Sanidade
Por: Leonardo Budal
Qual é a coisa mais preciosa para uma pessoa? Bem, pode ser muitas coisas, como família, amigos, saúde, dinheiro ou status. Sim, tudo isso pode ser precioso, porém, nada disso importa sem uma coisa única e que pertence apenas a nós humanos. Nossa consciência. Sem ela nada do que foi listado importa. Se não temos sanidade, nada importa, nem a família, dinheiro e muito menos status. Por isso, ver aquele homem deitado gritando por ajuda completamente insano, fará parte dos meus piores pesadelos.
Eram quase 21h, estava em casa somente eu e minha vó. Ela já se arrumava para dormir e eu estava prestes a assistir um filme com uma garrafa de cerveja na mão. Mal encostei no controle remoto quando comecei a escutar gritos do lado de fora da minha casa. Olhando rapidamente vi que um vizinho chamava pelo outro no portão da casa ao lado da minha. Com curiosidade, deixei a long neck em cima do balcão da cozinha e fui perguntar o motivo da algazarra:
— É o João (nome fictício)! Ele está gritando por ajuda a quase uma hora. Diz que tem homem armado dentro. Chama a polícia vizinho! Para eles virem mais rápido!
Com agilidade digitei o número de emergência em meu celular. O atendente diz que a polícia já estava ciente do ocorrido, mas ele não soube me informar se alguma viatura estava a caminho. Enquanto isso, João gritava com todas as forças por piedade. Dizia que não queria morrer e batia com força na janela. Depois de um tempo, começamos a duvidar sobre a veracidade das palavras de João. Quase 20 minutos tinham se passado, e não tínhamos uma palavra ou grito sequer do criminoso. As janelas estavam fechadas com cortinas grossas tampando nossa visibilidade e todas as luzes estavam apagadas. Tamanha foi nossa dúvida que um dos vizinhos tomou coragem e foi dar uma espiada. De fininho ele quebrou um dos vidros da pequena janela e confirmou que não havia criminoso, somente uma crise alucinógena do pobre rapaz.
A espera era angustiante. Uma hora se passou e ainda sem sinal da força policial. Neste momento já tínhamos chamado outras entidades de emergência, entretanto, nenhuma parecia ligar para a nossa situação. Tudo que podíamos fazer pelo pobre rapaz era esperar por ajuda, pois todas as nossas tentativas de conversa não pareciam ser suficientes. Nosso maior temor era que João acabasse se machucando, já que ele continuava a bater com força o corpo na janela.
Já eram quase 23h quando a viatura policial subiu o morro em que moro. Os dois oficiais, ambos desanimados e levemente irritados desceram do carro e logo foram ver a situação de João. Meus amigos, sinto dizer mais nunca vi em toda minha vida uma cena tão atroz quanto aquela. Ao ver as luzes da sirene, João abre com todas as forças as janelas da frente e começa a gritar por misericórdia, pois segundo o mesmo “Ele vai me matar!”. Com um impulso, o rapaz se pendurou na janela com sua cintura, fazendo com que sua cabeça fosse em direção ao chão e suas pernas subissem em um movimento de gangorra. Rapidamente um dos policiais o segura impedindo que batesse com a cabeça.
Ele se debatia e gritava com toda a garganta para acreditarmos nele. Estava estampado em seus olhos o pavor genuíno de um homem a beira da morte, ele tinha a respiração ofegante e quase pude ver lágrimas surgindo. Os oficiais o algemaram e em forma degradante, o amarraram com a própria cortina. Depois da contenção um dos homens fez uma breve varredura na casa do rapaz e logo encontrou o motivo de toda a confusão. Embaladas em plástico filme estavam duas pedras de crack.
Quanta pena senti do rapaz. Segundo um dos vizinhos que o conhecia, ele estava longe das drogas há cerca de 19 anos. Porém, com a perda de sua amada mãe e recém desempregado, João achou conforto em seu antigo vício. Um dos policiais comentava que agora que “entrou no crack”, sua recuperação ficaria ainda mais difícil. E questionado por mim sobre o que aconteceria com João, ele disse.
— Com esse aí? Bem, vão dar um soro e liberar.
Depois de toda essa adrenalina e com João dentro da ambulância, decidi por fim, voltar para dentro de casa. Estava completamente arrasado e inconsolável. Sentia uma mistura de pena e medo. Duas horas passaram desde que eu fui ver o que se passava na minha rua, comecei a refletir sobre todo o sofrimento que João terá que enfrentar pelo resto de sua vida. E voltando a cozinha, ainda estava lá, minha garrafa de cerveja, repousada sobre o balcão. Sem piedade, joguei tudo ralo abaixo.