Surfe Catarinense conquista espaço no cenário mundial
Por Luiza Rodrigues
Ao longo da última década, surfistas brasileiros vêm levantando títulos na elite mundial e afirmando que a “Brazilian Storm” não era modismo. Mas, em 1º de setembro de 2025 Santa Catarina tomou as rédeas do cenário global: Yago Dora se tornou campeão mundial do WCT, erguendo pela primeira vez o troféu máximo do circuito masculino, ao passo que, em 1992, Teco Padaratz, catarinense, ganhava pela primeira vez o mundial World Men’s Qualifying Series (WQS).
Muitos desses atletas nasceram em praias onde o surfe não oferecia facilidades: mar difícil de ser lido, correntezas perigosas e ondas exigentes, como nas valas de Barra do Sul, no litoral norte catarinense. Sem treinador, aprendiam a decifrar cada ondulação na prática, com pranchas emprestadas ou equipamentos caros demais para a realidade local. “Minha primeira prancha eu troquei por um pneu de bicicleta”, conta Teco, que aprendeu observando da areia e, aos 13, já tinha um plano de carreira estruturado pelo shaper e empresário Avelino Bastos. O surfe, que nas décadas passadas era visto mais como um passatempo de quem “não queria nada com a vida”, foi ganhando contornos de dignidade, reconhecimento e estrutura. Ao longo dos últimos vinte anos, está saindo da margem do preconceito para ocupar o cenário olímpico, consolidando-se como esporte de alto rendimento e motor de transformação. Essas gerações anteriores tiveram papel crucial ao dar solidez ao esporte no estado, moldaram o cenário local e tornaram possível que hoje Santa Catarina erguesse o troféu. É essa história, feita de conquistas visíveis e de lutas silenciosas, que esta reportagem percorre.
Desde 2014, quando o Brasil voltou a vencer o Championship Tour com Gabriel Medina, foram oito troféus erguidos por diferentes nomes: Adriano de Souza, Ítalo Ferreira, Filipe Toledo e, em 2025, Yago Dora.
No feminino, a trajetória também ganhou força. Tatiana Weston-Webb levou o Brasil à medalha de prata nas olimpíadas de 2024, às finais do Championship Tour e foi vice-campeã em 2021, repetindo o feito histórico de Silvana Lima em 2008 e 2009. Hoje, segue entre as melhores do ranking, enquanto novas surfistas como a catarinense Laura Raupp lideram nas divisões de base.
Fora d’água, o crescimento também é visível: o Brasil deve ter, até 2026, treze piscinas de ondas artificiais em funcionamento, incluindo projetos de alto investimento como o de Curitiba, que será coberto e com água aquecida. São marcos de um esporte que, em poucas décadas, deixou a margem para ocupar o centro da cena esportiva global, atraindo mídia, patrocinadores e novos praticantes.
A história catarinense não se confunde com postal; ela é feita de correnteza, ressaca, ressaca moral e escolhas. Décadas de cultura de base, campeonatos locais, associações organizadas, profissionais que transformaram talento em método e uma gestão que aprendeu a falar de orçamento, calendário, segurança e governança. Mais do que uma ascenção do esporte, a vitória responde a uma pergunta que acompanha este texto de ponta a ponta: por que Santa Catarina é potência do surfe?
Claudia Santos – uma das pioneiras a representar o bodyboard feminino catarinense para o mundial
O mar sempre foi casa para Claudia dos Santos. Joinvilense, criada na Barra do Sul (SC), filha de pescador e construtor naval, cresceu entre barcos, redes e ondas. “Eu já tinha uma ligação muito grande com o mar”, recorda.
O encontro com o bodyboarding aconteceu por acaso, no fim dos anos 1980, quando uma prancha trazida de São Paulo despertou sua curiosidade. “Me apaixonei na hora. Pedi de presente e, em outubro, ganhei a minha primeira prancha junto com a minha irmã mais velha. Ela logo desistiu, mas eu continuei”, conta. Três meses depois, já competia pela primeira vez na Barra, e subia ao pódio.

