O impacto da violência política de gênero na trajetória de uma vereadora catarinense
Conheça Maria Tereza Capra, a primeira personagem da série “Por Todas Nós”
Por Maria Luiza Venturelli*
O apelo à diversidade e a ampliação das vozes nos espaços de poder tem tensionado a política partidária e escancarado inúmeras formas de violência de gênero no Brasil, especialmente contra mulheres que carregam no corpo e na fala essa pauta. Em Santa Catarina, casos de violência contra mulheres em cargos públicos se tornam cada vez mais recorrentes ano após ano.
A violência política de gênero é o tema desta reportagem. Em quatro capítulos, o público vai conhecer a luta de mulheres que foram violentadas de alguma forma por estarem em espaços de poder. Além disso, também serão apresentados dados e opiniões de especialistas a respeito do tema.
Aos 53 anos, a ex-vereadora Maria Tereza Capra, do Partido dos Trabalhadores (PT), enfrentou uma das situações mais injustas de sua vida política. A Câmara Municipal de São Miguel do Oeste, cidade do Oeste catarinense, cassou o seu mandato no dia 4 de fevereiro de 2023. A justificativa foi a quebra de decoro parlamentar, após a mulher repudiar um gesto feito por bolsonaristas da cidade durante um ato que aconteceu em 2 de novembro de 2022.
Na ocasião, manifestantes se reuniram em frente ao 14º Regimento de Cavalaria Mecanizado, base do Exército local, com o objetivo de protestar contra o resultado do segundo turno das eleições. Assim como em diversas outras cidades brasileiras, apoiadores do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, do Partido Liberal (PL), pediram uma intervenção contra a vitória do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 30 de outubro.
Durante o encontro, os bolsonaristas questionaram o resultado do segundo turno das eleições, bloquearam uma rodovia e fizeram um gesto suspeito de ser uma saudação nazista. Os presentes repetiram um gesto semelhante a saudação nazista “Sieg Heil”, uma expressão alemã que significa “salve a vitória” ou “viva a vitória”. A saudação foi muito utilizada durante o período nazista, sobretudo a partir da década de 1930, relacionada frequentemente com a saudação de Hitler, ou seja, Heil Hitler, que significa “Salve Hitler”.
A apologia do nazismo se enquadra na lei 7.716/1989, que determina que é considerado crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” A pena é de reclusão de um a três anos e multa, ou reclusão de dois a cinco anos e multa se o crime foi cometido em publicações ou meios de comunicação social. Também é crime “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.” Neste caso, a pena é de reclusão de dois a cinco anos e multa.
No ato de São Miguel do Oeste, pessoas estavam vestidas de verde e amarelo, e também carregavam a bandeira do Brasil. Vídeos repercutiram nas redes sociais, inclusive em um post no perfil do Instagram de Maria Tereza, que disse que os manifestantes bolsonaristas repetiram o pior drama que a população mundial viveu, o nazismo. A publicação aconteceu no dia 2 de novembro, e segundo ela, foi deletada depois de duas horas.
De acordo com ela, no texto da publicação, “São Miguel do Oeste acabou de ser identificada uma célula neonazista. E aquelas pessoas, vestindo as cores da nossa bandeira verde e amarelo, manifestando em frente ao quartel do Exército nas barbas das autoridades. E ainda fazem trancando uma rodovia federal. Ainda fazem uma saudação nazista”. A vereadora também pediu para que o Ministério Público investigasse o caso.
Após a publicação, Maria Tereza passou a ser alvo de ameaças de cassação e de morte e precisou ser incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), por determinação do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, chefiado pelo advogado, filósofo e professor universitário Silvio Almeida.
Maria Tereza conta que antes mesmo de criticar a suposta saudação nazista, ela já havia se posicionado contra os atos antidemocráticos em que pessoas de todo o Brasil foram às ruas pedir intervenção militar e atuação das Forças Armadas contra o resultado da eleição. Em São Miguel do Oeste, eventos deste tipo contaram inclusive com a presença de vereadores.
A advogada foi perseguida e perante a cidade recebeu a culpa por algo que não fez. “Foi atribuída a mim uma culpa de ter sujado o nome do município, chamado os moradores de São Miguel de nazistas, coisa que não fiz. O que eu disse foi que os manifestantes fizeram um gesto que sim, foi nazista”, explica.
