Ameaças de morte e ofensas marcam a vida de mulheres que se posicionam politicamente em Joinville
Maria Elisa Máximo e Ana Lúcia Martins são exemplos de como a violência faz parte da rotina de mulheres em espaços de poder
Por: Maria Luíza Venturelli
“Para a mulher negra, o lugar que lhe é reservado é o menor. O lugar da marginalização, do menor salário. O lugar do desrespeito em relação a sua capacidade profissional”
Essa conclusão é da intelectual Lélia Gonzalez, em uma entrevista concedida para o documentário “As Divas Negras do Cinema Brasileiro”, de 1989. Na política, a situação não é diferente.
Uma pesquisa realizada pelo Instituto Marielle Franco, divulgada em dezembro de 2020, entrevistou 142 mulheres negras de 21 estados em todas as regiões do Brasil e de 16 partidos. Entre as entrevistadas, 80% das candidatas negras sofreram violência virtual, 60% sofreram violência moral ou psicológica e 50% sofreram violência institucional. Além disso, 18% receberam comentários e mensagens racistas ou sexistas em redes sociais, por e-mail ou aplicativos de mensagens.
Além disso, 60% das mulheres negras entrevistadas foram insultadas, ofendidas ou humilhadas durante o período eleitoral de 2020. Em 45% dos casos de violência virtual e moral, a agressão foi feita por pessoas não identificadas, o que dificulta denúncias e aumenta a impunidade nos casos desse tipo de agressão.
Em Joinville, a vereadora Ana Lúcia Martins, do Partido dos Trabalhadores (PT), primeira parlamentar negra eleita na cidade, sofreu inúmeras ameaças e ataques racistas e machistas desde os primeiros momentos de sua trajetória política. Ligada ao PT desde a década de 1980, após uma trajetória de 36 anos dedicados às salas de aula, nas eleições municipais de 2020, Ana Lúcia foi a sétima vereadora mais votada de Joinville, com 3.126 votos.
Para Ana, a conquista de ocupar uma cadeira em um lugar de decisão veio junto com a dor da violência política de gênero e do racismo. Antes mesmo de tomar posse como vereadora, ela foi manchete nacional pelas ameaças e ofensas racistas que recebeu após sua vitória.
Depois de sofrer inúmeros ataques durante toda a campanha política, a vereadora recebeu ameaças de perfis fakes logo após a apuração dos votos e divulgação dos resultados nas urnas na cidade, no dia 15 de novembro de 2020. Nos comentários, o perfil sem identificação escreveu frases como “agora só falta a gente matar ela e entrar o suplente que é branco” e “os fascistas mandaram avisar que ela que se cuide”.
Nas redes sociais, no dia 18 de novembro, Ana publicou uma denúncia de ameaça de morte, onde disse que temia por sua integridade física e que os ataques já estavam acontecendo durante todo o período eleitoral, mas ficaram mais explícitos após o resultado. Além das ameaças explícitas de morte, no texto, ela também diz que teve suas redes sociais invadidas na noite de divulgação do resultado da eleição.
O responsável pela invasão usou um aparelho identificado como sendo de Timbó (SC) e invadiu o perfil do Instagram, retirou a foto do perfil e apagou a bio. A situação, no entanto, foi rapidamente resolvida pela equipe da campanha de Ana Lúcia.
Em todo o texto, ela deixa claro o medo que toda a situação trouxe à tona. “Não é uma simples opinião quando encoraja racismo e ameaça. […] Sabia que não seria fácil. Estava ciente que enfrentaria uma certa resistência em uma cidade que elegeu apenas na segunda década do século 21 a primeira mulher negra. Só não esperava ataques tão violentos”, escreveu.
Ainda na publicação, Ana relatou ter recebido duas ameaças de morte, evidenciando que o problema central era ela ser a primeira mulher negra eleita da cidade. O fato de ser petista também incomodou. No dia seguinte ao resultado das eleições, um radialista da cidade desferiu ataques a ela e ao partido, afirmando que não poderia “comemorar uma petista no poder novamente” e que o seu partido “não deveria existir mais”.
Em nota, o Partido dos Trabalhadores repudiou as ameaças sofridas pela vereadora eleita. “Diante desse gravíssimo fato, manifestamos nossa solidariedade e apoio à companheira Ana Lúcia Martins e esperamos que as autoridades atuem de maneira rápida no intuito de descobrir e responsabilizar os autores, para que sejam levados à justiça”, disse a nota.
