Histórias em quadrinhos: trajetória que atravessa séculos
Personagens de histórias em quadrinhos possuem um forte impacto no imaginário popular. Tanto grandes franquias do cinema, como os Vingadores e Mulher Maravilha, até animações que fizeram parte da infância de muita gente, como Dragon Ball Z e Liga de Justiça, usam as histórias em quadrinhos como fonte primária.
Precursores estilísticos do mangá podem ser rastreados até o século XIII, no entanto, o termo foi primeiramente usado séculos depois, em 1798, com Shiji no Yukikai (Quatro Estações), obra de Santō Kyōden. Na segunda metade do século XIX, artistas japoneses passaram a se interessar por pinturas europeias com as quais tinham contato e buscaram aprender mais como meio de melhorar suas técnicas. Uma grande influência no mangá, na mesma época, foi a de Charles Wirgman. Segundo Helen McCarthy, autora de Uma Breve História do Mangá (em tradução livre), Wirgman pode ser considerado o verdadeiro criador do mangá, que através da Japan Punch, uma revista japonesa de ilustrações que comentava sobre acontecimentos sociais da época, conseguiu deixar a sua marca.
O período após a Segunda Guerra Mundial significou um boom criativo para mangás. Claramente existiam histórias antes desse período, mas o compromisso com propagandas para com a causa imperialista durante a guerra restringia a criatividade dos autores. O governo controlava até mesmo o papel usado nas publicações. Consequentemente, autores que não se dedicassem à causa belicista a favor do governo não conseguiam publicar.
Logo após o fim da Segunda Guerra, Astro Boy e Sazae-san foram obras que conseguiram um bom desempenho e, de certa forma, representaram uma mudança de paradigma na mentalidade japonesa, pois seus protagonistas apresentavam um comportamento mais gentil e sereno em contraponto à mentalidade imperialista agressiva que predominou durante a guerra.
As obras mais conhecidas pelo público brasileiro, como Dragon Ball, Cavaleiros do Zodíaco e Yu Yu Hakusho, que se tornaram populares devido aos animes (adaptações dos mangás ao formato de animação), foram publicadas anos mais tarde, nas décadas de 1980 e 1990.
“Começando desde One Piece, Bleach, Naruto, Hunter x Hunter, entre outros famosos, eu comecei a ler centenas de mangás menos conhecidos”, afirma Diogo de Mello, estudante de Ciência da Computação da Udesc. Ele transformou o hobby ocasional de ler mangás em uma rotina diária. “Atualmente minha lista de mangás contém mais de 500 títulos diferentes e acompanho mais de 100 títulos simultaneamente por mês.”
Idealismo e o herói americano
O estilo de quadrinhos americanos pode ser rastreado desde a Era Vitoriana, com As Aventuras de Obadiah Oldbuck, do autor suíço Rudolph Topffer, publicado em 1842 nos Estados Unidos sem a autorização do autor. O relativo sucesso da publicação incentivou autores americanos a usarem a obra como modelo.
A Era do Ouro, iniciada em 1938, é assim chamada por ter introduzido uma grande quantidade de personagens clássicos, populares até hoje, como Super-Homem, Mulher-Maravilha e Capitão América. Uma característica comum é a representação de um sentimento patriótico nos personagens. No cenário da Segunda Guerra Mundial, os heróis enfrentam nazistas e ostentam as cores da bandeira americana em seus uniformes. Com o fim da guerra, a ênfase passou a ser o medo de um ataque nuclear.
A eras seguintes possuem uma ênfase narrativa diferente. A Era de Prata, iniciada em 1956, passa a enfatizar mais aspectos de combate ao crime, com uma narrativa que mescla horror e romance. Stan Lee e Steve Ditko, criadores de personagens como Homem-Aranha e Doutor Estranho, foram colaboradores dessa época. A Era de Bronze, que inicia em 1970, não possui muita diferença temática para com o período anterior, mas coloca em pauta temas sociais, como racismo, problemas ambientais e drogas. A Era Moderna, que corresponde ao período atual, começou em 1985, e possui narrativas mais realistas e visões até cínicas de mundo, diferente da perspectiva idealista anterior. Entre os representantes da Era Moderna estão autores como Alan Moore, com Watchmen, Frank Miller, com O Cavaleiro das Trevas, e Garth Ennis, com The Boys.