A professora foi alvo de ameaças, ofensas e calúnias. Também sofreu tentativas de agressão e xingamentos em redes sociais, além de ter o carro riscado por um objeto pontiagudo, com um desenho que simulava um alvo a ser eliminado, uma referência a aniquilação. Os acontecimentos levaram a parlamentar a se auto exilar por 40 dias.
Para Maria, todo esse linchamento foi orquestrado pelo grupo de pessoas bolsonaristas da cidade, que estava incontrolável e indignado com o resultado das eleições. Segundo ela, como maioria da elite de São Miguel, essas pessoas acreditavam que poderiam fazer o que quisessem, e assim conseguiram apoio dos vereadores, que já enxergavam Maria Tereza como um incômodo. Sendo assim, um possível afastamento da vereadora seria favorável para todos.
Capra se define como o ápice da insurgência em todas as sessões da Câmara Municipal de São Miguel do Oeste. Ela explica que entre todos os vereadores presentes, nunca teve medo de se posicionar e jamais optou por ficar quieta diante daquilo que julgava errado. Antes mesmo de todo o caso que aconteceu em 2 de novembro, a ex-vereadora já se declarava veemente contra situações de injustiça.
Uma das situações foi no período das eleições de 2022, com a divulgação de listas de boicote a empresários e profissionais identificados como petistas que se espalharam por diversas regiões do Brasil, principalmente em Santa Catarina. As listas circulavam em grupos no WhatsApp, Telegram e em perfis no Twitter, situação que fez Maria Tereza identificar o caso como assédio eleitoral e procurar auxílio no Ministério Público Eleitoral, que não tomou uma posição e nada foi feito.
Maria acredita que a vontade de todos era que ela se retratasse diante das declarações feitas em seu Instagram ou até mesmo renunciasse ao mandato para não passar pelo processo de cassação. Porém, segundo ela, uma retratação só poderia acontecer em caso de erro e falas equivocadas, situação que para ela não aconteceu. “Eu não tenho medo e não faria o que eles queriam. Neste caso, a minha retratação seria a minha ruína”, reflete.
Retrato de injustiça e violência
No dicionário, cassar é definido como “revogar, anular ou invalidar”. No contexto da cassação de mandato parlamentar, a expressão significa duas coisas: a perda do mandato para o qual foi eleito o parlamentar ou a suspensão dos direitos políticos, sendo assim, a capacidade de votar e ser votado, por oito anos.
Algumas horas antes da votação na Câmara para cassação do mandato, mais uma ameaça a integridade da até então vereadora. Capra recebeu por e-mail uma explícita ameaça de morte.”Cassar seu mandato é só o primeiro passo. Vou cassar sua vida depois”, dizia a mensagem. No texto há ainda a afirmação de que o gesto em frente ao quartel não era nazista, mas uma “saudação romana”.
Embora a ameaça tenha sido contra Maria Tereza, o e-mail foi recebido pela vereadora de Joinville Ana Lúcia Martins (PT), que havia manifestado apoio à colega de partido. A joinvilense registrou um boletim de ocorrência e informou que os ataques partiam de um endereço eletrônico da Presidência da Câmara de Vereadores de São Miguel do Oeste. O presidente da Câmara, Vagner Passos (União), declarou que a informação não procede.
Por se solidarizar com Maria Tereza, além de Ana Lúcia, de Joinville, Carla Ayres, de Florianópolis, também recebeu e-mails com graves ofensas e ameaças. Vítima das mesmas ameaças, Giovana Mondardo (PCdoB), de Criciúma, também enfrentou processo de cassação pelo mesmo motivo de Maria Tereza, mas o seu foi arquivado. Marlina Oliveira, de Brusque, que já havia tido o mandato ameaçado por fazer oposição ao governo local, também foi atacada. Já em Concórdia e Maravilha, as vereadoras Ingrid Fiorentin e Eliana Simionato foram perseguidas pela extrema-direita, no mesmo período.
Foram duas denúncias contra a ex-parlamentar para tornar possível a cassação: nº 2929 e nº 2957. Elas acusam a vereadora Maria Tereza Capra de ter praticado “infração político-administrativa grave, sujeita à apuração e sanção pela Câmara Municipal de Vereadores.” De acordo com a denúncia, ela utilizou o Instagram para “propagar notícias falsas e atribuir aos cidadãos de Santa Catarina e ao Município de São Miguel do Oeste o crime de fazer saudação nazista e ser berço de célula neonazista”.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), formada por três vereadores, emitiu o parecer pela cassação de Maria Tereza. Era necessária a maioria absoluta para que o mandato da vereadora fosse cassada, ou seja, pelo menos nove votos.
