No contra-ataque, mulheres rompem o silêncio sobre a violência no futebol
Pela primeira vez a Copa do Mundo Feminina será no Brasil, em 2027. Diante de tantos desafios enfrentados, o futebol feminino comemora conquistas que por anos foram impedidas por proibição e preconceito. Nessa luta, a determinação das atletas é encoberta por estereótipos de gênero enraizados. Solange Bastos é ex-zagueira da seleção brasileira e enfrentou desafios desde o início de sua carreira, aos 12 anos. Soró, como era conhecida, foi revelada pelo Flamengo de Feira de Santana (BA). Ela jogou pela Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1991 e 1995 e foi campeã sul-americana em 1995.
As dificuldades no futebol feminino destacam-se na história de Solange. Em 1981, ainda uma criança, diante de arquibancadas lotadas, teve de ouvir os berros do treinador chamando-a de “passa-fome”, termo utilizado para se referir às pessoas carentes de alimentação. Tudo porque ela perdeu uma disputa de bola para a adversária, de 19 anos, o que levou o jogo ao empate.
Empurrar e xingar a pré-adolescente Soró não foi suficiente para o técnico que inferiorizou a atleta afirmando que ela não jogava igual a um homem. “Fiquei totalmente constrangida, foi um dos piores momentos da minha vida! Vergonha interminável”, relatou.
“Para o meu time não serve”
O tempo passou e a menina Soró seguiu na carreira de jogadora de futebol. Entretanto, as adversidades a acompanhavam a cada campeonato de que participava. Aos 34 anos, foi convidada para jogar em um time de São Paulo. Antes de iniciar o treino, Solange foi abordada pelo treinador do time.
“Na hora de sair ele me chamou, pensei que ia falar ‘bem-vinda’ ou dizer que eu ajudaria a equipe, mas ele olhou para mim e disse que não me queria ali”, contou. O treinador a chamou de velha e afirmou que ela só teria alguma chance no time se fosse um homem.
“Foi um momento horrível para mim, porque eu estava em transição, saindo de uma fase de auge para tentar me manter dentro do esporte, até pela necessidade financeira. A única coisa que eu tinha para me manter era o futebol”, conta Soró com a voz embargada. “Eu olhei para ele e fiquei sem palavras, só perguntei: eu preciso ser homem para jogar?”
Em 1941, realmente era preciso ser homem para jogar. Durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), o presidente Getúlio Vargas sancionou a Lei nº 3.199, que proibia mulheres de praticar esportes “incompatíveis com as condições de sua natureza”. As autoridades da época alegavam que o corpo feminino era delicado demais para o futebol e que, por isso, ficariam masculinizadas física e psicologicamente. “Essa exclusão se naturalizou ao longo do tempo, levando as mulheres a internalizar a ideia de que o futebol não era para elas. Isso resultou em falta de oportunidades para as meninas se envolverem no esporte e em um atraso significativo no desenvolvimento do futebol feminino de alto nível e a sua profissionalização”, explicou a historiadora esportiva Aira Bonfim. Desde o início do esporte, as mulheres enfrentam essas barreiras estruturais e, mesmo com avanços, as violências contra as jogadoras continuam até hoje.
A violência por trás das quatro linhas
Nesta reportagem as entrevistadas receberam nomes fictícios a fim de preservar suas identidades e evitar retaliações. Para Luiza, atleta Catarinense , a violência não se manifesta apenas em palavras, mas também pelo tratamento desigual nos clubes. “Estávamos alojadas em um clube onde as categorias de base masculinas tinham tratamento privilegiado. A diferença da alimentação do feminino para o masculino era gritante. E como se não bastasse, a limpeza do salão, que era uma área aberta, ficava sob nossa responsabilidade, mesmo que fossem os meninos que tivessem sujado. Isso tudo me afetou muito psicologicamente “, relata Luiza.
Os relatos das jogadoras pintam um quadro sombrio da realidade enfrentada pelas mulheres no futebol. Carolina, de Santa Catarina, destaca que o clube onde atua é muito machista e que já escutou comentários até dos próprios jogadores falando do corpo das demais atletas. Outra atleta, Vitória, enfrentou o assédio verbal dos torcedores, enquanto sua colega de time relatou comentários homofóbicos e misóginos proferidos pelo próprio treinador do clube. Até aqueles que deveriam fazer do jogo uma partida justa, praticam a violência.
Maria compartilha uma experiência marcante que teve com a arbitragem: “Após questionar uma decisão injusta do árbitro, fomos chamadas de ‘machorras’ e instruídas a voltar para a cozinha. É revoltante como a autoridade máxima do jogo pode ser tão desrespeitosa e sexista”.
Tradicionalismo que fere
Para a historiadora Aira Bonfim, a violência de gênero no futebol está enraizada em estruturas sociais e culturais profundamente fortes, que continuam a perpetuar estereótipos prejudiciais de gênero e machismo.
Ao longo da história, o futebol e muitos outros esportes foram concebidos e desenvolvidos em um contexto predominantemente masculino, onde a presença feminina foi sistematicamente excluída e marginalizada. Essa exclusão, embora possa ter sido contestada ao longo dos anos, ainda é tão intrínseca à cultura esportiva que desafiá-la se torna uma tarefa monumental.
Para Bonfim, essa exclusão não é apenas uma questão de prática esportiva, mas também reflete dinâmicas de poder mais amplas na sociedade. Ela ressalta que a violência contra mulher no futebol é apenas a manifestação de um problema mais amplo de desigualdade e discriminação baseadas no gênero, que permeiam todos os aspectos de nossas vidas. “Somente através de uma mudança fundamental na cultura esportiva e na sociedade como um todo, podemos esperar erradicar essa violência e criar um ambiente verdadeiramente inclusivo e igualitário para todos os envolvidos no futebol, independentemente do gênero”, reforça a historiadora.
O peso do silêncio
Além dos estereótipos de gênero, do preconceito enraizado e de tudo que mulheres que gostam desse esporte suportam para chegar a um clube profissional (humilhação, falta de apoio familiar, bullying em ambiente escolar, exclusão), ainda precisam lidar com ofensas de torcedores e até de alguns dirigentes, preparadores, médicos e funcionários do time.
A falta de punição e descaso por parte das autoridades é recorrente e cria terreno fértil para que a violência floresça até nos bastidores, incentivando o silêncio alimentado pelo medo de punições, estigmatização ou, simplesmente, pelo desejo de manter as aparências.
A violência de gênero pode assumir diversas formas, desde insultos e humilhações até manipulação emocional e exclusão, e isso vem desde cedo, como explica a psicóloga esportiva Ediellen Queiroz. Para muitas atletas, as cicatrizes emocionais são tão profundas quanto às lesões físicas, afetando não apenas seu desempenho esportivo, mas também sua saúde mental e bem-estar geral.
Quebrando o ciclo
Apesar dos desafios enfrentados, as jogadoras estão começando a quebrar o silêncio e a reivindicar mudanças, compartilhando suas experiências e inspirando outras vítimas – dentro e fora de campo – a se levantarem contra a violência. Por meio de vozes corajosas, manifestações e denúncias públicas, elas lutam por um ambiente esportivo mais seguro e inclusivo.