O caso chegou à polícia de Joinville, por meio de um boletim de ocorrência registrado por Ana, e ganhou repercussão nacional. No dia 20 de novembro, mais de 300 pessoas participaram de um ato no centro de Joinville contra o racismo, em defesa de sua integridade física e pela punição dos criminosos.
Com faixas, cartazes e cantos contra o racismo, o machismo e a violência, a manifestação contou com a participação de partidos políticos, movimentos sociais, organizações políticas e diversas outras entidades e pessoas. As principais falas e ações foram realizadas pelos movimentos negros e feministas do município. O ato também contou com falas, cantos e declamações de poesias.
Apesar do apoio, os ataques não pararam por aí. Em 22 de novembro, novas ameaças de morte foram destinadas a Ana Lúcia. Desta vez, as ofensas chegaram por e-mail, com cópia para jornalistas, para a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Tribunal de Justiça. O caso aconteceu após o mandado de busca e apreensão feito pela Polícia Civil na casa de um suspeito pelos primeiros ataques realizados no dia 15 de novembro. O mandado foi cumprido na cidade por policiais civis da DPCAMI (Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso) com a participação do IGP (Instituto Geral de Perícias).
O conteúdo das novas mensagens era ainda mais chocante. “Sua aberração. Macaca fedorenta, cabelo ninho de mafagafos. Enquanto você ganha um salário de vereadora apenas por ser uma macaca, eu estou desempregado e vivendo do auxílio emergencial”, escreveu o criminoso.
Além do crime de injúria racial, ele alegou ter o endereço da vereadora e no conteúdo do e-mail disse que nada iria impedi-lo de matá-la. “Eu juro que vou comprar uma 9 mm no Morro do Engenho aqui no Rio de Janeiro e uma passagem só de ida pra Joinville e vou te matar. Eu já tenho todos os seus dados e vou aparecer na sua casa”, disse.
Trajetória política intensa
Ana Lúcia Martins Rosskamp é nascida e criada no bairro Floresta, zona Sul de Joinville, e filha mais nova dos cinco filhos de uma trabalhadora doméstica, dona Amélia, e de um motorista, seu Acácio. Na Câmara, tem como principais bandeiras políticas o combate ao racismo e a garantia dos direitos das mulheres, causas pelas quais ela luta diariamente desde o início do seu mandato.
Mas a história de superação começou muito antes, ainda na juventude da vereadora. Antes mesmo de atuar na educação, passou por diversas outras ocupações, como empregada doméstica e babá. Já no fim da década de 1980, ela entrou para o movimento negro, quando começou a perceber ainda mais a necessidade da luta contra o racismo enquanto uma ação política.
Depois, Ana passou a fazer parte ativamente do PT, lançando a candidatura em 2020. Após conquistar uma cadeira na câmara, se dedicou a fazer um mandato em defesa das mulheres, em busca de uma cidade antirracista, mais igualitária e plural.
Dos 19 integrantes da Câmara de Joinville, 17 são homens e Ana Lúcia é a única pessoa negra. A violência que sofre por meio das tentativas cotidianas de silenciamento e de invisibilização de sua existência e pautas no parlamento também a machucam todos os dias.
Em fevereiro de 2023, Ana voltou a sofrer graves ameaças de morte e ataques racistas após sair em defesa da ex-vereadora de São Miguel do Oeste (SC) Maria Tereza Capra (PT), cujo mandato foi cassado m após ela denunciar uma suposta saudação nazista de bolsonaristas. A vereadora relatou todo o caso em suas redes sociais.
De acordo com a parlamentar, as ameaças foram enviadas por e-mail depois de sua manifestação contra a cassação de Capra. Ela relatou o episódio ao Ministério Público e registrou um boletim de ocorrência na Polícia Civil do Distrito Federal, onde estava quando recebeu as mensagens.
Para Ana Lúcia, permanecer no espaço de vereança é um desafio diário, em que é preciso se posicionar para ter voz. Na sessão ordinária da Câmara de Vereadores de Joinville do dia 30 de maio, Ana aproveitou seu tempo de fala para discorrer e lamentar sobre os episódios de violência política de gênero que vem sofrendo.
Na ocasião, ressaltou que ela e a vereadora Tânia Larson, do União Brasil, sofrem constantes perseguições diárias vindas de outros vereadores. Ana Lúcia se mostrou bastante indignada com o silêncio e conivência dos colegas diante dessas situações.