De acordo com a fala do presidente da CPI, na sessão da câmara que resultou na cassação do mandato de Capra, os cidadãos de São Miguel do Oeste se sentiram traídos pela vereadora. “Nós somos um município formado por diversas etnias, por isso não concordamos com o posicionamento dela, que em nenhum momento voltou atrás ou se arrependeu de ter acusado os cidadãos de São Miguel do Oeste de nazistas”, declarou Carlos Roberto Agostini, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
Dia da cassação
A votação pela cassação do mandato começou às 18h de uma sexta-feira, dia 3 de fevereiro de 2023, e levou cerca de nove horas, se estendendo ao longo da madrugada do dia 4. Durante a sessão extraordinária, a vereadora foi escoltada pela Polícia Federal. A ocasião contou com grande presença de público, inclusive do deputado federal Pedro Uczai (PT-SC) e da deputada estadual Luciane Carminatti (PT).
Dos treze vereadores, 10 votaram pela cassação do mandato da parlamentar. A outra mulher do legislativo do município, Cristiane Zanatta, do Partido Social da Democracia Brasileira (PSDB), se ausentou da sessão.
Durante a fala da defesa, que ocorreu após as 23h do dia 3, Maria Tereza falou sobre as ameaças recebidas desde novembro, com destaque para suas redes sociais, e criticou a moção de repúdio feita pelos vereadores no dia seguinte às supostas manifestações nazistas. “É no parlamento onde é possível equilibrar as forças de representatividade da mulher, aqui estão 11 homens, uma mulher ausente e uma vereadora que vai ser cassada”, disse durante o seu momento de fala.
Mesmo após a cassação, as violências não pararam: no dia 1º de março deste ano, ela recebeu mais ameaças. uma mensagem que dizia que seu fim deveria ser como o da vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018, no Rio de Janeiro. “Seu fim tem que ser igual uma cadela que se chamava Marielle, que as cadelas me desculpem por ofendê-las”, dizia a mensagem, recebida pelo Instagram. Maria Tereza relatou a ameaça à Polícia Federal e ao Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos.
Uma trajetória de dedicação e entrega
A advogada e professora Maria Tereza Zanella Capra esteve envolvida com a política desde criança, por conta da convivência com o pai Jaime Capra, que sempre esteve no meio. Ela iniciou a vida profissional no magistério em 1987 e foi policial civil entre 1989 e 1996, quando atendia às mulheres vítimas de violência dentro da delegacia.
Aos 26 anos, iniciou a carreira de advogada na área trabalhista e atendia principalmente sindicatos de trabalhadores e mulheres, que já conheciam o trabalho anterior da advogada na polícia civil. Foi então que começou aos poucos a militar pelos direitos destas pessoas e se envolver muito nestas duas lutas.
“Com o passar do tempo, fui percebendo que haviam muitas coisas que eu gostaria de fazer, mas como advogada não conseguiria. Para mim, o caminho mesmo era a política, assim eu conseguiria levar para o espaço institucional as pautas que eu defendia na minha militância social e como advogada”, relembra.
Em 2006, a advogada foi convidada a fazer parte de um partido, o Partido Democrático Trabalhista (PDT), juntamente com o pai. A dupla acabou saindo do partido depois de um tempo e o PT convidou Maria Tereza a se filiar para ser candidata a vereadora, convite que aconteceu em 2006.
Em 2008, ela foi candidata pela primeira vez a vereança e ficou na primeira suplência, o que foi considerado na época um feito muito grande, já que Capra nunca havia sido candidata e era nova dentro do partido também. Com 409 votos, faltaram apenas 75 para se eleger, então ela assumiu como suplente.
“Algo que eu sempre disse quando entrei na política é que não adiantaria apenas dar ideias, sugestões e críticas para os políticos, era a hora de eu mesma fazer, colocar a mão na massa”, explica.
Em 2010, Maria Tereza assumiu a Secretaria Municipal de Cultura, Lazer e Turismo de São Miguel do Oeste, onde atuou por pouco mais de dois anos. Foi candidata novamente em 2012 a vereança, quando foi eleita. Já em 2014 ela se candidatou a deputada federal. Em 2016 foi reeleita vereadora, com 856 votos, sendo a segunda mais votada no município.