Naquele período, o bodyboarding feminino brasileiro já existia, de forma ainda incipiente, mas começava a se firmar com nomes de peso. Claudia recorda que suas principais referências eram atletas que abriam caminho em um cenário predominantemente masculino. “As irmãs Nogueira já estavam competindo e conquistando espaço. Para nós, era uma inspiração ver brasileiras chegando tão longe”, afirma. Ela cita também nomes como Glenda Kozlowski, Mariana Nogueira e Mônica Rodrigues, que despontavam como pioneiras e mostravam que o esporte poderia ser levado a sério por mulheres. “Elas já tinham resultados expressivos, competiam fora e eram muito respeitadas. Ver isso me motivava a acreditar que eu também podia chegar lá”, completa.
Na adolescência, os dias eram inteiros dedicados ao mar. O que era, antes, sem pretensão de se tornar profissional, tornou-se parte do dia a dia. Claudia treinava de quatro a seis horas por dia, sempre com incentivo da família. “Eles sempre me apoiaram muito, até financeiramente. Eu só pensava em treinar e competir.” Logo vieram os circuitos catarinense e nacional. Sem técnico, sem psicólogo, com horas de água e apoio da família, Claudia atravessou o Brasil aos 15 anos e embarcou sozinha para Salvador (BA) para disputar o Brasileiro.
Sem patrocinadores fixos, contava apenas com apoios pontuais. “Tive ajuda de empresas de Joinville, como a Clínica São Marcos e a marca de roupas Pink and Blue. Mas era sempre muito difícil manter.” Mesmo assim, persistiu.
A guinada aconteceu em 1995, no berço do esporte. No Havaí, ficou em oitavo lugar no ranking geral e recebeu o título de melhor atleta amadora do mundo naquele campeonato. A performance chamou atenção de uma olheira japonesa da marca Local Motion, ligada à corporação Miname. “Eles me ofereceram um contrato que incluía roupas, equipamentos e apoio financeiro para disputar dois campeonatos internacionais por ano. Foi assim que comecei a competir no Japão e no Havaí com regularidade”.

A transição definitiva para o profissional aconteceu no Japão, em 1995. “Fiquei em terceiro lugar. Quando fui receber o prêmio, percebi que era em dinheiro. A partir dali, passei a ser considerada profissional.” De acordo com as regras do esporte, regulamentada pela Associação Internacional de Surfe (ISA), a categoria passa de amador para profissional a partir do momento em que há um retorno financeiro.
O contrato trouxe estabilidade rara para atletas brasileiras da época. Pranchas e roupas passaram a estampar seu nome, e ela recebia royalties pelos produtos. Durante oito anos, competiu em países como Califórnia, Portugal, França, Ilhas Guadalupe, Ilhas Reunião e Madagascar, sempre figurando entre as oito melhores do mundo.
Desafios de uma pioneira
Naquele tempo, o bodyboarding feminino no Brasil ainda dava seus primeiros passos. Sem técnicos, psicólogos ou preparadores, Claudia administrava sozinha a rotina de treinos e competições. “Não tinha treinador, psicólogo esportivo, ninguém. Eu fazia tudo sozinha. Talvez, se tivesse esse acompanhamento, minha carreira tivesse sido ainda maior.”
Ela também lembra que a vida de atleta é curta. “A carreira dura, no máximo, uns dez anos. Depois, é preciso estar pronto para outra etapa. Na minha época, não se falava disso.”
Se no início dos anos 1990 o surfe e o bodyboarding eram vistos com preconceito, hoje Claudia enxerga avanços, mas ainda cobra incentivo. “As pessoas diziam que era coisa de vagabundo. Ainda existe esse olhar, mas já melhorou bastante.” Para ela, falta apoio público: “O poder público investe quase só no futebol. Outras modalidades ficam de lado. O esporte exige disciplina, dedicação, e pode transformar a vida de crianças e jovens. Eu sou prova disso.”
De Barra do Sul ao Japão, do anonimato aos pódios mundiais, Claudia dos Santos construiu uma trajetória marcada pela persistência e pelo amor ao mar. Mais do que títulos, deixou um exemplo de disciplina e superação em um esporte ainda pouco valorizado no país.
“Eu me apaixonei pelo bodyboarding na primeira vez que subi numa prancha. E nunca mais desci.”