De acordo com a vereadora, que foi perseguida nas redes sociais e ofendida na plenária diversas vezes, o espaço político não deveria ser um lugar onde as pessoas ofendem umas às outras. “Nós não estamos aqui nesta casa para estimular ainda mais o ódio, a indiferença, a homofobia e o racismo”, declarou em seu discurso.
Uma visão antropológica da violência política de gênero
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais da metade da população brasileira (51,13%) é feminina, e elas representam, segundo o Tribunal Superior Eleitoral, 53% do eleitorado. No entanto, ocupam hoje, no Brasil, menos de 15% dos cargos eletivos.
Nas eleições de 2022, somente 91 mulheres foram eleitas deputadas federais, o que corresponde a 17,7% da totalidade das 513 cadeiras disponíveis. O número representa um avanço muito pequeno ao levar em consideração o resultado das eleições de 2018, quando 77 mulheres foram eleitas deputadas federais e ocuparam 15% das cadeiras.
Já nas Assembleias Legislativas dos estados o número de deputadas estaduais e distritais eleitas chega ao total de 190. Especificamente em Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Goiás, a representatividade feminina ficou abaixo de 10%.
Com relação ao Senado, teria acontecido um retrocesso relevante caso suplentes não tivessem assumido. Considerando apenas o resultado das últimas eleições, das 81 cadeiras disponíveis, apenas dez seriam ocupadas por mulheres senadoras a partir de 2023 — duas a menos que na legislatura anterior. No entanto, houve o ingresso de cinco mulheres suplentes: uma porque o titular foi eleito governador do estado, e outras quatro porque os titulares se tornaram ministros do governo Lula.
Dos 27 estados do país, apenas dois são governados por mulheres atualmente, com Fátima Bezerra (PT) no Rio Grande do Norte e Raquel Lyra (PSDB) em Pernambuco. Além disso, somente 12% dos municípios brasileiros são comandados por mulheres prefeitas, sendo Cinthia Ribeiro (PSDB), prefeita de Palmas, no Tocantins, a única a dirigir uma capital.
Alguns dos fatores que contribuem para que o Brasil esteja abaixo da média das Américas na participação feminina nos espaços políticos é a resistência dos partidos políticos em investir nas candidaturas de mulheres, as fraudes reiteradas às cotas de gênero existentes na legislação e claro, a violência e assédio político direcionado às mulheres que ousam se candidatar.
O caso de Ana Lúcia e de tantas outras mulheres no Brasil e em Santa Catarina são resultado de uma realidade que há anos já está enraizada em toda a sociedade. Por muito tempo consideradas “sexo frágil”, as mulheres desde sempre foram forçadas a ficarem confinadas ao ambiente doméstico, responsáveis pelos cuidados da casa e dos filhos. Acesso à educação formal e ao mercado de trabalho foram vedados, assim como a aquisição de direitos políticos
A maioria das mulheres do Ocidente somente conquistou liberdade política nas primeiras décadas do século XX, ainda que não totalmente em igualdade com os homens naquele momento. O fato de uma mulher, como Ana Lúcia, ter voz e ser capaz de promover mudanças em espaços majoritariamente masculinos, ainda causa incômodo em muitas pessoas.
Para a pesquisadora, professora e antropóloga Maria Elisa Máximo, a violência política de gênero mostra como a trajetória das mulheres que optam por participar ativamente de espaços majoritariamente masculinos é marcada por intimidações e violência. Uma vez eleita, ou ocupando o lugar de destaque em movimentos sociais, a mulher enfrenta uma rotina exaustiva de discriminação, ameaças e violências, em diferentes âmbitos.
No caso das mulheres, qualquer tipo de violência de gênero é alavancada pelo papel social e cultural atribuído a elas, que são historicamente inferiorizadas em diversas realidades. Sendo assim, a desigualdade de gênero, incentivada pela sociedade patriarcal, fomenta a violência de gênero.
Isso acontece pois, a partir do momento que existe a convicção de que as mulheres são inferiores ou propriedades que devem respeitar os homens acima de tudo, cria-se uma estrutura de poder em que a mulher é o lado mais fraco.
De acordo com a pesquisadora, a violência política de gênero pode ser caracterizada como todo e qualquer ato com o objetivo de excluir a mulher do espaço político, impedir ou restringir seu acesso ou induzi-la a tomar decisões contrárias à sua vontade. As mulheres podem sofrer violência quando concorrem, já eleitas e durante o mandato, como aconteceu com Ana Lúcia.
