder” (2016), ou como ficou conhecido em terras Tupiniquim “Fome de Poder” (2016), que se propõe a contar a origem daquela que já foi considerada a maior distribuidora de brinquedos do mundo, a marca McDonalds. Dentre outros exemplos de ótimos filmes sobre marcas famosas estão “A Rede Social” (2010), dirigido pelo mestre David Fincher, “Jobs” (2013), com Ashton Kutcher no auge de sua carreira, e “Ford v Ferrari” (2019), que curiosamente também possuí Matt Damon em um papel de relevância.
Até agora conversamos sobre bons filmes de marcas, mas… e quando essa mistura não dá certo? Afinal de contas, estamos misturando elementos praticamente antagônicos aqui, a arte de se fazer cinema e o capitalismo em sua forma mais manipulativa: o comercial.
Bom, responder essa pergunta em toda sua completude pode ser um trabalho complexo, mas para não deixar você, meu ávido leitor, sem resposta alguma, um bom filme zela por seus personagens, sua história, visuais e música. A partir do momento em que o aspecto comercial toma conta de qualquer uma dessas coisas, o projeto já demonstra sinais de estar corrompido, o que não necessariamente indica que o filme em si é apenas um comercial alongado de certo produto.
Outro fator importante a ser mencionado é a diferença entre filmes sobre as marcas, baseados em suas histórias de fundação, de filmes baseados unicamente em marcas ou produtos. Para exemplificar um pouco meu raciocínio, vamos dar uma olhada nos seguintes projetos (todos longas ficcionais):
- “Trolls” (2016) – Um longa baseado em um brinquedo inventado nos anos 60 que já havia perdido muito de sua popularidade. No longa, a música pop licenciada serve para encantar as crianças e irritar os pais, as cores são exageradamente coloridas e saturadas, torna o filme visualmente apelativo para crianças de qualquer idade e o humor simplório de caráter físico serve para a mesma função. Ainda assim, “Trolls” não é ofensivamente ruim, mas seu desespero para fazer as crianças quererem sair da sala de cinema para ir correndo na loja de brinquedos mais próximas comprar uma boneca da Poppy é apenas nojento. Pelo menos, a música ainda tem relação com a história contada, e a qualidade da animação é muito competente (diferentemente do nosso próximo longa).
- “Playmobil: O Filme” (2019) – Que assim como o brinquedo, não passa de uma versão menos legal de Lego. O intuito aqui foi claro, “The Lego Movie” fez sucesso, então decidiram copiar na cara dura . Não existe viés criativo algum, e olha que a animação é visualmente OK, mas a direção de arte é tão fajuta que dá ao filme um aspecto de “barato”. Não há sofisticação alguma, fato que acaba dando ao longa uma atmosfera grotesca e artificial. O elenco é formado por uma gama gigante de celebridades, como Meghan Trainor, Adam Lambert, Daniel Radcliffe e Anya Taylor-Joy, e embora eu ame muito alguns desses artistas, o que foi feito aqui é simplesmente imperdoável. Neste caso, o voice-casting inteiro foi sacrificado a fim de colocar o filme em uma posição de maior apelo comercial, além de contar com um terrível uso de metalinguagem, visuais que dão dor de cabeça e possivelmente ânsia de vômito a qualquer apreciador de animação.
- “Os Estagiários” (2013) – Neste caso, nem vou me estender muito. Este filme é basicamente um anúncio pro Youtube da Google, mas invés de 5 segundos que você pode pular, é um filme protagonizado pelo cara do “Marley e Eu” com 2 horas de duração. No longa, se quer basicamente mostrar o quão maravilhoso é trabalhar na Google, num subtexto tão sútil como um elefante em uma loja de cristais. Em “Os Estagiarios”, você vai encontrar muita música pop e atores famosos, já se começa a perceber um padrão por aqui. Novamente, é um filme assistível, mas a constante narrativa de “olhe como essa marca é dahora, somos muito bons HA HA HA!” é exaustiva, e faz com que o filme perca qualquer fator de resistibilidade, ainda mais em uma comédia onde as piadas oscilam entre medianas e “saiu um arzinho do meu nariz”.
Agora que você já conhece o cenário, vamos discutir sobre “Air”, um filme baseado em fatos reais produzido pela inesperadamente ótima dupla “Ben Affleck e Matt Damon”. Esses dois caras são amigos de longa data, fazendo filmes e abusando de álcool tão consistentemente quanto às expressões entediadas de Ben Affleck em seus filmes da DC. Acredito que a dupla já tenha entregue muitos filmes excepcionais, como “Gênio Indomável” (1997), “Dogma” (1999) e o recente “The Last Duel” (2021), que são filmes que eu nunca vi, mas como as pessoas da internet e as pessoas do mundo real dizem que são muito bons, para fins de validação do meu argumento, vou acreditar nelas.