Federação Catarinense de Surfe – A Fecasurf
Fundada em 1987, a Fecasurf foi a base. Organizou associações, rankings, categorias de base e, principalmente, um calendário que mantinha a comunidade surfando com propósito. O segundo degrau foi a Praia da Vila, em Imbituba, que recebeu etapas da elite mundial entre 2003 e 2010. Para um adolescente que sonhava com o circuito, bastava ficar na areia para aprender: timing de série, posicionamento no pico, leitura de prioridade, critério de julgamento.
Esse encontro entre base organizada e referência internacional gerou algo recorrente nas entrevistas: ambição informada. Quando a régua sobe, a preparação sobe junto, e Santa Catarina foi empurrada ao patamar seguinte.
Rafael Imhof – astro da Barra do Sul tomou pódio mundial
O barulho do mar em Barra do Sul, no litoral norte de Santa Catarina, sempre esteve presente na vida de Rafael Imhof. Filho de uma infância dividida entre a casa da mãe e do pai após a separação dos dois, ele encontrava no oceano uma espécie de abrigo. Primeiro no bodyboarding, ainda criança, Rafael “inventava moda” surfando em pé na prancha de bodyboard até o dia em que seu pai o levou para uma loja de pranchinhas de surfe, quando se apaixonou. Descobriu não apenas um esporte, mas também um modo de vida. Hoje, aos 48 anos, psicólogo de formação e videomaker por profissão, Rafael se vê como um free surfer, mas olha para trás e enxerga uma trajetória que acompanha o amadurecimento do próprio surfe catarinense.

“Eu comecei no bodyboard por uma questão familiar. Meus pais eram separados, então o bodyboard acabou sendo uma ferramenta de diversão. Era mais fácil, mais acessível. Eu pegava onda sem precisar de muito. Mas, em 1990, 1991, migrei para o surfe. Foi aí que tudo mudou”, lembra.
A transição para a prancha coincidiu com o início das primeiras competições. Rafael mergulhou de cabeça no universo dos campeonatos, sem nunca perder a espontaneidade de quem havia aprendido a surfar pela observação. “Ganhei vários campeonatos na época de amador. Eu surfava bem para o contexto daquele tempo. Lembro que não tinha técnico, não tinha referência de vídeo, era muito mais pelo instinto. A gente aprendia errando, caindo, olhando os outros e repetindo”, conta.
O talento natural se confirmou com títulos importantes. No circuito universitário, enquanto cursava Psicologia na Univille, foi tricampeão catarinense. A conciliação entre estudos e surfe moldou um atleta disciplinado, mas também realista diante dos limites do esporte no Brasil dos anos 1990.
Na virada da década, Rafael conquistou um feito raro para surfistas da região: um patrocínio de marca de surfwear. Mas, junto com o apoio financeiro, vieram também novas pressões. “O patrocínio caiu meio de paraquedas. Eu tive que negociar sozinho, não tinha empresário, não tinha assessoria. Consegui uma marca, mas com isso veio a cobrança: tinha que ter resultado, tinha que aparecer. Era uma relação patrão-empregado. Aquilo me amadureceu muito, mas também me mostrou o lado duro do surfe profissional”, reflete.

O surfe, que sempre fora uma paixão livre, passou a carregar a exigência de resultados. “Às vezes, você queria só surfar, mas tinha que estar no pódio, tinha que sair bem na foto. Era complicado conciliar a cobrança com o prazer de estar no mar.”
Enquanto Rafael construía sua trajetória, Santa Catarina se consolidava como um dos berços do surfe brasileiro. Em praias como Barra do Sul, São Francisco do Sul e, mais tarde, Imbituba, o esporte ganhava cada vez mais adeptos e relevância. “Naquela época, o surfe ainda era marginalizado, visto como coisa de vagabundo. A gente ia competir e ouvia piada. Hoje é diferente: o Brasil é potência mundial, temos campeões como Medina, Ítalo e Filipe. Mas o caminho foi longo. Nos anos 90, a gente era pioneiro, fazendo por amor, sem estrutura”, recorda Rafael.