Para Maria Elisa, tratar como violência política de gênero o que aconteceu com Ana ajuda as pessoas a identificarem mais facilmente quando a violência acontece por algum fator específico, como o gênero, cor da pele ou classe social. “Em todos os processos a gente precisa dar nome às coisas para que elas passem a existir dentro da experiência e da percepção das pessoas no geral. A gente precisa dar o nome para que as pessoas possam fazer essa distinção”, explica a antropóloga.
Assim como Ana Lúcia, a professora Maria Elisa também foi atacada por se posicionar contra o bolsonarismo. Após fazer uma crítica ao fenômeno político, ela se tornou alvo de uma forte violência, tendo que enfrentar xingamentos, ataques a sua honra, questionamentos a respeito de sua integridade profissional e muitas outras agressões psicológicas.
No dia 1 de outubro de 2022, o ex-presidente Bolsonaro fez campanha em Joinville, cidade mais populosa de Santa Catarina e majoritariamente bolsonarista. No dia seguinte, 68,98% dos votos válidos dos joinvilenses foram dedicados ao candidato do PL. O candidato puxava a “motociata” quando a professora Maria Elisa Máximo cruzou o seu caminho.
Ela, o marido e os dois filhos ocupavam um carro adesivado com o rosto de Lula e sofreram ataques dos apoiadores do presidente. A pesquisadora só não sabia que o seu destino mudaria completamente após esse encontro. Ao chegar em casa, ela publicou um tweet que relatava: “Joinville sendo o esgoto do bolsonarismo, pra onde escoou os resíduos finais da campanha do imbroxável inominável. Não tem quem escape: há gente brega, feia e fascista para todos os lados”.
Após realizar a publicação, Maria Elisa percebeu que o post estava repercutindo mais que o normal, ganhando diversas curtidas, comentários e compartilhamentos. Assim, pensando em sua segurança, preferiu privar sua conta e apagar o post. Em grupos de WhatsApp bolsonaristas, a imagem passou a circular em montagens que associavam o texto de Elisa à instituição onde ela atuava.
A professora, que passou a receber ódio de grupos extremistas, com inúmeras ameaças e insultos nas redes sociais, define o que aconteceu com ela como violência política de gênero. Em diversas publicações, Maria Elisa foi ameaçada, humilhada e teve seu profissionalismo questionado.
Após os inúmeros ataques, no dia 3 de outubro, Maria apresentou à instituição onde atuava, a Faculdade Ielusc, uma licença médica de 15 dias. Neste período, a professora se manteve isolada em casa, com medo de que os ataques de ódio que recebeu online se estendessem ao mundo real.
Quando retornou à faculdade, em 18 de outubro, recebeu o aviso de que estava demitida. Não lhe foi informado o motivo do corte, mas houve grande pressão por parte de pais de alunos pela retirada da docente, ainda por conta da publicação feita no primeiro dia de outubro.
No mesmo dia da demissão de Maria Elisa, estudantes, movimentos sociais, partidos políticos e sindicatos protestaram contra os cortes federais na educação em Joinville. A manifestação, que começou na Praça da Bandeira, dirigiu-se à instituição.
De acordo com uma nota publicada pelo Movimento Feminista da Diversidade, que participou do protesto, o ato “Foi uma manifestação pacífica pelo campus da universidade com palavras de ordem pedindo a volta da professora e se posicionando contra a censura, o fascismo e pela democracia”. Diferente do que disseminaram fakenews que circularam na época, os estudantes não entraram na igreja da instituição. A informação foi desmentida pela própria Paróquia da Paz nas redes sociais.
Para Maria Elisa, casos que colocam mulheres em situações como a que ela e tantas outras passam diariamente criam barreiras de diversas ordens. Ao longo das últimas décadas a mulher brasileira avançou muito na conquista de seus direitos, ao lutar para conseguir um espaço significativo na sociedade e principalmente no mercado de trabalho. Entretanto, ainda é preciso avançar muito para que se faça justiça com mulheres que continuam sofrendo violência na política e em diversos outros espaços.
O papel da internet nos ataques
O caso de Maria Elisa Máximo teve uma grande repercussão pois os ataques aconteceram principalmente na internet, por meio das redes sociais, assim como Ana Lúcia, que precisou lidar com ameaças recebidas em comentários em postagens no Instagram e mensagens enviadas por e-mail.