Nos Estados Unidos, as duas principais empresas a produzirem histórias em quadrinhos são a Marvel Comics e a DC Comics. A Marvel conseguiu se diferenciar na década de 60 ao focar na criação de personagens mais conectados a pessoas da vida real. Um exemplo popular é o Homem Aranha, alter-ego de Peter Parker, um adolescente comum que tinha problemas com emprego e namoradas. “A localização da HQ era muito boa, o Peter saindo do Queens e cantando ‘Pro Dia Nascer Feliz’ do Cazuza, enquanto pedalava em direção à casa do amigo ricaço parecia bem orgânico”, relata Isabel Torralba, estudante de Ciência da Computação da PUC-RJ. Na opinião de Isabel, uma apaixonada por quadrinhos, Homem Aranha possui histórias estranhas, mas que compensam por transmitirem sentimentos genuínos, como sensações de perda e de otimismo, por causa da forma como o personagem é construído.
“O mercado americano de quadrinhos tem sofrido historicamente de uma falta de variedade – a ponto de fazer tudo que não seja super-heróis parecer uma revolução do meio. E isso tem sufocado o meio nos EUA. Japão e Europa tem uma cena bem mais saudável, diversa e menos apelativa por não estarem assim restritos”, afirma Pedro Henrique Leal, jornalista da coluna Geek do Correio do Povo. Segundo Leal, outro problema atual dos quadrinhos norte-americanos é os roteiristas tentarem emplacar uma pauta a despeito da narrativa estabelecida, como, por exemplo, tentar forçar a personagem de Carol Danvers (Capitã Marvel) ganhar uma grande relevância positiva logo após ter cometido atos horrendos, como comandar campos de concentração, o que acaba por frustrar o público.
O mercado americano de quadrinhos tem sofrido historicamente de uma falta de variedade – a ponto de fazer tudo que não seja super heróis parecer uma revolução do meio. (Pedro Leal, jornalista)
Torelly traça retrato do Brasil em Os Reguladores
Fernando Torelly é um quadrinista carioca conhecido, principalmente, por seu trabalho em Os Reguladores. Ele desenha “desde sempre”, pois teve contato direto com ilustração a partir de sua mãe, que é designer e ilustradora. Fernando entrou na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2002, quando tinha 22 anos, para o curso de gravura. O artista largou o ensino superior após o fim do 2° período, porque achou um emprego e porque considerava a “faculdade uma perda de tempo”.
Reguladores é o Brasil dos anos 80, época em que eu fui criança: fechado, feio, pobre e deprimente. (Fernando Torelly, quadrinista)
Torelly começou a trabalhar com quadrinhos recentemente. Também faz ilustrações para revistas, livros, publicações e estampas de camisa. Antes de Os Reguladores, seu trabalho de maior repercussão foi participar da concepção da camisa da Seleção Brasileira de futebol. “Quando a empresa veio procurar um amigo meu, Eduardo Saretta, em busca de artistas para sua nova coleção, eu fui o primeiro a ser indicado”, conta. Torelly também escrevia sobre futebol em um site patrocinado pela Nike. “Me convidaram para trabalhar na concepção do uniforme usado em 2012. Eu fui o primeiro artista brasileiro a trabalhar camisa da seleção feita pela Nike.”
A ideia para Os Reguladores começou a ser colocada em prática em 2015. Torelly sempre foi leitor de quadrinhos, mas até então não se sentia seguro para desenhá-los. Segundo ele, depois de ver tanta gente fazendo coisa ruim, perdeu a vergonha e decidiu fazer os seus. “Reguladores é de certo modo uma paródia ao quadrinho brasileiro de super-heróis e a posição de seus criadores em relação ao papel do Estado na produção do conteúdo nacional”, afirma o quadrinista. “O Brasil dos Reguladores é o Brasil dos anos 80, época em que eu fui criança: fechado, feio, pobre e deprimente. É o Brasil da reserva de mercado”.