Com o tempo, a pressão dos campeonatos deu lugar a uma escolha mais leve. Rafael se afastou do circuito profissional, mas nunca das ondas. Tornou-se psicólogo, fotógrafo, videomaker, sempre com o mar como pano de fundo.
“Hoje sou free surfer. Não tenho mais aquela cobrança, não preciso competir. Mas continuo vivendo o surf todos os dias. É algo que está no sangue, não tem como tirar.” A experiência de ter vivido o surfe competitivo, aliado à maturidade pessoal, lhe dá uma visão crítica sobre os rumos do esporte. Para ele, o futuro do surfe brasileiro está diretamente ligado ao equilíbrio entre a profissionalização e a manutenção da essência. “O surfe cresceu muito, virou olímpico, tem dinheiro, mídia. Mas a essência não pode se perder. No fim das contas, é sobre entrar no mar, sentir a onda, viver o momento. É isso que mantém a chama acesa”.

Ao revisitar sua trajetória, Rafael não mede as palavras: o surfe foi mais do que um esporte, foi um caminho de vida. Do bodyboard da infância às pranchas atuais, dos títulos universitários ao patrocínio exigente, cada fase deixou marcas. “Quando eu penso no surfe, penso na minha vida. Tudo se mistura: a infância em Barra do Sul, as competições, a faculdade, os patrocínios. Cada etapa me ensinou algo. E o mais importante é que nunca perdi a conexão com o mar.”
Hoje, sem o peso das disputas oficiais, Rafael Imhof segue como personagem fundamental para compreender o surfe catarinense — um esporte que, como ele próprio, amadureceu, ganhou respeito e se profissionalizou, mas ainda guarda no fundo a liberdade que o move desde sempre.
Outro Patamar
Santa Catarina aprendeu a treinar. A rotina hoje comum nos CTs e Challengers — técnico, preparador físico, psicologia esportiva, nutrição, análise de vídeo — virou padrão entre os melhores do estado. Não é luxo: é o que separa o “já muito bom” do consistente. A figura do coach-filmer ganhou destaque: gravar, pausar, comparar, corrigir linha, eixo, velocidade, leitura de seção. É a gramática de uma geração que, em vez de só “ir ver no mar”, estuda o mar.
No plano nacional, a a Confederação Brasileira de Surf (CBSurf) tomou força e mudou sua situação em menos de três anos.
Desde que o surfe passou a integrar o programa olímpico, a CBSurf entrou no radar do GET — o índice de Gestão, Ética e Transparência do Comitê Olímpico do Brasil. Quando Teco Padaratz foi eleito presidente, em 2022, a nota da entidade, que varia de 0 a 10, era de 0,9, ocupando a 38ª posição entre 39 confederações. Em 2025, o cenário mudou radicalmente: a CBSurf alcançou 9,25 pontos e passou a figurar no top 3 do ranking.
Padaratz atribui a virada a um esforço de governança e comprovação de evidências. “É “só” o direito do esporte”, disse. Ele explicou que, quanto mais a confederação comprova ações em gestão, ética e transparência, como projetos sociais e ambientais, capacitação, políticas de proteção à mulher e comunicação não violenta, maior a pontuação no GET. Segundo ele, esse conjunto de evidências também inclui resultados esportivos, assembleias gerais com contas aprovadas em cartório três vezes ao ano e a atuação de um conselho fiscal que se reúne periodicamente para avaliar as finanças.
O presidente detalha que a confederação implementou auditoria independente e passou a cumprir “uma infinidade de itens” que compõem o índice. “Você dá uma nota de 0 a 10 e, conforme for a sua nota, ela representa a fatia da verba das loterias para a confederação”, afirmou. Padaratz relatou que, quando assumiu, a CBSurf tinha R$ 3,5 milhões por ano bloqueados e não possuía a certificação dos artigos 18 e 18-A — o “selo 18/18-A” — que habilita o recebimento de recursos públicos de prefeituras, governos estaduais e federal. Ele diz que, em seis meses, a equipe montou uma gestão “no amor à camisa”, com trabalho voluntário e sem garantia de pagamento.