Postagens nas redes sociais que criticam e zombam do “outro lado” do espectro ideológico recebem o dobro de compartilhamentos do que aquelas que defendem pessoas ou ideias de sua própria tribo política. Ou seja, a estrutura das redes sociais incentiva o confronto ao viralizar especialmente aqueles conteúdos que exacerbam a rivalidade política.
“Os algoritmos não são neutros e imparciais, então assim como no meu caso e em tantos outros casos, a gente pode dizer que eles viralizam de alguma maneira o algoritmo está sempre esperando que determinadas pessoas, com determinadas características e posicionamentos, se coloquem na internet e esse algoritmo tenha chance de viralizar”, resume a pesquisadora Maria Elisa.
No primeiro semestre de 2022 foram registradas 23.947 denúncias de crimes de ódio praticados na internet, segundo um levantamento da associação civil de direito privado SaferNet. A pesquisa aponta que houve um aumento de 67,5% em relação ao mesmo período de 2023. Em anos de eleições ocorre um acirramento do discurso de ódio no ambiente on-line, servindo como uma espécie de “gatilho”.
Apesar da discrição do ambiente online e do acesso às mídias sociais facilitarem a ocorrência de ataques e disseminação de notícias falsas, principalmente relacionadas à política, Maria Elisa aponta que a internet também facilita a identificação dos ataques e torna mais eficiente a punição em alguns casos, já que tudo o que é publicado em redes sociais fica registrado.
Antes da lei ser sancionada, casos já aconteciam
Conforme explicado por Maria Elisa Máximo, é necessário definir casos como o de Ana Lúcia como violência política de gênero para que eles possam ser tratados como tal e punidos da forma correta. Antes da Lei 14.192/21, de 4 de agosto de 2021, que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, os casos já eram frequentes.
Não é possível falar sobre violência política contra as mulheres sem citar o assassinato da vereadora Marielle Franco, em 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro, antes da criação da lei. A violência racista e machista que cerca a vida da vereadora Ana Lúcia Martins ceifou a vida de Marielle Franco, que não teve qualquer chance de defesa. O crime abriu portas para um debate acerca do tema.
Nascida e criada no complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, Marielle Francisco da Silva, conhecida como Marielle Franco, tornou-se a quinta vereadora mais votada da cidade nas eleições de 2016, com 46.502 votos. Marielle era um destaque nacional por tudo o que representava: uma mulher negra, periférica, não heterossexual ocupando um espaço de poder.
Ela teve uma trajetória marcada pela militância em prol dos direitos humanos e do feminismo. Também era uma crítica da intervenção federal no Rio de Janeiro e da Polícia Militar, tendo denunciado vários casos de abuso de autoridade por parte de policiais contra moradores de comunidades carentes. Em 15 meses de mandato, apresentou 16 projetos de lei, voltados para a representação e os direitos básicos dos moradores das favelas.
Exercendo a militância, entre denúncias de violências policiais e luta por direitos das minorias, em 14 de março de 2018, Marielle, junto à sua assessora e seu motorista Anderson Gomes, sofreram um atentado. Ela voltava de uma palestra realizada na Casa das Pretas, no bairro da Lapa, sobre negritude, representatividade e feminismo, quando, ao deixarem o local, o carro em que estavam foi perseguido e foi alvo de diversos disparos de arma de fogo. Marielle foi atingida por três tiros na cabeça e um no pescoço, e Anderson por três tiros nas costas. A assessora sobreviveu.
“Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”, disse a vereadora, trinta minutos antes de ser assassinada. As palavras eram da norte-americana Audre Lorde, ativista pelos direitos das mulheres, negros e homossexuais.
O assassinato rapidamente causou comoção e indignação no Brasil e no mundo, com manifestações nas redes sociais e também nas ruas, assim como em homenagens prestadas em seu velório, que foi realizado na Câmara Municipal. O caso, veiculado por todos os meios de comunicação, entrou nos assuntos mais comentados da internet, demonstrando a revolta de uma população que se sentia representada por Marielle.
O caso de Marielle e de tantas outras mulheres no Brasil e em Santa Catarina são resultado de uma realidade que há anos já está enraizada em toda a sociedade. Décadas de construção democrática e de reconhecimento da violência de gênero, em leis e políticas públicas, foram insuficientes para poupar a vida da vereadora e a de outras mulheres.