“Air” começa com uma montagem nostálgica para os jovens dos anos 80, tocando Dire Straits de fundo e colocando a atmosfera lá em cima. No filme, iremos acompanhar a jornada de Sonny, interpretado por Matt Damon, para convencer seus superiores na Nike, para investir todo o seu orçamento anual de basquete em um único par de tênis para um atleta específico: Michael (A Lenda) Jordan.
Esse filme poderia facilmente não ter funcionado. Muitas grandes marcas estão envolvidas aqui, estamos falando de Converse, Adidas, Puma, NBA (…). Naturalmente, problemas contratuais podem ter surgido, além de que, estamos falando sobre um filme de 1 hora e 52 minutos sobre Matt Damon apostando seu trabalho por um par de tênis, uma proposta divertida, mas que caso não fosse conduzida com maestria, facilmente cairia no território de supérflua, irrelevante e chata. Surpreendentemente, “Air” não apenas funciona, mas é um filme com paixão, um ótimo roteiro e atuações fenomenais.
Vamos começar falando sobre as performances. Matt Damon e Ben Affleck estão com aparências péssimas, assim como a posição da Nike no mercado de basquete em 1985. Notoriamente, o incrível design de figurino (acompanhado dos cenários, também muito competentes) elevam as boas performances de ambos os atores, que embora sejam sim muito sólidos, passam longe de ser o maior destaque do filme. Sem dúvida, a maior surpresa aqui é Viola Davis, interpretando a mãe de Michael Jordan, que é simplesmente uma força da natureza. Cada segundo em que ela está na tela, todo o resto é engolido por uma performance digna de Oscar. Viola poderia facilmente cair no território estereotipado de “uma mulher badass e mal encarada”, mas a atriz emprega uma doçura, entrelaçada com um grau de estrategismo tão cheio de nuances que te prende na tela de uma forma indescritível. Que performance! Não é atoa que a escalação da atriz foi uma exigência do próprio Michael Jordan para a realização do longa.
Além das atuações, outros dois aspectos notáveis do filme são a trilha sonora e a direção. A trilha é composta por clássicos dos anos 80, o que, é claro, dá ao filme um estilo muito elegante e ajuda muito no ritmo, embora o excesso de músicas licenciadas dê a impressão de que você está pulando de uma estação de rádio para outra durante todo o filme. A falta de uma trilha instrumental é principalmente sentida em cenas mais sérias. Em um momento específico, quando Sonny (protagonista interpretado por Matt Damon) está esperando o tempo passar, a música “Time After Time” de Cyndi Lauper começa a tocar, eu não consegui evitar de explodir em risos. A obviedade da sinestesia proposta foi demasiada pobre, fazendo você sentir como se estivesse olhando para um meme e não um longa-metragem.
O trabalho de Ben Affleck como diretor é muito impressionante, o filme é rápido e extremamente divertido, com diálogos bastante envolventes e bem escritos. Outro grande aspecto de seu trabalho como diretor e ator em um mesmo filme é a liberdade que cede a Matt Damon, permitindo que a história se desenvolva naturalmente ao redor de Sonny, sem dar destaque a seu próprio personagem quando não é necessário. A relação de causa e consequência é muito bem desenvolvida, com um uso de lettering que foi de meu agrado, embora às vezes parecesse meio deslocado.
Meu único problema com o filme é a edição. Algumas cenas podem ser um tanto mal cortadas, com tomadas que parecem muito fora de lugar. À primeira vista, isso parecia ser uma decisão criativa para dar ao filme um aspecto mais realista, mas isso acaba contratando com alguns elementos mais fictícios da cinematografia e as perspectivas muitas vezes cômicas adotadas pelo roteiro.
Apesar de algumas pequenas reclamações, “Air” ainda é um filme muito gostoso de se assistir. Fazendo parte daquela lista de “Ah, eles realmente fizeram um filme sobre isso? Não pode ser bom… (Cerca de 2 horas depois) Bem, isso foi realmente bem divertido! Agora, vamos comprar alguns (insira aqui o produto anunciado).”
CARAMBA! Eu esqueci completamente de mencionar, mas Jason Bateman está nesse filme… Ele faz um ótimo trabalho, e como eu gosto do Jason Bateman, isso me deixou muito feliz. Eu não consegui reconhecê-lo durante a maior parte do filme, então eu ficava pensando “Será que esse é realmente o Jason Bateman?” toda vez que ele aparecia. Para minha alegria, aquele era realmente o Jason Bateman. Foi assim, um final feliz.
AVALIAÇÃO FINAL: 4/5