Rodrigo Darbilly, advogado oficial da CBSurf, que acompanha o tema, reforça o requisito legal. Ele explicou que, para receber recursos descentralizados da loteria e qualquer verba federal — inclusive via Lei de Incentivo ao Esporte —, as entidades precisam da Certificação dos artigos 18 e 18-A da Lei Pelé, emitida pelo Ministério do Esporte, cumprindo os requisitos ali previstos e reproduzidos também no artigo 36 da Lei Geral do Esporte. Sem a certificação, a porta de entrada para esses recursos permanece fechada.
Com a casa em ordem, a verba começou a destravar e a crescer. Padaratz contou que, após a regularização das contas e a implementação de compliance, o repasse anual saltou: “No ano seguinte a nossa verba já era R$ 7 milhões, no outro ano R$ 10 milhões e, neste ano, perto de R$ 11 milhões.” Ele acrescenta que a evolução no GET também foi contínua: a nota subiu de 8,65 para 9,25 de 2024 para 2025. Ainda assim, pondera que o montante final depende do desempenho das demais confederações. “Se outras fizeram acima de 9,25, por exemplo, a gente, mesmo com nota maior do que no ano passado, pode receber menos, porque é um sistema para não dar a mesma verba para todo mundo”, afirmou.
Rodrigo observa que a distribuição de recursos pelo Comitê Olímpico segue critérios objetivos e prevê um piso anual. “A descentralização de recursos pelo COB segue critérios definidos, que são analisados e, a depender do desempenho da confederação, determinam o valor destinado”, disse. Para 2025, segundo ele, o valor mínimo foi de R$ 3.581.081,08, enquanto a confederação com maior repasse foi a de vôlei (CBV), com R$ 14.142.373,98.
Na avaliação de Teco Padaratz, a trajetória recente da CBSurf evidencia que o cumprimento de boas práticas de governança não é mera formalidade, mas um mecanismo que sustenta o financiamento do alto rendimento e das políticas institucionais. Ele resume: quanto mais sólida e transparente a gestão, maiores as chances de avançar no GET, e de transformar nota em investimento para o esporte.
Com a modalidade no programa olímpico, repasses via Comitê Olimpico Brasileiro (COB) passaram a depender de governança, ética, transparência e entrega de calendário. Teco Padaratz, presidente da confederação, descreve em números e contexto jurídico:
“A partir do momento em que o surfe virou olímpico, o Comitê Olímpico inclui o surfe na distribuição da verba das loterias […] a CBSurf larga no ano uma média de R$ 10 milhões de orçamento”, disse. Rodrigo Darbilly, advogado oficial da Confederação, detalha a base legal: a destinação das loterias ao esporte nasceu com a Lei 10.264/2001 (Agnelo Piva), foi regulamentada pela Lei 13.756/2018 e hoje é complementada pela Lei Geral do Esporte; o COB descentraliza recursos para as confederações de acordo com critérios de gestão, ética, transparência e desempenho, com 75% para atividade-fim e 25% para custeio. Em 2025, o surfe recebeu R$ 10.303.743,67; o piso de repasse foi R$ 3.581.081,08 e a confederação com maior valor foi a de vôlei (R$ 14.142.373,98), segundo o advogado.
Padaratz descreve a regra do jogo: a nota no GET (Gestão, Ética e Transparência) do COB define a fatia das loterias; auditoria independente, conselho fiscal ativo e assembleias em dia contam pontos. “Conforme for a sua nota, isso representa a fatia da verba das loterias”, afirmou. Ele diz que, quando assumiu, “a verba era R$ 3,5 milhões por ano e estava bloqueada”, e que a regularização habilitou a entidade a acessar verbas públicas.
“O faturamento hoje da confederação supera R$ 20 milhões por ano somando prefeituras, governos estaduais, patrocinadores, lei de incentivo e loterias.”
Darbilly observa que as demonstrações financeiras das confederações são públicas nos sites institucionais.
Maya Carpinelli – a nova geração chegou
Em Garopaba, onde as ondas da Silveira quebram na areia, uma surfista encontrou seu destino não por herança direta, mas por uma decisão que reescreveu os sonhos de uma jovem atleta.