Em 2018, ela foi pré-candidata a vice-governadora. Em 2020 foi reeleita pela segunda vez como vereadora e em 2022 foi candidata novamente a deputada federal, mas teve a candidatura indeferida. O motivo alegado foi uma condenação judicial em segundo grau. Ela chegou a recorrer e levou o caso para o TRE, mas o Tribunal manteve o indeferimento da candidatura determinado pelo juiz local.
Maria Tereza também é pós-graduada em Ciência Jurídica, Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, além de possuir outros cursos na área, além de inúmeras vezes ter palestrado a respeito de temas como direitos da mulher, combate à violência contra a mulher e igualdade de gênero.
Muito além de apenas um caso
O cenário político dominado por homens, especialmente brancos e cisgêneros, tornam comuns as violências sutis contra mulheres dentro dos partidos, das casas legislativas e dos gabinetes do Poder Executivo. A roupa, o comportamento social, a cor da pele, o peso e o estado civil de uma mulher são alguns dos motivos utilizados para atacá-la, como aconteceu inúmeras vezes com Maria Tereza Capra, mesmo antes do caso que levou a sua cassação.
Maria Tereza volta no tempo para relembrar a época em que iniciou a sua trajetória no PT. Ela era advogada, o que causou uma certa estranheza nas pessoas do partido, que naquela época tinha uma outra composição. Ela entrou e logo foi candidata, o que causou um desconforto.
Em 2006, mãe solo de uma menina de um ano e um menino de três, sem marido e com espírito livre, ela chegou naquele reduto com vontade de fazer acontecer e sem nem ao menos imaginar que precisaria enfrentar certos problemas. A primeira indagação feita para Capra, por duas esposas de candidatos, foi se ela não tinha marido. Ela logo rebateu perguntando se precisava ter marido para ser candidata.
Capra conta que em 2008, quando saíram os resultados das eleições e ela ficou como suplente, a primeira pergunta que o prefeito eleito fez, espantado, foi de onde ela havia tirado tantos votos. “Falou que eu tinha roubado os votos porque não era possível que eu tivesse feito 400 votos, pois eu era candidata para 200 votos. Esse assombro com o resultado já foi uma forma de discriminar, de desmotivar, de dizer que a preferência sempre foram os homens”, relembra.
Como secretária municipal, em determinados espaços, sobretudo pelos homens, Maria foi muito atacada, a ponto de um dia dizerem que ela precisava de uma focinheira, porque não ficava quieta e sempre marcava posição nas situações em que julgava necessário se posicionar.
“Quando eu fui eleita, na câmara de vereadores, nós éramos oposição, e eu me destaquei desta forma. De todos os vereadores eu era a única advogada e tenho uma grande facilidade com a oratória. Então quando eu pegava o microfone para falar, eles já ficavam olhando o relógio”, conta Maria.
Capra é conhecida por ter certa “casca grossa” diante das mais diferentes situações. Com anos de trabalho na polícia e advocacia, ela não demonstrava se abalar com as “gracinhas” feitas por colegas de profissão, mas admite que se chocou diversas vezes com alguns comentários que escutou durante tantos anos de política.
A todo momento Maria e diversas outras mulheres em cargos de poder são impedidas de fazer as coisas, seja de um jeito velado, de uma forma burocratizada, ou com ofensas claras. A advogada diz que por estar há muitos anos na política, acabou enxergando casos de violência política que aconteceram com ela como algo comum da rotina, sem conseguir identificar a real gravidade de determinadas ações. Para ela, quando algo vira costume, a tendência é achar que a gravidade não é tão grande.
Segundo o Relatório 2020–2021 do Observatório de Violência Política Contra a Mulher, as formas não-físicas de violência política, principalmente a simbólica e a psicológica, passam por uma espécie de naturalização social ou tolerância devido à cultura patriarcal, o que torna difícil o seu reconhecimento.
Além disso, são experimentadas de maneiras distintas por cada vítima, influenciadas pelos contextos culturais e sociais nos quais elas estão inseridas. Maria Tereza é um exemplo de uma violência que bate à porta de inúmeras mulheres, especialmente das que ocupam espaços de poder.
*Acadêmica da 8ª fase do curso de Jornalismo.
Primeira reportagem da série Por Todas Nós (Projeto Experimental).