Nascida e criada na Praia da Silveira, filha de mãe nativa e pai surfista vindo de São Paulo, o mar sempre foi seu playground. “Desde pequena eu amo o mar, sempre amei brincar nas ondas, ficar me jogando com meus amigos”, recorda.
No entanto, o caminho para o surfe profissional não foi uma linha reta. Durante a infância, Maya era uma espectadora. O protagonismo nas ondas pertencia ao seu irmão, Ian, três anos mais velho. Era ele quem o pai, apaixonado pelo esporte, incentivava a seguir seus passos, numa época em que o surfe feminino ainda lutava por visibilidade. “A real é que o surfe é um esporte machista, essa é a real”, afirma Maya, com a franqueza de quem viveu a transformação do cenário. “Na época do meu pai, era esporte de marginal. Pior ainda se fosse uma mulher surfando. Não se via muita mulher na água.”
Enquanto o irmão tentava, entre a pressão e a frustração, dominar a prancha, Maya observava da areia. “Meu pai às vezes me botava em cima da prancha, segurava, mas eu não ia surfar”, conta. O ponto de virada, o momento que redefiniria seu futuro, veio de forma inesperada.

O “Não” que Gerou um “Sim”
Aos 13 anos, Ian tomou uma decisão definitiva. Em uma conversa que marcou a família, ele comunicou ao pai que não queria mais surfar. A frustração havia superado a paixão. “Meu pai ficou super chateado, porque o sonho dele era ter o filho surfando”, lembra Maya.
Foi nesse instante que Maya, com cerca de 10, anos diss ao seu pai “Pai, tudo bem que o Ian não quer surfar. Eu quero surfar. Me bota pra surfar.”
A revelação foi um choque para o pai. “Ele conta essa história até hoje, que ficou se sentindo super mal, porque pensou: ‘Nossa, o tempo todo eu não vi que quem queria surfar mesmo era minha filha'”, relata a atleta. Aquele pedido, carregado de uma vontade genuína e até então silenciosa, foi o início de tudo.

O pai de Maya, além de ensiná-la ele mesmo, matriculou-a na Escola de Surfe Onda Azul, em Garopaba. A decisão foi um acerto. “Foi perfeito, foi incrível o começo da minha conexão com o surfe”, diz Maya. A rotina da escolinha, com uma Kombi que buscava as crianças em casa e aulas em grupo, transformou o aprendizado em uma grande brincadeira. “Fiz um grupo de amigos que estavam aprendendo a surfar também, várias meninas. Foi bem mais leve o meu início.” Com 11 anos começou na escolinha e, um ano e meio depois, já estava competindo em campeonatos infantis e regionais. Aos 14, sagrou-se campeã catarinense sub-14. A pandemia da Covid-19 acelerou sua transição, pulando etapas do amador diretamente para o circuito profissional, onde compete até hoje.

A Luta por Espaço na Água
Maya Carpinelli faz parte de uma geração que já colhe os frutos da luta de pioneiras do surfe feminino. Quando começou, já existiam categorias femininas nos campeonatos regionais, algo que não ocorria sempre nos anos anteriores. “Eu acredito que a minha geração foi uma das primeiras com mais quantidade de mulheres”, reflete. “Tenho amigas que já competiam e elas tinham que correr campeonato masculino.”
Apesar dos avanços, como a equiparação de prêmios nos principais eventos mundiais, a surfista aponta que a desigualdade ainda persiste nos detalhes. “Nos critérios dos campeonatos, quando vão decidir quem vai cair na água, às vezes eles priorizam o masculino. Tem vezes que o mar está melhor e eles colocam os homens, o mar está menor e colocam as mulheres”, critica. “Eu discordo. Acho que todo mundo tinha que cair no mesmo tipo e condições de mar.”
Seu conselho para as meninas que estão começando é direto: “se impor dentro da água.” Ela relata as inúmeras vezes em que homens, por puro preconceito, remaram em sua onda (“rabearam”). “Saber que a gente tem o mesmo direito de todo mundo que está ali dentro. A gente pode tanto quanto eles surfar e pegar várias ondas.”

A conexão profunda com sua terra natal trouxe o início de um patrocinio com a Mormaii, marca de Garopaba. Para Maya, o patrocínio foi a realização de um sonho. “Sempre me vi muito na Mormaii. É uma marca de Garopaba, eu conheço todo mundo, considero uma família.” A relação, segundo ela, vai além dos resultados e se baseia no estilo de vida que ela representa: natureza, boas energias e, claro, muito surfe. Graças a esse apoio e ao de seus pais, que “se entregaram junto” ao seu sonho, Maya já viajou o mundo, surfando em picos lendários nas Maldivas, Indonésia, Havaí e Chile.
Formação, base e presença feminina
A cena feminina catarinense cresceu. Além das categorias de base mantidas no estado, a gestão nacional criou cargos eletivos femininos, abriu formações de treinadoras com chancela internacional e estabeleceu protocolos de acolhimento. O objetivo é não perder talento no entroncamento mais frágil: a passagem da adolescência para o profissional, quando estudo, custo e pressão podem fragilizar carreiras promissoras.
A porta de entrada, afirma Padaratz, tem sido a rede municipal: “Balneário Camboriú tem três escolas públicas de surfe numa praia de 7 km; Florianópolis, cerca de 25”, disse. Ele também cita a presença de ex-atletas na arbitragem e em cargos técnicos: “Hoje, 70% do quadro de juízes é ex-atleta de ponta; entre eles, Jaqueline Silva.” A confederação criou uma vice-presidência exclusiva para mulheres, com verba dedicada.
“Cada surfista profissional tem potencial de gerar cinco empregos diretos (treinador, preparador físico, psicólogo, nutricionista e fotógrafo/analista).”
Padaratz também dimensiona a operação da entidade: “Temos cerca de 200 a 250 prestadores de serviço fixos.”
Premiação como política de retenção de atletas
Padaratz argumenta que, com a retração da indústria tradicional do surfe, a premiação nacional passou a cumprir o papel de financiar a carreira: “Uma etapa do nacional paga R$ 500 mil; o último colocado sai com R$ 4 mil; o campeão faz R$ 50 mil. No WQS, uma etapa de R$ 150 mil só banca os finalistas.”
O caso citado por ele é o de Silvana Lima: duas Taças Brasil e um Dream Tour no Nordeste, além do título brasileiro, renderam “até R$ 180 mil em três semanas”, com IR retido na fonte, segundo Teco. “Ela terminou de construir a pousada, comprou um terreno e fez a vida”, disse.
Conflito de calendários pode impedir surfistas de conciliar WQS e WSL
O calendário nacional da CBSurf, que organiza o WQS no Brasil, conflita com as datas do circuito da World Surf League (WSL). A sobreposição impede que surfistas disputem simultaneamente os dois circuitos e, na prática, força a escolha por um deles. Segundo a direção da confederação, não houve ajuste de datas por parte da WSL, o que preservou o choque entre etapas.
No panorama competitivo, a CBSurf descreve o circuito nacional como o mais robusto em número de eventos, atletas e premiação. “Uma etapa do nosso nacional paga R$ 500 mil em prêmios. No WQS, uma etapa dá R$ 150 mil; só os finalistas conseguem bancar a viagem”, disse o presidente Teco Padaratz. Ele aponta que, no Dream Tour, “o último colocado sai com R$ 4 mil”, enquanto o campeão recebe R$ 50 mil, com faixas intermediárias que, segundo ele, “ajudam a sustentar a carreira”.
A confederação afirma que vai formalizar exigências para a realização de eventos no país: autorização prévia da CBSurf e da federação estadual correspondente, inexistência de conflito com o calendário nacional, pagamento de taxas de homologação e cumprimento de protocolos de segurança e compliance (UTI móvel, plano de evacuação de praia, políticas de proteção à mulher, entre outros). “É uma lista de compliance que a confederação é obrigada a seguir e que vamos exigir que as entidades cumpram”, disse Padaratz.
Nos fundamentos legais, o advogado Rodrigo explica que a CBSurf é a entidade nacional reconhecida pelo Governo Federal para administrar o surfe, integrante do Sistema Nacional do Esporte, com competência para organizar competições de alto rendimento e de base e chancelar eventos da modalidade que não sejam organizados por ela ou por suas filiadas. “Isso garante o cumprimento das regras e a estrutura necessária para a segurança e o bem-estar dos atletas”, afirmou.
As referências jurídicas incluem o Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/1997), que exige autorização expressa da confederação ou das entidades estaduais a ela filiadas para a realização de provas em “via aberta à circulação” — conceito que, por definição legal, abrange as praias. A obrigação foi reforçada pela Lei Geral do Esporte: o artigo 153 determina que eventos em vias públicas que requeiram inscrições “devem ser autorizados e supervisionados pela organização esportiva que administra a modalidade”. Rodrigo acrescenta que, historicamente, “a WSL pedia a autorização e pagava regularmente as taxas às federações estaduais”, mas “nos últimos anos não vem mais solicitando a autorização e se recusando a manter diálogo com a confederação e federações”.
Sem a autorização, a CBSurf diz que poderá recorrer a medidas judiciais para suspender etapas que não atendam aos requisitos. “Vamos pedir um mandado de segurança e parar o evento com a Polícia Federal na praia”, declarou Padaratz, justificando que o objetivo é garantir as condições de segurança para atletas, torcedores e equipes, bem como o respeito ao calendário nacional.
Darbilly confirma a exigência legal de autorização das entidades do Sistema Nacional do Esporte para eventos em vias e logradouros públicos — conceito que inclui praias. Ele cita o Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/1997), art. 67, I (autorização expressa da respectiva confederação…) e o art. 2º, parágrafo único (praias como vias terrestres). A Lei Geral do Esporte, art. 153, reforça que eventos em vias públicas com inscrição devem ser autorizados e supervisionados pela organização que administra a modalidade.
O que diz a lei
• CTB, art. 67, I: prova desportiva em via aberta depende de autorização da confederação/federação e permissão da autoridade de trânsito.
• CTB, art. 2º, parágrafo único: praias são consideradas vias terrestres para esses efeitos.
• Lei Geral do Esporte, art. 153: eventos em vias públicas com inscrição devem ser autorizados e supervisionados pela organização da modalidade.
Teco também defende que chancela não é burocracia; é garantia de calendário, segurança e premiação: “Praias são bens de uso comum. A autoridade pública precisa organizar. A chancela evita conflito de datas, assegura UTI móvel e plano de segurança e dá respaldo jurídico.” — Teco Padaratz
A reportagem solicitou posicionamento à WSL sobre os pontos acima. Atualizaremos este texto caso haja manifestação.
Portanto, Santa Catarina se tornou destaque global pela soma de cinco pilares que se retroalimentam:
- Geografia e variedade de ondas — Em pouco mais de 560 km de costa, o estado oferece um laboratório de condições: beach breaks cavados (Silveira, Ferrugem), ondas mais longas e pesadas (Praia da Vila, em Imbituba), valas rápidas e correntezas (Barra do Sul, praias de São Francisco do Sul), além de picos urbanos em Florianópolis que sustentam treino diário com diferentes ventos e marés.
- Cultura de base e associativismo — Associações locais atuantes e projetos de iniciação (inclusive escolinhas públicas de surf) democratizaram o primeiro contato com o mar. Crianças entram cedo, com professores, técnicos e preparadores cada vez mais presentes.
- Calendário competitivo — A Fecasurf organiza o ecossistema desde 1987, e o estado acumulou eventos internacionais (Praia da Vila sediou etapas mundiais entre 2003 e 2010), criando referência técnica para quem crescia vendo os melhores do mundo ao vivo.
- Profissionalização — A transição do “instinto” para o alto rendimento consolidou equipes multidisciplinares (técnico, preparação física, psicologia esportiva, nutrição, análise de vídeo), um padrão que hoje molda a elite.
- Gestão e investimento — A CBSurf ampliou orçamento e governança; a Fecasurf sustenta a base; e o circuito nacional ganhou premiação e previsibilidade, segurando talentos no país e empurrando a ponte para o cenário internacional.
O título de Yago é só um produto desse ecossistema, a prova de que, no estado onde a leitura de vala é ofício, a vitória mundial era mais questão de tempo do que de sorte.
